quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Roberto Romano texto lido e comentado no 1º Seminário de Ética e Decoro Parlamentar. 2003
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
Câmara dos Deputados.
CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR
EVENTO: Primeiro Seminário Nacional de Ética e Decoro Parlamentar
DATA: 09/12/03 - INÍCIO: 14h18min - TÉRMINO: 17h57min
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Subcontrolador-Geral da União e ex-Deputado Jorge Hage.
A
sociedade brasileira toda faz grande aposta no controle daquilo que o
senso comum identifica como um dos 5 maiores problemas nacionais, que é a
corrupção. Avançar nesse sentido é muito importante. Tenho certeza de
que V.Sa. e o Ministro Waldir Pires, pela história de vida, são os mais
capacitados para liderar esse controle, que também tem de ser da sociedade. Muito obrigado.
Ato
contínuo, já instalo nosso último painel, com largo atraso, ressaltando
que quem esperou não se arrependerá. Convido o Prof. Roberto Romano, da UNICAMP, e o Prof. Ricardo Caldas, da UnB, para comporem a Mesa e iniciarmos nossos trabalhos.
Registro
a presença do Deputado Elimar Máximo Damasceno, de São Paulo. Já
estiveram aqui conosco os Deputados Júlio Delgado, João Almeida, Gustavo
Fruet, Fernando Gabeira, além da importante presença do Deputado
Orlando Fantazzini, que, com sua equipe do Conselho de Ética organizou
este tão importante seminário. Parabéns a S.Exas.
Iniciaremos o último painel, porque sei que nossos debatedores têm horário. Torço para que a Ordem do Dia não se inicie no plenário. De qualquer forma, tenho convicção de que será muito proveitoso.
Com a palavra aquele a quem me permitirei chamar de Roberto pela nossa amizade de quase meio século. Muito prazer, Roberto, em vê-lo aqui.
O SR. ROBERTO ROMANO
- Em primeiro lugar, agradeço ao Deputado Orlando Fantazzini o convite.
O que o Chico disse é verdade: conhecemo-nos em 1966, no Rio de
Janeiro.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - No jardim de infância, digamos, nas primeiras letras.
O SR. ROBERTO ROMANO - Fizemos muita passeata, lutamos contra a ditadura e outras coisas mais.
Quando me foi proposto esse tema, lembrei de 2 autores que me parecem estratégicos para
pensar a questão tanto do decorum quanto da ética e, sobretudo, que
permitem fazer a ligação da ética parlamentar com a vida civil.
O
primeiro é o autor da maior ética moderna: Spinoza, que tem 2 tratados
políticos absolutamente importantes: o Tratado Político e o Tratado
Teológico-Político. No caso de Spinoza, parece-me importante reter a
lição que destaca o respeito e a reverência que os cargos públicos devem
suscitar na população. Spinoza tem uma idéia contrária à de Hobbes:
quando se faz o pacto político, não se abre mão do direito de natureza;
continua-se plenamente um ser natural e um ser pensante. Não existe
possibilidade de separar essas qualidades dos seres humanos, porque elas não são só destes; nós somos atributos da substância divina.
Spinoza
é monista. Então, quando pensamos, de certo modo, é Deus quem pensa;
quando agimos, é Deus quem age. Não existe poder humano capaz de limitar
a força dos homens quando pensam e quando agem. Portanto, alienar essa
força é um absurdo, no pensamento de Spinoza e contrariamente ao de
Hobbes.
Isso leva
Spinoza a dizer no Tratado Político que o poder tem que contar com a
atitude natural dos homens e não pode modificar sua natureza. É esse
ponto que me parece importante. Ele diz: "O Estado tem a força e,
portanto, o direito de fazer com que os homens tenham asas para
voar ou, o que é tão impossível quanto, que eles considerem com
respeito o que excita o riso e o desgosto". Não se pode esperar,
exercendo cargo público, que os homens deixem de observar as pessoas.
Por
que são importantes o medo e a reverência? Em primeiro lugar, porque
nunca — e aí ele também se coloca contra Hobbes — abrimos mão do nosso
poder. Cada indivíduo tem poder, cada grupo tem poder, que se exerce no
interesse próprio — esse também é um ponto importante —, e apenas e
tão-somente por questão de cálculo racional os homens aceitam abrir mão
desse poder em função do coletivo. Quer dizer, se essa cessão de poderes
não é retribuída e se o Estado não retribui essa confiança, ele deixa
imediatamente de existir.
Por
isso, uma autoridade que se apresente, do ponto de vista público, como
um legislador que não segue a lei é o pior criminoso dentro do Estado; é
aquele que impede a existência do Estado; é pior do que o ladrão; é
pior do que o assassino, porque a existência do Estado é a única
tranqüilidade e segurança dos cidadãos.
Quando
os cidadãos, diz Spinoza, percebem que seu interesse, a segurança, a
expansão do corpo, a alegria, os saberes, etc., não estão sendo
cumpridos pelo Estrado, eles agem de maneira imediata na busca dos seus
interesses. Esse é um ponto que me parece importante. O texto está com
os senhores e não me estenderei.
Spinoza
é leitor e seguidor de Maquiavel. Sobre essa busca dos interesses
grupais ou individuais, quando o Estado e os legisladores — ele insiste
nisso —, aqueles que fazem as leis, não devolvem aos cidadãos aquilo que
se espera do Estado, os indivíduos permanecem na sua situação de massa.
Spinoza faz uma distinção muito clara entre povo e vulgo. O povo
reunido, obedecendo às leis e contemplando o exemplo dos legisladores e
dos governantes, é o povo democrático; o vulgo é quando ele não tem mais
essas determinações nem esses exemplos e se torna uma massa furiosa. O
povo é temível, diz ele, nessa hora.
Isso é perfeitamente possível de entender
quando vemos a situação de países que não conseguem estabelecer o
regime democrático, com certeza, e que têm autoridades que não legislam
em função do interesse público, mas usam o interesse público para seu interesse particular.
Deixo o Spinoza com um pedido aos senhores, sobretudo aos que trabalham com a questão da ética no Parlamento, para
que realmente aprofundem a leitura de Spinoza, porque se trata não
apenas de um pensador realista, ao modo de Maquiavel, mas do maior
pensador democrático do Ocidente. Não estou exagerando. Nesse caso,
temos efetivamente uma fundação de pensamento democrático extremamente
realista. Os senhores sabem que boa parte das críticas feitas à
democracia, desde Platão, assumidas por Hobbes e pelo pensamento
conservador, têm fundamento, não são despropositadas. Nesse caso, temos
na profundidade de Platão uma defesa da democracia e, ao mesmo tempo, um
enorme realismo no trato dessa questão.
Deixo
Spinoza e passo ao mais importante monumento político sobre a sociedade
contemporânea e a violência societária, que é o livro de Elias Canetti:
Massa e Poder. Trata-se de um expositor frio dos fenômenos que levaram
aos desastres nazistas e fascistas e a todas as formas totalitárias e
genocidas do século XX. Canetti mostra até que ponto a voragem das
massas pode ser conduzida nos genocídios dos campos de concentração onde
milhões foram abatidos.
O capítulo de Massa e Poder mais grave para
a questão da ética e do decoro parlamentares é o intitulado A essência
do sistema parlamentar. Nele, Canetti mostra que a política no
Parlamento continua a guerra geral por outros meios. Os senhores sabem
que essa tese vem de Clausewitz e define até hoje o pensamento
estratégico das potências imperiais. A continuação da política na
guerra, como a continuação da guerra na política, são lados
complementares, teorizados por Hobbes, por Maquiavel, por Platão e por
Tucídides. Mas Clausewitz deu aos dois enunciados sua abrangência
máxima.
Em Massa e
Poder, o Parlamento é um campo de guerra prolongado. Os partidos
constituem a extensão da estrutura psicológica dos exércitos
combatentes. A essência parlamentar encontra-se nesse elemento bélico. A
diferença encontra-se no fato de que a guerra no Parlamento é feita para
evitar a guerra civil. Enquanto nesta última todos podem ser mortos, no
Parlamento são escolhidos indivíduos que lutam em nome dos interesses
dos seus eleitores, mas não podem ser mortos. Este é o pleno sentido da
imunidade parlamentar: em vez das balas e das baionetas, os votos no
plenário. Essa garantia repercute na vida civil, que vive sempre em
guerra, dando-lhe condições de prolongar a vida.
Citando
Canetti: Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão
verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se
conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados
e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os
instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do
choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças,
insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a
contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360
tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo.
Dentro do Parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é
expressa da maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um
duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro,
entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida
atenção).
Ninguém
jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja,
devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se
com vontade, como numa guerra; cada uma dessas vontades tem a convicção
do maior direito próprio e da própria razão. O sentido de um partido
consiste justamente em manter vivas esta vontade e esta convicção. O
adversário que fica em minoria não se submete porque de repente tenha
deixado de acreditar em seu direito, mas apenas porque se dá por
vencido. É fácil para ele
dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é castigado por sua
atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo,
ele reagiria de forma complemente diferente Ele conta porém com batalhas
futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não
morre em batalha alguma.
Esta
imunidade contra a morte é a essência de todas as demais imunidades
parlamentares e a fonte de todas as garantias dadas aos cidadãos que
seguem a lei redigida pelo Parlamento, sancionada e imposta pelo
Executivo, julgada pelo Judiciário. O sistema representativo só funciona
se ela existir. "Ele desmorona", diz Canetti, "assim que algum posto
seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um
dos membros da corporação" parlamentar. Nada é mais perigoso do que ver
mortos entre vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu
resultado. Um parlamento só é um parlamento enquanto excluir os mortos.
Com a imunidade parlamentar vive e morre o Parlamento de qualquer país.
Na
eleição geral, a imunidade estratégica ainda não é a dos eleitores, mas
a das cédulas de votação. É permitido influenciar os eleitores de quase
todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem
definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o
assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio
generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que
não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver orientação
política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos.
A
sacralidade do voto nas cédulas e a votação sem mortes, a imunidade
parlamentar afastam a matança que se mantém na vida civil. Todos os
votos, o dos cidadãos e dos parlamentares, são anotados em números. Quem
joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a
dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto.
Os
entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas
de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As
cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de
simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para
eles valem apenas as decisões pelo sangue. O Deputado é um eleitor
concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal
acumulam-se muito mais para o Deputado. Ele existe justamente para
votar com freqüência. Mas também é muito menor o número de pessoas
entre as quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem
substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes
números.
Tanto o
pensador político do século XVII, quanto o prêmio Nobel no século XX
mostram a importância da ética e do decoro parlamentar para
a vida em segurança mínima dos homens reunidos em sociedade. Segundo
ambos, a guerra de todos contra todos não é abolida com o advento do
Estado. Ela continua na vida civil, com toda a violência. O meio para
atenuá-la é justamente a tarefa dos legisladores e dos governantes, os
quais têm imunidade como se fossem portadores de bandeiras brancas no
debate que suspende, no âmbito dos parlamentos, a matança, a cobiça, a
rapacidade, os truques que os indivíduos e grupos usam uns contra os
outros. Se existe fraude na bandeira, se existem pessoas que se julgam
acima dos regimentos e das leis porque investidas da função parlamentar,
se existe atentado à ética e ao decoro, desaparece o Estado,
instaura-se a morte e a guerra como fruto daqueles atentados. Os
senhores conhecem como ninguém a violência tradicional da sociedade
brasileira, que se prolonga e agrava em nossos dias. Em nossa vida
civil, a morte ronda as relações de vizinhança, de parentesco,
comerciais, políticas, ideológicas. A capangagem, a prática do
escravismo, o uso de mão-de-obra barata e jovem no tráfico de drogas, a
barbaridade do trânsito urbano e nas estradas, as fraudes, o assassinato
de mulheres pelos maridos em nome da pretensa honra, o estupro de
crianças em pleno lar, os abortos clandestinos que jogam o nada sobre
embriões e corpos de jovens mulheres aos milhares, as lutas ao redor da
terra, o desprezo pelos pobres postos em mãos médicas canhestras ou de
má-fé, o descontrole das polícias cuja opção preferencial é pelos negros
e demais negativamente privilegiados, os plágios universitários, a
espionagem industrial, e temos uma lista infindável de crimes e práticas
letais saídas da caixa de Pandora chamada sociedade civil brasileira.
Nesse
universo de tristeza infinita, a confiança na palavra dos governantes e
dos legisladores é o único meio de fazer com que os cidadãos abandonem
as suas armas ou deixem de ser cúmplices ou vítimas dos que estão fora
da lei. Quem frauda um painel de votação ou mente da tribuna, quem se
apodera de bens públicos no Orçamento Nacional, quem desvia recursos para
sua conta privada comete crime de lesa fé pública e de golpe contra o
Estado. Quem promete algo nos palanques e pratica o seu oposto nos
palácios dá um passo tremendo rumo à redução do povo soberano ao
estatuto de vulgo sem dignidade. Ensina que a palavra dada não tem
substância. E sem palavra confiável não existe Parlamento, porque o
próprio nome, Parlamento, é o lugar que sucedeu a prática racional grega
do logos, do discurso racional que tranqüiliza e protege os cidadãos. É
isto que diz Canetti ao criticar os que adulteram votos. Eles, na
verdade, desejam regimes sem votos, regimes onde o único voto permitido é
a morte na guerra de cada um contra todos.
Citei o ensinamento de Spinoza e de Canetti para
introduzir o nosso problema, justamente numa Casa abalada nas últimas
décadas por gravíssimos atentados à ética e ao decoro. Em termos
pessoais, como professor de ética na universidade pública, não me furtei
à crítica e à análise pública daqueles problemas. Fui inclusive
processado por um de seus pares porque não me calei diante de atentados
às exigências éticas. Absolvido pela Justiça, continuo acreditando que o
Parlamento é a via para
atenuarmos a guerra de todos contra todos, gravíssima no Brasil. Se o
Estado perde sua força e a fé pública, ganham terreno as potências da
morte genérica, vencem os bandidos. É sintomático que as quadrilhas
organizadas dominem parte do território de nossas grandes cidades,
definam espaços de quase soberania — inclusive arregimentando
colaboradores nos 3 Poderes oficiais — na mesma proporção em que a
cidadania perde a confiança no regime democrático e na política. Se
fracassar no Brasil a vida dos parlamentos, a voragem da morte levará
nossa esperança de vida, em primeiro lugar, e de vida livre e digna.
É
por esse motivo que saúdo os promotores deste evento e todos os
senhores. Saúdo na iniciativa de se discutir a ética e o decoro
parlamentar, o Estado democrático de direito, sonho dos cidadãos
honestos de nosso País.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecemos ao Prof. Roberto Romano a participação.
Convido o demiurgo deste encontro, um lutador em prol da ética pública, a assumir lugar à Mesa.
Com a palavra o Prof. Ricardo Caldas.
O
SR. RICARDO CALDAS - Antes de começar a exposição, quero agradecer ao
Deputado Orlando Fantazzini, aqui representado pelo Deputado Chico
Alencar, o amável convite, e também dizer que, para mim, é uma honra e um privilégio estar nesta Comissão.
Fiquei
muito honrado em ter participado da Comissão de Reforma Política e
muito satisfeito em saber que ela já aprovou, em texto preliminar, ponto
que tive a oportunidade de defender na própria Comissão: a reforma
global. Havia ficado um tanto surpreso ao perceber que a reforma estava
sendo discutida pouco pontualmente. Na minha visão, ela tinha de ser
discutida sob perspectiva global, voltada para
o cidadão. Na ocasião, disseram que a minha visão era minoritária, que
não teria nenhuma possibilidade de ser aprovada. No final das contas,
acho que a sociedade brasileira foi a vencedora.
É sobretudo uma honra estar ao lado de pessoa tão ilustre quanto o Prof. Roberto Romano.
Tenho certeza de que minha apresentação não terá o mesmo brilhantismo
da de S.Sa. Ainda assim, peço aos presentes que sejam pacientes e me
cedam cerca de 15 ou 20 minutos de seu tempo. (Pausa.)
Pretendo
mostrar um pouco da visão histórica da ética e como a ética, de certa
forma, não mudou ao longo do tempo. Pretendo mostrar também como se
conceitua a ética hoje e qual a nossa necessidade de ética. Falarei
ainda sobre o que, no meu entendimento, se denomina de crise da ética
moderna — não sei se o Prof. Roberto Romano terá oportunidade de me corrigir.
Basicamente, falarei da origem do termo, do que poderíamos entender por ética, e de como ela evoluiu.
Vamos passar para
o segundo (inaudível). Isso pode se traduzir de duas formas...
(inaudível) e também outros valores e propriedades de caráter. Esse tipo
de tradução dá origem também a entendimentos diferenciados sobre o que
viria a ser a ética.
Se
analisarmos do ponto de vista dos costumes, o que teríamos? O estudo
dos costumes não nos auxilia a conhecer a moral nem a compreender a
ética. Ou seja, simplesmente falar quais são os costumes de uma
sociedade não nos diz o que é certo ou o que é errado. Costumes
referem-se simplesmente a usos e tradições e, em princípio, deles não
poderiam vir, ou advir, uma noção de ética, ou de ética pública, o termo
sobre o qual me convidaram a falar.
Na tradução para
o alemão, por exemplo, utilizou-se algumas vezes a palavra sitten, que
refere a costumes, mas no sentido de moral superior baseada nas
tradições e costumes. Daí também a dificuldade em se obter conceito ou
visão do que realmente seria a ética.
Outra
visão, a que de certa forma prevaleceu, foi a de Aristóteles, de que
ética seria a propriedade de caráter. Nessa perspectiva, a ética
representa os estudos sobre o ethos nesse sentido ou sobre a propriedade
de caráter, porque essas poderiam ser boas ou más. E daí vem todo o
estudo que os antigos chamavam de virtudes ou vícios.
É
interessante que o conceito de ética ficou tão difundido ao longo do
tempo que se formos verificar, por exemplo, no Dicionário de Política,
de Bobbio, talvez a fonte mais conhecida, mais legítima e mais bem vista
na área de Ciência Política, ele nem sequer menciona o termo ética.
Na acepção corrente, poderíamos entender
ética simplesmente como o estudo dos juízos da conduta humana, a qual
pode ser qualificada como boa ou má, seja de forma relativa, ou seja,
vendo de sociedade para sociedade, ou vendo a conduta como boa ou má de uma forma absoluta.
A
grande dificuldade da ética antiga e da ética moderna, já adianto, é a
questão de como definir bom ou ruim, boa ou má. Quer dizer, o que é uma
atitude boa, o que é uma atitude má? Esse aspecto terá reflexos tanto na
vida privada do indivíduo quanto também na vida pública da pólis, ou no
caso aqui, do Parlamento.
Observamos
uma grande confusão das pessoas entre o que é ética e o que seria
moral. A ética seria, como vimos, o juízo da conduta humana. E o que
seria então moral? A moral poderíamos definir como um conjunto de
regras, costumes e valores que prevalecem ao longo do tempo em um certo
período: a moral vitoriana, a moral nazista, a moral helênica, etc. Ou
seja, ela está associada a uma dada sociedade, a um certo período.
Aí chegamos ao ponto de o que seria a ética na Antigüidade. Para os gregos, a idéia de ética está diretamente associada com a política. Como já foi mencionado pelo Prof. Romano,
a questão da ética e da política é porque ela permitia os grandes
debates. Então, os conflitos deveriam ser trazidos a público e ser
manifestados na pólis. Daí a importância da oratória, que era a maneira
como as pessoas poderiam se manifestar, e até mesmo havia, de certa
forma, uma luta, mas só que era uma luta oral, não era uma luta das
armas. Isso já foi mencionado aqui.
O
que seria então a política na visão antiga? A política visa ao
bem-estar da sociedade. Esse conceito é tão importante, tão caro e tão
difícil de ser definido. O que é bem-estar? Diria que os conceitos mais
importantes da Ciência Política, especialmente a Ciência Política
contemporânea, têm dificuldades em serem definidos. O que é um bem
público? O que é um bem comum? Existe ou não uma vontade geral? Essa é
uma das grandes discussões em Ciência Política.
Com
essa perspectiva de bem-estar da sociedade, então, a ação de governar e
propor leis estaria comprometida com a preservação dessa mesma cidade,
combinada com a aptidão para comandar com sabedoria e justiça.
Outro conceito quase que praticamente impossível, e talvez o Prof. Romano
tenha outra opinião sobre isso, é definir o que seria justiça. A
justiça é algo que as pessoas têm a impressão se ela existe ou não, mas é
difícil medir, é difícil definir, é difícil quantificá-la. O que acho
interessante nessa visão é a política voltada para o bem comum, o bem-estar, e baseada na idéia de sabedoria e justiça.
O
que seria político na Antigüidade? Acho importante resgatarmos esse
conceito — fico me considerando cada vez mais um saudosista, eu já me
considero um defensor dos velhos tempos nesse sentido, o professor falou
dos conservadores —, o político é o homem de bem. Então, diria que
perdemos essa noção tão simples, tão básica e tão importante na Grécia
Antiga, na Antigüidade, etc. E hoje temos até dificuldade. Quando as
pessoas falam isso, as pessoas pensam: "O fulano é um ingênuo, ele não
sabe das coisas que estão acontecendo". Mas, na verdade, essa era a
razão verdadeira da política, era a essência da política. Trouxe aqui,
mesmo correndo o risco de, ao final, ser taxado de ingênuo,
ultrapassado, etc. Não faz mal.
Esse político converte a experiência na disposição para
a prudência, entendida como a ciência prática do legislador. Vejam
então algo mais interessante: o legislador tem que estar voltado para o bem-estar da sua cidade; logo tem que legislar com prudência.
Aqui,
a tradução perante cada situação, ou problema descoberto, a virtude de
deliberar com pertinência a respeito do existente e do eventual, a fim
de esclarecer o critério justo de ação política. Vejam novamente a idéia
de justiça implícita na ação política. Ou seja, o legislador atua em
função dos casos existentes, mas também em função de casos futuros. A
intenção é que haja uma lei geral, justa e que seja aceita por todos.
É
claro, é óbvio — não precisaria dizer, porque todos sabem disso —, que a
Justiça é um dos princípios gerais do Direito, mas, às vezes, as
pessoas não percebem isso. Então, o que seria a lei? A lei seria a
prudência aplicada ao governo da cidade. É interessante essa visão.
Como
poderíamos relacionar ética e política? A política estaria associada a
uma vida bem conduzida. Vejam que aqui, mais uma vez, temos a idéia de
uma ação valorada, o que seria uma vida bem conduzida ou mal conduzida?
Novamente a idéia de valores, ou seja, alguém opinará sobre esse valor. E
aqui discuto outro ponto, já mencionado pelo Prof. Romano, a política unindo-se à ética na retórica. Assim, a retórica seria o objeto do debate. Para Aristóteles, ela contribui para definir, digamos, uma potência humana, ou dito de maneira mais moderna, para potencializar o indivíduo.
Os
torneios oratórios substituíram a resolução violenta dos conflitos,
como bem disse o professor aqui, o Parlamento dá origem a lutas, a
brigas, etc., mas em muitos casos são lutas por valores, lutas por
idéias, lutas por ideais. Enquanto as pessoas estiverem lutando no
Parlamento, a harmonia social está garantida.
O
uso da palavra enuncia um projeto. A palavra pode ser de crítica, de
denúncia, de reforço da autoridade e até de constituição da capacidade
de manifestar o justo e o injusto. Vejam novamente a idéia de justiça
trazida à vida política. Ou seja, não se pode falar em vida política sem
se ter em mente o conceito de justiça ou conceito de ética.
A política ética na teologia medieval.
Outro
ponto interessante, porque já se tem uma mudança de perspectiva. Na
Idade Média, havia a idéia de uma ordem superior imposta a todos por
Deus, sob a forma de lei. Ou seja, todo Poder vem de Deus. O advento e o
sucesso do cristianismo acabou levando essa nova perspectiva a tomar
corpo na Filosofia. Pouco antes, em Roma, havia o reino de César,
temporal. Na Idade Média, surge mais um: o reino de Deus, espiritual.
Ambos seriam continuação dessa perspectiva de visão divina. Nasce uma
nova forma de governo: a teocracia. Hoje, alguns dizem: a teocracia é
uma coisa ultrapassada, velha. Mas até hoje existe no Irã, Arábia
Saudita e em outros países. A legitimação do regime se dá então pela
palavra de Deus. Passa-se então dos civitas para o de regnu, de cidadão para o de reino, ou seja, a idéia de reino onde o cidadão passa a ser um súdito. Haverá um senhor para o qual se presta um serviço de vassalagem, e o reino, a idéia de Cristo Rei, a idéia da cidade de Deus.
Não
preciso nem dizer que o maior defensor dessa perspectiva foi justamente
Santo Agostinho. Forma-se então uma espécie de oposição entre a lei
divina e a lei humana. O que seria a cidade ideal na concepção de Santo
Agostinho? O que ele diz? Aquilo é modelo de cidade, mas nós nunca vamos
alcançá-lo. Porém, isso não quer dizer que não devamos perseguir esse
ideal. Ele é o nosso objetivo.
Uma
cidade perfeita seria aquela baseada nas escrituras, que se contraporia
à decadente cidade humana, onde a lei divina foi degradada. Esse
modelo, o sonho de cidade ideal, também está presente em Platão.
São
Tomás de Aquino retomou a visão aristotélica de bem comum. Difere na
parte em que São Tomás de Aquino diz que política consiste no
aprendizado da legislação justa, do ordenamento das coisas e dos homens,
tendo em vista o bem coletivo e a justiça divina.
Vejam
que independentemente do período histórico, alguns conceitos são
perenes, ou seja, a idéia de justiça permanece, a idéia de legislação
voltada para o bem comum
permanece. Apenas na perspectiva medieval, ou logo depois, Deus é o
legislador de todas as coisas. Ele vai impor a lei eterna, a lei divina.
Existe o governo divino que visa o bem comum. Não se trata de mais um modelo, agora é uma possibilidade. Então, para São Tomás de Aquino, as pessoas deviam implantar esse governo divino na Terra.
Com
o advento da modernidade e o nascimento do Estado moderno, surgem
outras correntes de pensamento, como o humanismo e o racionalismo. Essas
formas de pensamento reestruturarão completamente a perspectiva
política. É o início da separação do religioso e do político, como já havia ocorrido de certa forma na Grécia Antiga e em Roma. Agora, volta a se separar dentro de uma nova perspectiva.
Alguns
autores, e não desejava entrar nessa discussão, talvez a maior parte
deles, apontam O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, como o ponto de
referência dessa divisão. Por que Maquiavel? Porque ele busca a verdade
das coisas. Maquiavel não aceita mais a idéia de uma verdade divina, de
uma lei divina. A política é governada por outras leis que não as leis
divinas. As leis políticas são próprias. Aí Maquiavel estabelece a
divisão entre a moral e a política. A partir daí, certos atos realizados
pela política estariam justificados. Não seriam justificados do ponto
de vista do indivíduo, mas politicamente são aceitáveis. Então, como
mencionei, política e moral estão separadas. E o príncipe — talvez seja o melhor exemplo disso —, para se manter no poder, pode recorrer a várias artimanhas, como exercer todo o mal de uma vez só e o bem aos poucos.
Surge então Spinoza, bastante citado aqui. Não quero me alongar neste ponto, apenas chamar a atenção para
um aspecto interessante. Ele muda e por isso é considerado um dos
maiores pensadores da questão ética. Ele muda o conceito de Deus e de
ética. Começa a falar que Deus é o Universo, e alguns autores dizem que a
posição dele se aproxima de algo que lembraria o panteísmo. No entanto,
ele vai mais além, e esse é o ponto interessante, porque ao mesmo tempo
em que diz que Deus é tudo, Deus acaba não sendo nada; se Deus está
presente em todas as coisas, ele também não está presente em nenhuma, ou
seja, ele acaba tirando o aspecto divino de Deus. Tanto isso é verdade
que ele diz: o homem existe para ser feliz. Ora, se Deus nunca disse isso, a perspectiva é mundana, não é mais divina — essa é uma interpretação.
O que o homem busca para
ser feliz? Ele busca o prazer e a ausência de dor, que não são
conceitos divinos, mas conceitos individuais, completamente opostos
àquela perspectiva. O homem bom e feliz, o homem sábio que busca o
conhecimento também não são objetivos de perspectiva divina. Todo homem
deve amar a si mesmo e procurar o que é útil. É a concepção utilitarista
da sociedade centrada no homem e não em Deus. Ao mesmo tempo em que
Spinoza fala da importância de Deus acaba de certa forma dessacralizando
o Divino, ao mencionar e valorizar princípios humanos.
Nietzsche
é outro autor que merece ser citado, e evidentemente não posso citar
todos. Talvez Nietzsche represente o fim de um ciclo quando diz que Deus
está morto. Ele acaba completamente com qualquer elo possível e
imaginário, qualquer associação entre Deus e a sociedade. Ele considera o
cristianismo uma doença social destrutiva, porque transforma homens em
ovelhas, em pessoas passivas. Afirma ainda que não é isso que
precisamos; na verdade, precisamos de super-homens. Ele radicaliza
bastante sua vida, sua perspectiva. Para
Nietzsche, o homem deve atingir o seu mais alto potencial e sem nenhum
limite, vejam só. Aqui ele menospreza completamente qualquer noção de
ética. O que é ética para Nietzsche? A moralidade do indivíduo está acima do bem e do mal. Isto é, o indivíduo está livre para agir conforme a sua consciência determina. Esse ponto me lembra muito, não sei se o Prof. Romano
concorda, a idéia do Leviatã, de Hobbes: o imperador, o soberano não
tem limitações; ele age conforme a sua consciência. Então, esse
super-homem está acima do rebanho. Ele não é mais prisioneiro dos
costumes nem da moral. Toma suas decisões éticas baseado em sua própria
moralidade, que não é imposta pela sociedade.
Vejam
o risco a que chegamos: é o completo o desaparecimento da ética. Não
preciso dizer — a maioria dos senhores e senhoras sabe disso — que
Nietzsche é considerado por muitos, e me incluo nesse grupo, como um dos
principais inspiradores do regime nazista. Vejam então que a idéia de
ética, de bondade ou de moralidade simplesmente desaparece, em razão
desse super-homem que, no caso, alguns autores consideram como o homem
ariano, o homem nazista.
Próximo.
Chegamos à ética na sociedade política contemporânea. E tomo a
liberdade de citar Marx Weber, um dos autores que considero dos maiores
sociólogos de todos os tempos, não só século XX, mas talvez de todo o
período contemporâneo. Weber dizia que existem dois tipos de ética: a
ética da convicção e a ética da responsabilidade. O político jamais pode
ter a ética da convicção. O político, por exemplo, jamais pode ser um
pacifista. Por quê? Porque em alguns momentos ele pode ter de tomar uma
decisão que vai acarretar a morte de pessoas, como no caso de uma
guerra. Se ele for um pacifista, ele vai pensar: não posso agir dessa
forma, porque contraria os meus princípios. Weber diz que o homem
político tem de ser pragmático. E eu poderia citar como exemplo Gandhi,
ótimo para libertar a Índia da dominação britânica, mas talvez um mau Primeiro-Ministro em virtude das decisões que teria de tomar.
E
o que ele diz ? Que o político deve atuar em razão da ética da
responsabilidade. E o que seria essa ética da responsabilidade? Ele deve
estar consciente de que suas ações terão efeitos nas gerações
seguintes.
Aproveito a oportunidade para
citar um caso real. Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill recebeu
informações de que os nazistas iriam bombardear uma cidade próxima a
Londres. Ele tinha também a informação de que nessa cidade haveria um
culto com cerca de 300 pessoas no momento do bombardeio. Se houvesse o
bombardeio, essas pessoas certamente morreriam. Sempre um exemplo nas
discussões sobre ética, a pergunta é a seguinte: o que Churchill deveria
fazer? Avisar as pessoas sobre o iminente bombardeio e, com isso,
salvar vidas humanas, ou permitir o bombardeio e manter em segredo a
decifração do código dos nazistas e, com isso, possibilitar que futuros
segredos militares fossem desvendados?
Não
preciso dizer qual foi a opção do Churchill. Ele fez a opção pela
última alternativa. Ou seja, deixou a cidade ser bombardeada; talvez
centenas de vidas tenham sido afetadas pelo bombardeio nazista. Mas o
que ele poderia argumentar a seu favor? Eu agi com a ética da
responsabilidade. Aquelas vidas humanas perdidas no bombardeio foram a
contribuição do Reino Unido para
a derrota do regime totalitário nazista. Então, ele não agiu conforme a
ética da convicção, mas conforme a ética da responsabilidade proposta
por Marx Weber.
Próximo. Chegamos ao ponto final. Quero manter-me fiel à minha promessa de falar em torno de 15 minutos, para não perder a atenção das senhoras e dos senhores. Quero referir-me agora à crise da ética que vivemos hoje.
Por
que existe essa crise da ética? Porque não temos mais nenhum
referencial. Como não existe mais uma relação entre moral, religião,
bons costumes, o que é certo, o que é errado, as pessoas se sentem sem
ter que dar satisfação dos seus atos. Ah! Mas existe a lei. É claro que
existe a lei. Mas sabemos também que nem todas as pessoas seguem a lei
na esfera privada.
Então,
quais são as grandes questões do nosso tempo, tanto no final do século
XX, quanto no início do século XXI? Eu ousaria dizer que as grandes
questões do final do século XX e do século XXI são as questões éticas.
Quem em parte traz para nós
essas discussões, por exemplo, mas não apenas eles, são os ecologistas.
Quando os ecologistas falam: temos de pensar nas próximas gerações, eles
estão atuando de maneira ética, ou seja, estão preocupados com a ética
da responsabilidade no sentido weberiano. Não sei se eles sabem disso,
mas estão seguindo a segunda versão da ética do Weber.
Direitos
humanos. Neste particular, quero destacar o papel importantíssimo das
organizações internacionais, da Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Quando alguém cria uma carta de direitos humanos, traz a questão da
ética para o primeiro plano. Se, em muitos casos, o príncipe abandonou a moral para simplesmente seguir a razão do Estado, as organizações internacionais tentam resgatar essa moral e ética perdidas.
Não
quero entrar na discussão se os direitos humanos devem ser vistos de
uma perspectiva universalista, globalista ou se são relativos, variam de
cultura para cultura — essa é
outra discussão —, o que quero ressaltar a importância de se resgatar o
conceito de direitos humanos. Por exemplo, a questão do aborto. Deve
haver aborto legal ou não? Nos Estados Unidos, até hoje não há
legislação federal sobre aborto — alguns Estados possuem, mas a União,
não. Todas as decisões importantes sobre aborto nos Estados Unidos foram
tomadas pela Suprema Corte. A questão da eutanásia, também uma grande
polêmica, a questão da bioética, a questão de transgênicos ... Vejam o paradoxo
do final do século XX, início do século XXI: a ciência avançou tanto, é
até capaz de criar vidas em laboratórios, e o cientista, que não tem de
dar satisfação a ninguém dos seus atos, agora está sendo premido por
questões éticas.
Até que ponto ele pode criar uma vida humana? Não temos resposta para essas questões, porque a ética está em crise. Por isso, é importante resgatarmos o conceito de ética.
Estamos
vivendo a questão da guerra no Iraque. Quantas vidas foram perdidas em
virtude da política externa ou do interesse nacional de uma potência
imperial?! Como a sociedade internacional reage a esse fato?
"Ora,
mas existe a Organização das Nações Unidas", dirão alguns. Com certeza,
existe a ONU, mas o que a ONU fez relativamente à atuação concreta de
um Estado? Nada. Ela se viu paralisada.
E somos novamente obrigados a resgatar Hobbes: quem falou mais alto foi
aquele que tinha a força, o poder, tinha o maior exército do planeta.
Mas
será que é esse tipo de sociedade que queremos? Será que nós queremos
ser governados pela força, por um modelo de democracia, por um estilo de
vida que não é o nosso? Não quero entrar no mérito da questão — se
gosto ou não do Governo Bush; não tenho nada contra nem a favor, pelo
contrário —, mas quero mencionar uma ação específica sobre a qual acho
que vale a pena todos refletirem. Uma das primeiras ações que ele tomou
após a vitória, não para Presidente em 2000, mas para
a Câmara e o Senado em 2002, foi uma nova lei que restringe os direitos
humanos. Hoje, nos Estados Unidos, qualquer indivíduo pode ser detido
pelos órgãos de segurança baseado apenas em forte suspeita, para
ser investigados se praticou algum ato terroristas ou se nele está
envolvido. E o indivíduo pode ficar — não sei quantos exatamente —
talvez mais de 30 dias preso sem ter um processo constituído contra ele.
Isso é gravíssimo. Nem em nosso regime militar chegamos a esse ponto.
Agradeço mais uma vez ao Dr. Pinotti e aos senhores a presença. Estou à disposição, caso haja alguma pergunta.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecendo aos Profs. Ricardo Caldas e Roberto Romano,
reiteramos que as exposições foram riquíssimas, muito instigantes e
valiosas, produziram um nível de reflexão que, no pragmatismo do
Parlamento, nem sempre acontece.
Temos 30 minutos para
os debates, respeitando o horário de partida dos nossos convidados e o
da sessão plenária da Casa, que terá Ordem do Dia. Vou insistir na
sistemática que o Deputado José Thomaz Nonô, de forma rebelde — S.Exa. é
um revolucionário do PFL —, impediu, que é um conjunto de indagações.
Peço aos debatedores para registrarem as perguntas. Depois, faremos as considerações finais.
Está franqueada a palavra ao Plenário para a formulação de perguntas.
Com a palavra a Sra. Adísia Sá. Seja bem-vinda.
A SRA. ADÍSIA SÁ - Boa-tarde. Eu sou a professora e jornalista. Valeu a pena ter saído ontem do Ceará e retornar amanhã para
assistir a esse encontro. O coroamento, sem sombra de dúvida, ocorreu
agora, quando se fez uma reflexão sobre ética, a parte justamente de que
estamos precisando: da teoria e da provocação.
Tenho duas perguntas a fazer. A primeira é dirigida ao Prof. Romano. O Prof. Romano
fez uma análise do quadro político-social do Brasil, dando uma visão
panorâmica desse quadro que tanto nos angustia. Mas, como um pensador,
ele não nos deu uma resposta — apenas nos provocou, nos instigou. Como
eu ainda me ligo muito a Marx, e nós já explicamos muito o mundo em uma
das suas teses sobre Feuerbach, agora chegou o momento de mudar o mundo.
Pergunto ao professor: neste quadro, nós não temos um caminho? Que
caminho seria esse?
E
ao Prof. Caldas farei a outra pergunta. Costumo, em "n" palestras que
tenho feito pelo Brasil sobre ética — que é minha área predileta, fora a
do jornalismo —, dizer que sou muito feliz com esse momento de grande
impacto e de tragédia humana que vivemos, em que nada está — ainda o
velho Marx &mdashestá sustentado, tudo está se esvaindo. Neste
momento de contradições, neste mundo de indagações que nos cerca —
indagações que levam as pessoas de pensamento a uma angústia filosófica e
existencial —, sinto-me feliz. Tudo está se esgarçando, tudo está sendo
destruído, tudo está desmoronando. Pergunto, então, ao Prof. Caldas:
este momento de hecatombe epistemológica, existencial, política, não
será um parto, não estaremos partureando uma nova ética?
Muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Obrigado. Alguém mais?
O SR. ANDRÉ BOR-ROZA - (Exposição em espanhol)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) Mais alguém? (Pausa.)
Então,
permitam-me algumas palavras. Os nossos professores foram os gregos;
passamos por Spinoza e chegamos a Weber. Agora, eu quero
"tupiniquinizar" a questão.
Na
sua origem, a República brasileira foi fortemente influenciada pelo
positivismo. E o positivismo tem um elemento autoritário forte no
exercício da política. E o certo é que chegamos ao início do século XXI
com uma inegável crise da representação.
Senso comum: todo político é ladrão. Há até uma música gravada pelo sobrinho do Tim Maia que diz: "Manuel foi para
o céu.... se eu fosse um político minha vida não estaria assim". A
gente dança distraidamente e é subtraído em tenebrosas transações...
A minha indagação é muito imediatista talvez. Será que há elementos para
se perceber, no Brasil de hoje, de democracia formal — democracia
formal que na República Velha garantiu o predomínio oligárquico —, do
século XXI, inclusive com a troca de guarda no Palácio do Planalto, aqui
ao lado, possibilidades concretas de avançar nessa questão comezinha da
ética na política? Que passos este Parlamento, por exemplo, poderia dar
no sentido de avançar nesse aspecto, para ganhar credibilidade?
Hoje
de manhã, Presidente João Paulo Cunha, abrir este seminário, disse que o
Poder Legislativo é o mais aberto, o mais transparente e, por isso,
apanha mais. Mesmo assim — e parece até erudição pequenininha de
musicólogo —, todo mundo diz que o Parlamento não é a Geni nacional. É
ótimo ser Geni. Ninguém ouviu a música, nem percebeu a letra do Chico. A
Geni era mal vista, mas era fundamental: ela é que salva a população.
No entanto, não é bem isso o que o povo pensa de nós. Não somos nem Geni
— e nós contribuímos para isso, no exercício do mandato.
Concretamente, para essa representação ser mais substantiva, para o povo se identificar um pouco mais conosco, para afastarmos de vez o perigo do autoritarismo, para
aquela frase muito bonita do Mário Covas — não sei se perceberam,
gravada em bronze no hall do Anexo II desta Casa, "Com todas as mazelas,
com todas as mediocridades, é melhor um Parlamento do que nenhum
Parlamento" — ser confirmada, que avanços os senhores nos recomendariam,
como cidadãos que estão lá na base? Porque tenho certeza de que a
Comissão de Ética e Decoro há de tentar também, durante o nosso mandato,
melhorar essa concepção.
O
SR. DEPUTADO ORLANDO FANTAZZINI - Deputado Chico Alencar, permita-me
fazer um questionamento que muito me preocupa. Andei refletindo sobre
essa questão da ética da convicção e da ética da responsabilidade.
Parece-me que muita gente, sob o manto da ética da responsabilidade,
justifica tantas mazelas, tantos desrespeitos e tanto aviltamento à
dignidade humana. Hoje, isso deve estar prevalecendo nos Parlamentos em
geral e não só aqui no Brasil. E podemos fazer menção aos Parlamentos
americano, inglês e tantos outros, que apóiam a invasão ao Iraque, o
genocídio. Será que essa ética da responsabilidade não é uma criação para justificar a falta de ética na vida cotidiana dos Parlamentos e da sociedade como um todo?
O SR. ALBERTO ARAGÃO - Boa-tarde.
Quero parabenizar os presentes e dizer o seguinte.
Pegando
a deixa do Deputado Orlando Fantazzini, falamos da ética da convicção e
da ética da responsabilidade, mas me parece que temos duas ordens: a
ordem do dever ser, do ideal, e a ordem da realidade. E ainda podemos
falar da ética da efetividade. Seria a concretude, a realização dos
propósitos, dos princípios incluídos na Carta Magna para o cidadão. A ética da efetividade dos direitos talvez seja um ponto importante.
O SR. JAIME FERREIRA LOPES - Sou assessor da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados.
Pelas exposições aqui proferidas, também dá para
apreender isso. A sensação que vivemos hoje é a do império do
pragmatismo, não só na política, mas também no contexto da vida em
geral. Hoje, ser pragmático se tornou um caminho louvável que deve ser
sempre perseguido. E, às vezes, em nome ou a partir dessa visão de que
se deva ser pragmático sempre, a ética vai para o espaço. E quando, às vezes, alguém se coloca contrário a essa visão, é tachado de jurássico, de não ser moderno.
Então,
como sair dessa contradição — e essa seria a minha indagação — ao mesmo
tempo, sem perder a capacidade de ser pragmático? Em alguns momentos,
isso é necessário, mas não como norteador da vida política.
O SR. RUY SIQUEIRA - Sou Professor de Ética do UniCEUB e Secretário da Comissão de Direitos Humanos.
Quero fazer uma pergunta ao Prof. Ricardo Caldas. Nessa crise dos paradigmas
que vivemos atualmente, a crise da ética, enfim, em outras instâncias —
parece que foi trazida a questão da simpatia pelo conceito tradicional
—, a pergunta é a seguinte: o que seria esse retorno à simpatia, ao
conceito tradicional? Eu tenho um problema sério. O senhor em Estados
teocráticos. De novo, é velha a idéia etnocêntrica, que é o islâmico. E
esquecemos que a modernidade não deu conta dessa superação do Estado
teocrático. Em algumas Constituições dos países nórdicos — estou falando
da Europa moderna —, está inserida no preâmbulo a idéia da igreja
reformada. No Preâmbulo da Constituição brasileira está a inscrita a
palavra Deus. A minha pergunta é: nesse retorno ao conceito tradicional,
é possível construir uma ética desvencilhada dessa cultura cristã, tão
forte e presente na moral e na ética, por exemplo, e até mesmo no
Direito, sobretudo positivista?
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Vamos agora para a etapa final, ouvindo primeiramente o Prof. Roberto Romano.
O SR. ROBERTO ROMANO - Diante de todas as perguntas, a começar pela da Sra. Adísia Sá, gostaria de fazer uma profissão de fé.
Sou
adepto das luzes do século XVIII e sou platônico. Por que sou platônico
e adepto das luzes? Porque acredito que a vida humana é uma produção
técnica. Ela é uma produção de arte. Em Platão, o demiurgo é um
technist. Ele produz o cosmos, e o faz com tamanho engenho e arte que
fica contente, porque o mundo é bonito, ele vale a pena.
Na
base dessa máquina do mundo, exposta no Timeu, ele propõe a República. A
República é uma máquina de viver bem. É uma técnica produzida para
que as pessoas vivam bem e felizes. Nessa perspectiva, governar — ele
usa uma metáfora de ordem técnica — é tingir almas com a tintura das
leis. Por quê? Se alguém apenas colore o exterior do corpo, o sol vai
embora e desaparece o respeito. Mas se tinge as almas com a tintura das
leis, não precisa mais forçar. Aquilo é uma atividade técnica do
indivíduo; ele vive aquilo daquela maneira; ele aprende a técnica de
procurar traços.
Outra
metáfora muito utilizada por Platão é a da caça. É preciso que o Estado
impeça a caça do homem pelo homem — a guerra — e impeça a caça do homem
pelo homem — a escravidão. No caso, quando fala da justiça, a justiça é
como se fosse uma caça. Ela está no meio da moita. Diz, então, Sócrates
que temos de cercar a caça, mas não temos garantia de que vamos agarrar
a caça, porque ela pode fugir, pois é um animal astucioso. Portanto,
ninguém pode dizer que tem a justiça na mão. A justiça é uma busca; é
uma tentativa técnica de agarrar o que é correto. Definições a priori de
que isso é justo e isso é injusto são absolutamente errôneas sem o
conhecimento técnico e sem a prática da política.
Nessa
medida, o pensamento platônico — infelizmente Platão é conhecido pela
sua versão neoplatônica — reduz ao máximo a hierarquia na coisa no ser, e
traz a possibilidade de estabelecer gradações na atividade técnica e no
pensamento.
Ora, o
que fazem os pensamentos neoplatônicos, de Santo Agostinho, etc.?
Introduzem justamente a hierarquia. Temos um Deus — inefável, indizível,
etc. —, que jorra como fonte de luz e vai se tornando cada vez menos
claro e menos translúcido quanto mais próximo dos seres inferiores.
Temos a hierarquia, no caso de Dionísio, o Areopagita, com o grande
texto que serviu de espinha dorsal para
Santo Tomás de Aquino e outros, com a idéia de que o cosmos inteiro é
uma hierarquia de luz e, portanto, não pode existir igualdade. Assim,
toda a técnica humana é impotente para
quebrar o laço da hierarquia. Existem Deus, anjos, arcanjos, padres,
freiras e, lá embaixo, está o leigo comum. É contra a cosmovisão que as
luzes, e também o Renascimento, se voltaram. Por isso, o grande peso da
técnica no caso das luzes, o apelo à técnica, a política como técnica.
Claro
que os argumentos conservadores restauraram a idéia de hierarquia. O
romantismo conservador, o positivismo e outros pensam a hierarquia
contra a igualdade, que a igualdade é um conceito metafísico, uma
bobagem da Revolução Francesa. Assim, temos instaurada a idéia de ordem e
de hierarquia. Nesse quadro, o que mais se ataca é justamente a
identificação da palavra humana como técnica; o peso do logos como
capacidade de transformar, de nomear o mundo e de servir como
instrumento.
André
Leroi-Gouhran, grande etnólogo do século XX — que me parece cada vez
mais leitura urgentíssima, sobretudo em sociedades como a nossa —,
mostra a interdependência do instrumento técnico do nosso corpo e da
palavra. Ele mostra bem que, quando começamos a nos erguer, a ficar de
pé e emitimos os primeiros vagidos, as primeiras palavras com sentido, a
nossa estrutura craniana mudou: aumentou o crânio e diminuiu o queixo.
Ele usa uma expressão muito interessante: "somos inteligentes porque
ficamos de pé". Acho isso fantástico. A palavra é um elemento técnico,
um elemento de liberação.
O
que vejo como questão primeira em termos de atividade política? É claro
que a filosofia sempre foi uma tentativa de curar a palavra. Se existe
uma crítica virulenta no plano da cultura à logorréia é a filosofia, que
sempre procurou encontrar palavras que tenham sentido e eficácia e se
estabeleceu como terapia da palavra. Hoje em dia, é mais do que urgente a
terapia da palavra, porque, em nome da crítica e da recusa da
democracia, se fez a crítica da palavra. Quando alguém diz "isso é mero
discurso", lembro-me da frase de Hegel: "Discursos dirigidos a povos são
atos". A propaganda é muito clara nessa linha e a manipulação fascista
foi isso: atos. Não se separa o ato da palavra, porque a palavra encaminha, justifica o ato.
Nessa
medida, Sra. Adísia Sá, parece-me que a sua atividade, a atividade da
imprensa, da universidade, do Parlamento, é justamente a primeira
atividade política no sentido de restaurar a dignidade da palavra e a
confiança na palavra. Quando estendo a mão e digo "pegue, que você não
cairá no abismo", se isso for falso significará morte. Portanto, "confie
no Parlamento, mas votaremos todas as leis que vêm do Executivo",
"confie no Parlamento, mas lhes trairemos", ou, segundo o exemplo do
Deputado José Thomaz Nonô, "confie no Parlamento, mas na hora de votar o
confisco das poupanças, apoiamos o Executivo", isso me parece um
elemento importante.
Do
ponto de vista político, não conheço outro filósofo que tenha dado mais
importância à palavra do que Marx, que tem uma formulação muito bonita
sobre a palavra e o valor do peso da palavra, inclusive em uma discussão
muito prática justamente sobre o dia de trabalho. Na discussão do dia
de trabalho, Marx faz a distinção das palavras gewalt e kraft, mostrando
que não podemos jamais deixar — para
escândalo de boa parte do marxismo — de ter esperança na possibilidade
de uma lei do Estado que modifique as relações sociais. Literalmente,
foi preciso uma lei do Estado para diminuir a jornada de trabalho. Essa questão precisa ser bem pensada.
Perdoem-me por falar nesta Casa desta maneira, mas o Estado brasileiro foi ideado para
ser contra-revolucionário. Quando o querido D. João VI veio fugido de
Napoleão, trouxe com ele a idéia de criar nos trópicos um Estado que não
caísse nas loucuras das revoluções francesa e americana. Antes, já
tinham reprimido as nossas revoluções, como a Inconfidência Mineira, que
era das luzes. É muito interessante lembrar que os inconfidentes
queriam instalar uma fábrica e uma universidade, duas coisas proibidas.
Quando
D. João VI veio com essa idéia, trouxe como proposta retirar do Estado
brasileiro aquilo que teria sido a desgraça da Revolução Francesa, isto
é, o poder dos Deputados, o poder das assembléias. Na condição de
Deputados Federais, V.Exas. devem se lembrar bem da anedota: "Saúdo
Vossa Majestade", quando o Imperador fechou o Parlamento e os
Parlamentares se inclinaram diante do canhão. Quando eles vieram com
essa perspectiva, no Primeiro Império, houve o contrabando da teoria do
Poder Moderador, de Benjamin Constant — o deles, não o nosso; não o
positivista, mas o liberal francês. Em Benjamin Constant — basta ler
seus textos — o Poder Moderador é neutro e serve para diminuir as tensões e os choques, dar um contributo para
melhorar a máquina do Estado, ideada por Montesquieu — trata-se de uma
máquina, porque é uma balança —,a inflexão dada na Constituição do
Estado brasileiro ao Poder Moderador foi que este deixou de ser neutro e
passou a ser determinante sobre os 2 outros Poderes. É por isso que, se
os senhores lerem Carl Schmitt, um dos mais ferrenhos defensores do poder decisionista, verão o elogio ao Poder Moderador do Império brasileiro.
O
que ocorreu quando se deu o final do Império? Houve a subsunção, a
passagem silenciosa, mas muito eficaz, do Poder Moderador, com todas as
suas prerrogativas, para a
Presidência da República. Vivemos essa realidade e não tocamos nela. Se
me pedirem alguma coisa nessa linha, diria o seguinte. Primeiro fato:
pense-se a estrutura, a gênese e a lógica do Estado brasileiro. Veja-se
se a introdução dessas prerrogativas da Presidência da República
correspondem ou não à diminuição da importância dos outros Poderes e se a
caça ao Parlamento e caça do Parlamento à Presidência da República —
porque também ocorre —, não provocam o desequilíbrio permanente que
notamos na República brasileira.
Este
é um ponto que me parece grave. Discutimos, discutimos, mas supondo
sempre este não-dito: temos o Poder Moderador. A tal ponto que os
Presidentes da República — não digo o atual —, estiveram colocados em
tal solidão que os define como guardiães únicos da totalidade do Estado.
Se ocorre qualquer problema na Presidência da República, o Estado
inteiro entra em absoluta subversão. Não preciso lembrar a abdicação de
Jânio Quadros e tudo o que sucedeu durante o regime militar como
resultado desse desequilíbrio.
No meu entender,
temos de ter a visão dessa ética, porque isso se transformou em
costume. Infelizmente, em decorrência disso, o Brasil é um país
executivo-centrista. Em qualquer instituição, o Gabinete é o mais
importante. Na universidade, se você for um bom membro da congregação,
já é candidato a diretor, se for um bom membro do conselho, já é
candidato a reitor. Tem-se a ilusão de que tudo vai ser resolvido no
gabinete reitoral. E se desvaloriza as congregações e as instâncias do
debate e da palavra, inclusive. Existe a crença, que o positivismo muito
ajudou a piorar, de que o Executivo, decide e é capaz. O positivismo é
uma espécie de transformação perversa do platonismo.
Luiz
Pereira Barreto, em seu discurso de 1900 ao Clube dos Engenheiros, tem
como idéia central: os engenheiros sabem, por isso podem prever, por
isso podem prover. Assim, só pode fazer política aquele que é um
técnico, que é um cientista do poder. O resto não tem mais importância.
Claro que os engenheiros não mandam mais; hoje, são os economistas. Os
economistas têm o monopólio do saber, da previsão e do golpe de Estado.
Perdoem-me, mas no Banco Central temos mais poder efetivo concentrado do
que no Parlamento inteiro, justamente pela preeminência do Executivo, o
que leva a muitos abusos, como as medidas provisórias e tudo o mais que
os senhores conhecem muito bem. Duas ditaduras, a de Vargas e a
militar, acentuaram o peso do Executivo, que virou um ethos, um costume.
Parece-me
que é preciso lutar pela valorização do Parlamento, do diálogo e dos
outros Poderes, mesmo que estes não queiram, como o Judiciário. Senão,
não vejo possibilidade de se estabelecer efetivamente uma República
igualitária no País.
A
imprensa parece-me fundamental, mesmo com as mazelas que tem, e eu as
conheço profundamente. Parece-me que a imprensa é uma forma de se manter
o valor do logos, o valor da palavra, o valor da fé pública. É por isso
que tenho essa convicção. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Prof. Roberto Romano a participação .Concedo a palavra ao Prof. Ricardo Caldas.
O SR. RICARDO CALDAS - Não vou falar sobre positivismo, porque o Prof. Roberto já dissertou sobre o tema. Prefiro responder às perguntas que me foram endereçadas.
Quanto
à questão da tragédia humana mencionada pela Sra. Adísia Sá, concordo
plenamente, e esqueci de mencionar a pobreza. Estamos convivendo com a
pobreza nos planos nacional e internacional e em níveis crescentes. Essa
é também uma questão que gera uma indagação ética.
Na verdade, não tenho assistente. Foi apenas uma brincadeira, não sei se engraçada ou não. Mas, para a informação do Plenário, acho que seria interessante mencionar.
Quanto
à crise da representação do Parlamento, concordo que ela exista — e,
aliás, já a procurei expor na Comissão da Reforma Política. Destacarei
alguns elementos do nosso sistema eleitoral, que não reflete mais a
vontade da população, na minha forma de ver. Está havendo um
distanciamento entre o eleitor e o eleito, e o nosso sistema não
contribui para diminuí-lo, ao contrário. Defendo 2 pontos importantíssimos para
corrigir isso: primeiro, o parlamentarismo, que aproxima o eleitor do
Governo. Temos de retomar a discussão sobre o parlamentarismo; e, junto
com ele, sugiro o sistema distrital misto, em que a metade do território
é divido em distritos e a outra em listas. Permite-se, assim, que o
indivíduo vote numa pessoa da qual ele está próximo.
Outro
ponto fundamental: não se pode falar em representação, em Câmara dos
Deputados ou em Senado Federal sem falar em partidos políticos.
Precisamos fortalecer os partidos políticos. A nossa civilização, hoje,
na minha forma de ver, não fortalece esses partidos. O voto em aberto
acabam estimulando uma guerra interna entre os Deputados, que deveriam
atuar de forma conjunta. Não vejo como fortalecer o Legislativo sem uma
reforma política.
Há
algo de novo? Eu diria que sim. A própria discussão encaminhada
inicialmente pelos ecologistas e depois por outros grupos, defensores de
aborto, contra a eutanásia, etc., está nos levando a repensar a
sociedade. Como vejo a nossa sociedade?
Nesse
aspecto, sigo tanto a visão de Raimundo Faoro quanto a de Sérgio
Buarque. Vivemos ainda, por menos que queiramos e não gostemos de ouvir
isso, numa sociedade tutelada, paternalista, desarticulada como um todo.
Ela só é articulada quando existem grandes interesses em jogo, os
quais, em geral, são específicos, de grupos de pressão que terão, por
exemplo, um ganho econômico, mas sociedade no sentido de povo vejo como
essencialmente desarticulada. As grandes discussões não chegam à
população. Ainda vivemos com essa herança patrimonialista, difícil de
romper. Isso é algo que levaremos muito tempo para modificar.
Vejo
de positivo, até certo ponto, as ONGs, no sentido de que elas mobilizam
as pessoas e geram capital social. Há controvérsias em Ciência Política
sobre a questão. Alguns autores da Ciência Política não aceitam que as
ONGs sejam estratégias de mobilização, mas, na verdade, grupos
mobilizados para atender a interesses específicos.
Não
vejo dessa forma. Acredito que as ONGs e a sociedade civil podem levar a
um crescimento da cidadania. Cito como exemplo o movimento do Betinho
contra a fome, que acabou gerando uma mobilização nacional e sendo
incorporado pelo atual Governo com um dos pontos de sua agenda.
A
questão do capital social é fundamental, no sentido de que procura
resgatar a idéia de civitas, de cidadão, de alguém que pode dar uma
contribuição à sociedade. Essa idéia de civismo, tão mal utilizada nas
disciplinas de OSPB, EPB, etc., agora está ganhando nova roupagem, de
civismo não militaresco, de preocupação com algo além dos nossos
próprios interesses, ou seja, de agirmos em favor do nosso bairro, da
nossa coletividade. E, a propósito, recomendo, para
quem tiver oportunidade de ler, o trabalho do Putnam, em que ele
analisa por que o norte da Itália se desenvolveu mais do que o sul e por
que o sul da Itália é tão pobre e tão clientelista. Qual a sua
conclusão? Não há capital social no sul; o capital social da Itália
concentra-se no norte, onde as pessoas participam mais da vida comum.
Elas exigem mais, portanto, há mais transparência. Então, o capital
social contribui para 2
aspectos: fortalecimento da democracia e desenvolvimento econômico. São
teses absolutamente originais e interessantes, que recomendo a quem
tiver oportunidade de ler.
A
questão da ética da responsabilidade. Weber, pelo menos na leitura que
faço, em nenhum momento sugere que a responsabilidade seja a maneira de
alguém não ter convicções. O estadista deve ter convicções, é claro,
tanto que ele divide os políticos em 2 grupos: os que vivem da política,
que querem extrair recursos da política, e os que vivem para a política. Ele supõe, é evidente, que quem vive para a política tenha algum grau de dedicação.
Obviamente
o estadista tem de ter convicções, mas no momento de agir ele tem de
levar em consideração as conseqüências da sua decisão. Esse o sentido da
ética da responsabilidade. Às vezes, ele pode até estar ferindo uma
convicção sua, como no caso de Churchill. Pode ser que Churchill não
fosse a favor de que pessoas morressem, mas era um momento em que havia a
necessidade de uma ação contra um mal maior, no caso, o regime
totalitário. A ética da responsabilidade, então, neste caso, acaba sendo
superior à ética da convicção.
Foi mencionada a questão da ética da efetividade. Da mesma forma que o Prof. Romano,
que se identificou com Platão, eu quero tomar a liberdade de me
identificar com Sócrates e Aristóteles, no sentido de que devemos buscar
novamente a virtude, que está no meio termo, no equilíbrio. Se alguém
radicaliza demais, se vai para
um extremo, perde a noção do meio termo. Aristóteles dizia não
acreditar na sabedoria individual, mas na sabedoria do coletivo. É nisso
também em que acredito.
Não
se pode defender a efetividade, ou seja, os fins, sem defender os
meios; senão, passamos todos a ser oportunistas — qualquer coisa que
façamos vale a pena se der um resultado certo. Por exemplo, o bloqueio
do Collor estaria correto se ele tivesse conseguido derrubar a inflação.
Eu acho que não. Aí vem a questão da virtude novamente. O que é um
cidadão virtuoso? E já me considero respondendo um pouco à pergunta
sobre em que sentido me considero um saudosista. Saudosista no sentido
de buscar, de ter e de querer retomar um pouco a visão de ética, que já
está perdida. Todos deveríamos ter a ética como forma básica de conduta.
Atualmente, que as
empresas modernas procuram? Muitas delas disseram não à corrupção, ao
trabalho forçado, ao trabalho infantil. Cito como exemplo o Instituto
Ethos, que procura estimular nos empresários a idéia de ética. Está
havendo uma retomada da ética, acredito. E eu diria que a retomada da
ética — talvez eu esteja sendo otimista demais — se dá em face da crise
que acompanhou o século XIX, o excesso de racionalismo que perdeu a
referência completamente entre o certo e o errado. O relativismo em
excesso acaba contribuindo para que não exista nenhum tipo de ética.
Responderei às últimas perguntas em conjunto, se eu puder. Elas se referem ao império do pragmatismo e à crise dos paradigmas.
Concordo que um excesso de pragmatismo leva ao fim da ética. Ou seja,
se o seu grupo está fazendo uma coisa que o beneficia daquilo, você
simplesmente fecha os olhos e diz: "Eu topo, estou dentro, quero
participar disso", porque é conveniente para você.
E
aqui quero retomar as idéias de Antígona, tanto a de Annouille, quanto a
de Sófocles, que coloca os seus princípios acima dos da cidade. O sogro
dela havia proibido que os militares mortos fossem enterrados em certa
região, e seu irmão havia sido morto e estava do outro lado do campo de
batalha. Proibida de enterrá-lo, ela disse: "Não vou seguir essa, lei
porque não posso seguir uma lei injusta". Ela era casada com o filho do
rei, considerado o melhor partido, jovem, belo, rico etc. As pessoas
perguntavam-lhe: "Você vai abrir mão do seu casamento para
defender o enterro do seu irmão?" E ela respondia: "Vou, porque não
posso viver numa sociedade em que os princípios pessoais têm de ser
encobertos por uma vontade que não é a minha". Ou seja, não há respeito
ao indivíduo, não há princípios, não há ética, não há moral, pois, de
acordo com a lei do sogro dela, quem enterrasse alguém morto na batalha
seria, necessariamente, executado. Então, ela prefere a execução a viver
em uma sociedade sem ética.
Aliás, essa é a mesma posição de Sócrates. Foi oferecido a ele inúmeras oportunidades para
escapar da execução, porém ele dizia: "Não, prefiro ser executado, mas
manter meus princípios, a viver em uma sociedade em que não acredito. Se
a sociedade permitida pelos deuses é tão boa, não vejo a hora de vir a
pertencer a essa nova sociedade. Se ela existe, vou aprender com ela,
talvez eu possa evoluir; se ela não existe, pelo menos dei a minha
contribuição nessa sociedade que vivemos."
Acredito que a crise do paradigma
— e os senhores têm a liberdade de discordar — não é por causa da
influência cristã. Da minha parte, eu seria até hipócrita se dissesse
que a ética tem de ser atrelada à religião x, y ou z. Devemos estar
acima disso. Devemos buscar o que cada princípio ou cada filosofia pode
trazer de bom.
Existem princípios que são absolutos e princípios que são relativos. Ou seja, existem alguns valores que mudam de uma sociedade para
outra, mas existem também alguns valores que são comuns, como não
matar. Se citar, por exemplo, não roubar, vou entrar em crise com a
sociedade cigana. Os ciganos não têm conceito de propriedade; logo, eles
não possuem conceito de roubo. Não é que eles defendam o roubo, não.
Mas para defender se essa
xícara é minha ou da Câmara ou se esse copo é da Câmara ou meu, tenho de
aceitar o conceito de propriedade. Se não aceito o conceito de
propriedade, posso levar esse copo ou essa xícara e não incorrer na
prática de crime. Vejam, então, que em algumas sociedades não há esse
conceito.
De qualquer
forma, há alguns valores que podem ser aceitos pela maior parte da
sociedade, talvez excetuando os ciganos, e que seriam as bases dessa
nova ética, que é o que os ecologistas, hoje, estão buscando quando
falam em desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável é
justamente a manutenção de um patrimônio que não é nosso — as florestas,
os rios, os lagos — mas que recebemos e que temos a obrigação de
preservá-lo para as próximas
gerações. Qual o direito que temos de aniquilar espécies inteiras? De
levá-las ao extermínio simplesmente pelo prazer? O homem é o único
animal que mata pelo prazer, nenhum outro faz isso.
Há
alguns pontos básicos dessa nova ética que não devemos discriminar,
tenha origem cristã ou islâmica. As coisas boas de cada sociedade podem
ser a base de uma nova ética que poderia ser uma referência — citei os
ecologistas como um exemplo disso.
Penso
ter respondido a todas as perguntas de maneira completa ou incompleta.
Mais uma vez só me resta agradecer aos que vieram prestigiar a nossa
apresentação e ao Deputado Chico Alencar, que está representando o
Deputado Orlando Fantazzini.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Muito obrigado, Prof. Ricardo Caldas.
Encerro aqui a minha tarefa de coordenador desta Mesa.
Um bom critério para
avaliarmos como usamos o tempo é verificar se, ao fazer qualquer coisa —
de tomar um café a participar de um debate —, saímos melhores do que
entramos. Creio que esse sentimento é generalizado.
Também saio um pouco mais angustiado, mas positivamente, para
avançar no caminho de pelo menos não matar — não matar inclusive a
esperança da população, que é teimosa em desejar dias melhores.
Passo o comando dos trabalhos ao chefe desse seminário. Novamente parabenizo
o Deputado Orlando Fantazzini e sua dedicada equipe, que proporcionaram
um momento de luz no Parlamento, o que não é muito comum. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos ao Prof. Ricardo Caldas, já o fiz pessoalmente ao Prof. Roberto Romano, e a todos a presença.
Temos
a convicção de que este primeiro encontro representou enorme
contribuição no sentido de que mantenhamos em nossa agenda,
quotidianamente, o tema ética e decoro parlamentar.
Temos
também a convicção de que este é o primeiro de vários outros encontros,
seminários e debates que serão realizados em Assembléias Legislativas,
Câmaras Municipais, até para
que possamos, aprimorando esses conceitos, manter uma presença mais
constante na sociedade e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar o modelo
democrático que queremos.
Agradeço
aos membros do Conselho de Ética, em especial ao Deputado Chico
Alencar, que compartilhou comigo a coordenação dos trabalhos — hoje
estive de manhã, e ele, à tarde —, e aos Deputado Patrus Ananias e
Luciano Zica, que fizeram exposições, e a presença do Deputado José
Thomaz Nonô, ex-Presidente do Conselho de Ética.
Precisamos
aprofundar-nos nesse tema, o que esperamos ocorra num futuro próximo,
fazendo com que a sociedade tenha do Parlamento não mais a visão de um
dos piores Poderes da República, mas que se sinta verdadeiramente
representada por aqueles que decidiu escolher para a defesa dos seus interesses.
Muito obrigado a todos. Um agradecimento especial aos funcionários do Conselho de Ética que se desdobraram para que este encontro pudesse realizar-se na data de hoje.