Tantas Páginas
Um blog sobre livros & demais coisas úteis
Paulo Franchetti, director da editora da Unicamp: «O acordo ortográfico é um aleijão»
Paulo Franchetti é crítico literário, escritor e
professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicou, no Brasil, entre outros livros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989), Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha (2001), Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007), e organizou o volume Haikai – antologia e história (1990). Preparou edições comentadas de Coração, Cabeça e Estômago (2003) e, para a Ateliê Editorial, O Primo Basílio (1998), Iracema (2007), A cidade e as serras (2007), Dom Casmurro (2008), Clepsidra (2009) e O cortiço (2012, no prelo). Publicou ainda, em Portugal, a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995); a antologia As aves que aqui gorjeiam – a poesia do Romantismo ao Simbolismo (2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (2008). É também autor da novela O sangue dos dias transparentes (2003), da coletânea de haicais Oeste/Nishi (2008), do livro de sátiras Escarnho (2009) e do livro de poemas Memória futura (2010).
Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp, tendo neste período conseguido 6 prémios Jabuti e colocado, no ranking de 2010, a Unicamp no 5º lugar das melhores editoras do Brasil, apenas com a Editora da UFMG melhor
colocada, em 4º, de entre as editoras universitárias. De notar que, de
acordo com esse ranking, entre as 19 melhores editoras do Brasil, 4 são
universitárias, ou seja, um pouco mais de 20%. Situação rara, em muitos
países, a começar por Portugal, e uma razão mais para ouvirmos Paulo
Franchetti, que junta às suas facetas de professor, orientalista,
crítico, poeta, ficcionista e editor (e motoqueiro…) a de conhecedor
profundo da literatura portuguesa, sobretudo das obras de Camilo Castelo
Branco, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Camilo Pessanha (cuja edição
fixou, laminando uma série de lendas de longo curso sobre o poeta e a
obra) e Fernando Pessoa.
Agradecemos a Paulo Franchetti a disponibilidade revelada e o empenho
colocado na resposta, desassombrada como sempre, às nossas perguntas.
TP: Pode dar-nos algumas
informações prévias sobre a Editora da Unicamp? Qual é o seu orçamento
anual? Quantos funcionários trabalham na editora e nas livrarias do
campus? Quantos livros publica a editora em média por ano?
PF. A
Editora recebe um apoio de cerca de R$ 300.000,00 por ano. Isso
constitui o seu fundo editorial e se destina a cobrir principalmente a
tradução e a impressão de obras que, apesar de importantes para o
público universitário, não produzem retorno de vendas, por se dirigirem a
um público muito restrito. Anualmente, com base em projetos específicos
e planilhas de custos, a reitoria pode suplementar esse valor. O
faturamento bruto da Editora da Unicamp gira em torno de R$
1.500.000,00.
Na Editora trabalham 25
funcionários, e nas duas livrarias, 4. Desses, apenas 8 são funcionários
públicos; os demais são contratados pela Fundação e têm seus salários e
direitos pagos com o resultado da venda de livros. De modo que a
Editora da Unicamp funciona mais ou menos como uma pequena empresa.
O número relativamente
elevado de funcionários se deve a uma estratégia definida pela direção:
fazemos internamente a revisão e a diagramação da maior parte dos
livros, tendo para isso quatro revisoras contratadas em período integral
e duas diagramadoras. Quando há excesso de trabalho, alguns serviços de
revisão e diagramação são terceirizados. Os funcionários, então,
promovem leitura aleatória do trabalho realizado, para controle de
qualidade. Isso tem garantido à Editora um excelente nível de correção
nas suas publicações, muito acima do padrão nacional.
A Editora publica em média 40
títulos novos por ano e 6 em segunda edição. Desse total, todos os anos
são feitas cerca de 24 reimpressões. De modo que a Editora põe na
praça, anualmente, cerca de 70 tiragens.
TP. Quais são as áreas mais fortes do catálogo da editora? Quais aquelas que gostaria de reforçar?
PF. As
áreas mais fortes são as humanidades de modo geral: história,
antropologia, filosofia, linguística e teoria e crítica literárias.
Creio que serão sempre as mais fortes e mais importantes, por conta
inclusive da forma de circulação do saber na Universidade: enquanto as
áreas de exatas e tecnológicas têm a revista científica como veículo do
conhecimento novo, nas humanidades é ainda o livro o veículo
privilegiado. Temos feito, nos últimos anos, um esforço no sentido de
ampliar o número de livros de divulgação científica, para atingir um
público mais amplo.
TP. No campo da
literatura, a Editora da Unicamp publica sobretudo clássicos, dos gregos
e latinos a Machado de Assis, mas ao mesmo tempo publica as traduções
de Augusto de Campos, a poesia de Décio Pignatari ou os ensaios de Paulo
Leminski. Esta conciliação é pacífica ou controversa dentro da editora e
na Unicamp?
PF. Creio
que é pacífica. A missão da Editora da Unicamp é publicar textos que
sejam importantes para o trabalho acadêmico, textos que sejam utilizados
em cursos de graduação e pós-graduação, bem como textos que sejam
referência de pesquisa nas várias áreas do saber. Nesse sentido, uma
edição bem cuidada da poesia de Décio Pignatari e dos ensaios de
Leminski tem tanta pertinência acadêmica quanto a publicação de uma nova
tradução da Divina Comédia, uma edição bilíngue dos hinos homéricos a Apolo ou a primeira tradução para o português de um livro do Paul Ricoeur.
TP. Como funciona o processo de selecção de títulos na editora?
PF. Há
três formas de seleção. A primeira é a que provém da oferta espontânea
feita por autores ou editores, que preenchem um formulário on-line e
remetem para que o conselho examine e decida pelo interesse em avaliar
os originais. Os projetos selecionados pelo conselho são submetidos à
análise de dois assessores, escolhidos entre os especialistas mais
reputados no área de conhecimento do trabalho. Uma vez aprovado pelo
conselho, com base nos pareceres da assessoria, o livro é encaminhado
para publicação. A segunda forma é a indicação de qualquer dos
integrantes do conselho. Um livro indicado por um conselheiro segue o
mesmo trâmite de um livro oferecido espontaneamente, isto é, segue
também para parecer de mérito de dois assessores. A terceira forma de
seleção é a que é feita por uma comissão de especialistas designada pelo
conselho. Trata-se de uma nova maneira de trabalhar na Editora da
Unicamp e que tem dado ótimos resultados. Funciona assim: o conselho
recebe, formuladas por docentes da Unicamp, propostas de criação de
coleções específicas, de caráter temático, que visem suprir deficiências
na bibliografia brasileira. Normalmente, são coleções de textos
relevantes escritos em outras línguas. Uma vez aprovada a proposta, o
conselho designa a comissão científica da coleção, que passa a ser
delegada do conselho, selecionando títulos a serem produzidos pela
Editora.
TP. Qual é o seu grau de autonomia na definição da política editorial, enquanto director?
PF. Não
creio que eu tenha autonomia, nem gostaria de tê-la. Como presidente do
conselho, posso, além de propor linhas de atuação, argumentar com base
nos fundos editoriais e nos compromissos já assumidos para o ano. Mas é
só. A política é sempre decidida em plenário no conselho. O que tenho de
decidir sozinho, junto com as gerências comercial, editorial e
administrativa, uma vez aprovado um título pelo conselho, é a escala e a
ordem de publicação dos livros.
TP. Qual a proporção de traduções e de produção própria no catálogo da editora?
PF. Nos últimos anos, cerca de 40% dos nossos títulos são traduções.
TP. O facto de os critérios de avaliação
da carreira de um professor universitário no Brasil estipularem que uma
tradução de um livro de referência é um item de grande relevância
curricular ajuda a encontrar universitários disponíveis para a tarefa
sempre árdua da tradução?
PF. Não creio.
Normalmente preferimos utilizar tradutores profissionais, deixando a
cargo de professores o acompanhamento da tradução e sua revisão técnica –
itens que não contam muito na avaliação da carreira. É certo que temos
alguns livros traduzidos por professores, mas isso se deve
principalmente ao interesse do docente no assunto e naquele título
específico, para utilizar nas suas aulas. Por outro lado, temos
publicado muitas traduções que foram apresentadas originalmente como
trabalhos de mestrado ou doutorado, especialmente no caso de textos
clássicos gregos e latinos.
TP. A Editora da Unicamp tem uma
significativa política de coedições (com a Edusp ou a Ateliê, para dar
dois exemplos de referência). A que se deve essa política?
PF. Também temos
livros em coedição com a UFMG, a Unifesp, a Uerj e outras, embora a
Edusp seja nossa maior parceira, de fato, dentre as universitárias. No
caso da Edusp, a associação é natural, pois reflete a ampla cooperação
acadêmica que as duas universidades têm em todas as áreas. Com a Ateliê
temos publicado de modo sistemático uma coleção, intitulada Clássicos
Comentados, cuja proposta agradou ao conselho por corresponder
plenamente aos objetivos da Editora da Unicamp.
Na definição de uma política de coedição com
editoras comerciais há dois fatores muito importantes a levar em conta.
O primeiro é, claro, o catálogo: a Editora da Unicamp só publica em
coedição com editoras comerciais de catálogo universitário de alto
nível. O segundo, não menos relevante, é o tamanho e a capacidade de
distribuição da editora de mercado que nos propõe parceria. Desde que
assumi, fomos gradativamente deixando de fazer coedições com editoras de
grande porte, como Moderna e Cortez, por exemplo (e recusando propostas
de outras, como a Globo), porque a distribuição universitária é mais
lenta e o que tendia a acontecer, na prática, é que acabávamos por
financiar a produção, estocar por breve tempo os exemplares que nos
cabiam e logo vendê-los, com os descontos de praxe, ao coeditor. Assim a
definição de um coeditor se pauta, no caso das universitárias, pela
qualidade do catálogo – e, no caso das de mercado, pela qualidade do
catálogo mais a dimensão relativa da empresa e sua presença no mercado.
As vantagens da coedição são evidentes: maior visibilidade do livro e
melhor retorno comercial, pois a coedição permite aumentar a tiragem,
diminuindo assim o preço de custo unitário.
TP. Pode dizer-nos quais são os principais problemas que uma editora universitária enfrenta no mercado brasileiro do livro?
PF. O maior
problema de mercado é o poder de barganha dos distribuidores e das
grandes redes de livrarias. Como se trata de um país gigantesco, os
custos das distribuidoras são altos – ou, pelo menos, isso é o que elas
alegam. Já as livrarias grandes não têm o argumento do custo alto de
operação, mas têm um mercado cativo e grande poder de vendas pela
internet. Assim, o desconto exigido por elas é normalmente de 50% sobre o
preço de capa – quando não de 55%! Isso faz aumentar muito o preço de
venda ao público, o que torna ainda menores as vendas de livros
universitários, que são, em princípio, adquiridos por estudantes. Outro
problema grave é que as bibliotecas brasileiras, em geral, não adquirem
livros. Se cada biblioteca universitária do país, em vez de nos enviar
ofícios solicitando doações (não só dos livros, mas também do frete para
enviá-los), comprasse os livros em que tem interesse, as editoras
universitárias teriam condições de aumentar as tiragens, dispensar os
intermediários e abastecer o mercado com livros mais baratos e de melhor
qualidade.
TP. Existe um circuito de vendas
específico da rede de editoras universitárias brasileiras, ou as
livrarias existentes nos campi regem-se pelos princípios universais do
mercado?
PF. Existe um circuito específico, que são
as feiras universitárias. A pioneira, a maior e mais interessante
comercialmente é a promovida anualmente pela Edusp. Nela vendemos mais
em três dias do que para distribuidores em 30. A feira da USP foi
idealizada pelo atual presidente da Editora, Plínio Martins Filho, que
se propôs a demonstrar que o livro universitário tem público, mas um
público que não pode adquirir os livros pelo preço que as formas de
circulação de mercado exigem que o livro tenha (a questão do custo de
distribuição, que expus na resposta anterior). Assim, a Edusp
convida todas as editoras de catálogo universitário do país a vender
livros no campus de Pinheiros, no final do ano. Não há custo para os
vendedores, mas há uma condição, que é decisiva: os livros têm de ser
vendidos com um desconto mínimo de 50%, ou seja, têm de ser vendidos
pelo preço que são entregues aos distribuidores ou redes livreiras. O
resultado é eloquente. Basta visitar a feira uma vez para compreender
onde está um dos principais gargalos do mercado do livro universitário.
TP. Com que apoios contribui o Estado brasileiro para a edição? A política brasileira do livro parece-lhe consistente?
PF. A Editora da Unicamp tem recebido algum auxílio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Mas não se trata de apoio à editora, e sim aos autores: eles apresentam
pedido individual à Fundação, que lhes concede um certo montante, que
poderão entregar a qualquer editora. Como a Editora da Unicamp goza de
prestígio, por conta de seu catálogo e sua seletiva política editorial,
muitos desses autores preferem publicar conosco, de modo que conseguimos
apoio para a edição de vários livros. Quanto à política federal, não
tenho muito a dizer, porque nos afeta pouco, já que o governo não tem
uma política específica para o livro universitário. Em geral não
dependemos de vendas governamentais.
TP. O Paulo é um crítico com uma intervenção pública frequente.
Como vê a situação da crítica de livros na imprensa no Brasil? Que
análise faz da evolução da situação desde os seus tempos de estudante
até os dias de hoje?
PF. Penso que não vivemos um momento muito
bom, no que diz respeito à mídia impressa. Mas não conto entre os
saudosistas. Creio que o que vem no jornal é, em geral, de pouco
interesse. Mesmo quando críticos notáveis, inteligentes e cultos são
convidados para escrever – o que não é tão raro quanto se diz – o espaço
físico destinado à literatura não permite mais do que a informação ou a
avaliação sumária.
No geral, porém, a crítica de livros é uma modalidade do marketing ou
da coluna social. É, na melhor hipótese, atividade jornalística. Mas há
outros espaços interessantes, nos quais a crítica se pode fazer de modo
menos apressado ou menos condicionado pela pauta imediata, pelo
“gancho”. O mais rico é ainda a revista. Impressa ou eletrônica, é na
revista que bons críticos têm espaço e liberdade para refletir sobre a
literatura de agora e de antes. Mas há também espaços alternativos e
interessantes, pelo nível muito variado das colaborações, como o jornal Rascunho e o portal Cronópios.
TP. Do que conhece, a situação da crítica de livros na imprensa no Brasil parece-lhe diferente da portuguesa? Em que aspectos?
PF. Creio que em Portugal o exercício da
crítica é mais efetivo. A discordância, a frontalidade, o exame rigoroso
têm mais espaço na crítica de livros em Portugal do que no Brasil. Mas
pode ser que seja apenas a idealização de quem está do lado de fora.
TP. Que ideia tem do estado actual da edição em Portugal e da evolução verificada na última década?
PF. Uma coisa que sempre me impressiona em
Portugal, a cada viagem, é a quantidade de livros produzida todos os
anos. É um país pequeno, com uma população menor do que a da cidade de
São Paulo, que conta com poucas universidades e, ao que me dizem, poucas
livrarias – aí, como aqui, a capilarização da distribuição dos livros
parece ter regredido bastante. No entanto, Portugal tem uma produção
enorme de livros, em geral bem editados. Não tenho ideia de quais são as
tiragens, nem qual é o real público comprador e/ou leitor de
literatura. Mas me parece um prodígio que a quantidade de títulos novos
cresça na proporção direta da queixa quanto à diminuição dos espaços de
venda e à diminuição do público leitor.
TP. Em termos comparativos, como vê a situação da edição brasileira em relação à portuguesa, da universitária à generalista?
PF. Creio que em Portugal não há nada que
se compare à edição universitária brasileira. Não só pela quantidade de
editoras, mas também pelo papel central que as editoras universitárias
representam na vida intelectual do país. Isso pode ser aferido de várias
formas: da presença maciça nas bibliografias especializadas à
referência constante na grande imprensa, passando pelos prêmios
literários em que se galardoam textos de investigação. No que diz
respeito às publicações de mercado, também é difícil comparar, dada a
diferente dimensão dos países. Proporcionalmente, a indústria editorial
portuguesa é muito mais poderosa. Quero dizer: se considerarmos a
dimensão dos países e a produção livreira. O que me parece curioso é que
haja em Portugal potentados editoriais, que inclusive atravessam o
Atlântico e vêm estabelecer-se no Brasil.
TP. O mundo da edição no Brasil tem formas institucionalizadas de
recompensa do mérito, inter pares: prémios, classificação das melhores
editoras, etc. Pode falar-nos disso e dizer-nos como se processam essas
avaliações, que em Portugal primam pela inexistência?
PF. No Brasil há grande empenho na avaliação e na classificação da produção intelectual na universidade. O regime do publish or perish se
impôs decisivamente no país. Assim, a publicação de revistas e livros
universitários cresceu muito e muitos programas de pós-graduação e
grupos de pesquisa dispõem de verbas que podem ser investidas no
financiamento de eventos e publicações. Por conta disso, o sistema
federal de avaliação dos cursos de pós-graduação tem vindo a implementar
critérios de avaliação de revistas universitárias e de livros. As
revistas acadêmicas brasileiras são todas distribuídas em categorias
hierárquicas que lembram a nota das agências de investimento… E também
se fala em ranking de Editoras, uma vez que a avaliação de
livros que hoje se faz é evidentemente impossível, dado o volume dos
títulos produzidos a cada ano. Além disso, hoje não há nenhum professor
de curso de pós-graduação brasileiro (nem mesmo de graduação) que não
tenha on-line o seu curriculum. Trata-se de um sistema
federal, aberto à consulta pública (lattes.cnpq.br), no qual os
docentes são compelidos a registrar suas atividades acadêmicas e,
principalmente, a sua produção científica. Os currículos dos docentes e
dos estudantes são elementos importantes para a avaliação federal dos
vários cursos de pós-graduação – cujo resultado é muito relevante, pois a
situação de cada curso na escala de excelência lhes determina o tipo e o
volume de verbas federais para custeio dos cursos de pós-graduação, bem
como o número de bolsas de estudos para alunos de pós-graduação. A
mesma base pública fornece os dados sobre os quais os comitês de
avaliação se baseiam para aferir os currículos dos pretendentes a apoios
federais (dos quais o mais notável é a Bolsa de Pesquisa do CNPq,
que garante aos pesquisadores de destaque um apoio mensal, por três ou
cinco anos, dependendo da categoria). Assim, não é de espantar que os
dados sobre publicações, editoras, revistas, coletâneas etc. sejam muito
valorizados. Prêmios literários que contemplam modalidades de
investigação – como o da APCA e o Jabuti –
entram no sistema de avaliação geral, e por isso terminam por ser
valorizados dentro da academia. Além disso, há universidades que têm o
seu próprio sistema interno de avaliação da produção científica dos
docentes. Na Unicamp, por exemplo, os docentes (mesmo os catedráticos)
somos obrigados (de três em três ou de cinco em cinco anos, conforme o
nível) a apresentar relatórios de atividades, de cuja aprovação depende a
manutenção do seu regime de trabalho em tempo integral (ou seja, se a
produção não for a esperada, o salário do professor pode ser cortado
pela metade). Ainda na Unicamp, com base nesses relatórios se atribui
anualmente a cada instituto um prêmio em dinheiro (equivalente a um mês
de salário de um professor catedrático) para que seja, com base em
avaliação objetiva e externa, atribuído a quem mais produziu. Não é
difícil compreender, nesse quadro, a importância, para nós, dos rankings e da produção de papers e
livros. Nem como a preocupação com índices que parecem indicar a
qualidade relativa não só das editoras universitárias, mas ainda das
próprias universidades, tem crescido.
TP. A crise dramática que Portugal atravessa tem levado as
editoras portuguesas de maior dimensão a apostar no mercado brasileiro.
Há uma presença visível das editoras portuguesas no Brasil ou trata-se
de uma ilusão de óptica?
PF. Sim. Há uma presença visível das
editoras portuguesas entre nós. Ainda esta semana saíram publicados os
primeiros títulos da recém-instalada Babel. O mercado brasileiro tem
crescido em todos os campos. Oxalá que a aposta esteja certa e que o
mercado brasileiro de livros cresça tanto quanto o de automóveis!
TP. Em poucos anos, o Prémio Portugal Telecom ganhou no Brasil
mais impacto do que o Prémio Camões. Pode tentar ajudar-nos a perceber
as razões do fenómeno?
PF. O Prêmio Camões é invisível no Brasil.
Pouca gente sabe de sua existência e dos seus resultados. Eu mesmo quase
nada sei. Nem quando se realiza, nem quem já o recebeu (sinal
eloquente: tive de ir agora mesmo à internet para saber quem foi
contemplado em 2011…). E pouca gente sabe ou se interessa por saber quem
é o júri ou como ele é composto e por quem é designado. Não há
envolvimento da comunidade intelectual brasileira no Prêmio Camões, que
termina por ter um caráter de coisa fechada, oficialesca, com sabor a
comenda ou homenagem pré-póstuma. Aliás, nesta pesquisa que acabo de
fazer para saber quem recebeu o prêmio no ano passado deparei com um
resumo da reunião que é bem instrutivo, pois nele se lê que a decisão do
júri foi premiar alguém de um dado país (dentro do sistema de rodízio
aparentemente), e que, decidido esse ponto, a escolha foi natural, pois o
nome fora já aventado antes. Isso embora membros do júri declarassem
candidamente conhecer apenas parcialmente a obra do galardoado. Ou seja,
foi tudo feito ali mesmo… Já o Portugal Telecom é dinâmico e tem
estrutura abrangente: todos os anos um enorme grupo de pessoas ligadas à
vida intelectual e universitária recebe convite para compor o júri
inicial – aquele que indicará os livros dos quais sairão os finalistas.
Isso dá ao Prêmio Portugal Telecom uma natureza pública, inclusiva –
democrática, pode-se dizer. A segunda fase é também muito transparente,
pois o júri que elaborará a lista dos dez finalistas é constituído por
votação do amplo júri inicial. Quando se divulgam os resultados,
divulgam-se primeiro os 50 finalistas, depois os 10 e, finalmente, no
dia da entrega, os escolhidos. Isso tudo gera não só envolvimento, mas
também grande divulgação. E há um outro elemento que torna o Portugal
Telecom mais “nosso”, isto é, brasileiro: ele premia majoritariamente
obras brasileiras. Assim, não há sequer como comparar os dois prêmios em
termos de percepção pública de importância no Brasil.
TP. Pode falar-nos dos autores portugueses que integram o
catálogo da Editora da Unicamp? O seu interesse pela literatura e
cultura portuguesas tem alguma responsabilidade nessa presença?
PF. Não temos tantos autores portugueses no
catálogo. Recentemente, publicamos apenas três livros do Abel Barros
Baptista, dois do Arnaldo Saraiva, um do Diogo Ramada Curto e um da Clara Rowland.
Temos, sim, muitos livros sobre autores portugueses. É possível que meu
interesse pela cultura portuguesa tenha algo a ver com essa presença.
Mas não apenas o meu. Meu parceiro de trabalho há 30 anos, que integra
inclusive o conselho editorial da Editora da Unicamp, Alcir Pécora, é um
estudioso da cultura e da literatura portuguesa. Juntos temos tido,
talvez, por conta de conhecermos mais a fundo o que se publica em nossas
áreas de trabalho, contato com autores que não tinham espaço no Brasil.
E ambos produzimos livros, publicados antes de eu estar na direção da
Editora, sobre autores portugueses: ele sobre Vieira e eu sobre Oliveira
Martins e Camilo Pessanha.
TP. O que acha do acordo ortográfico? Acha mesmo que, como dizem
os editores portugueses (e muitos intelectuais), o acordo foi uma
gigantesca maquinação brasileira para permitir que os livros brasileiros
entrem livremente no mercado português e no africano, acabando com a
indústria portuguesa do livro?
PF. O acordo ortográfico é um aleijão.
Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal
justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no
Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve
participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez
ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o
governo apressadamente o impôs como lei, fazendo com que um acordo para
unificar a ortografia vigorasse apenas aqui, antes de vigorar em
Portugal. O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos, de
eficácia duvidosa. Não sei a quem o acordo interessa de fato. A
ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a
ortografia em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de
grafias duplas permite inclusive a construção de híbridos. E se os
livros brasileiros não entram em Portugal (e vice-versa) não é por conta
da ortografia, mas de barreiras burocráticas e problemas de câmbio que
tornam os livros ainda mais caros do que já são no país de origem. E
duvido que a ortografia seja uma barreira comercial maior do que a
sintaxe e o ai-meu-deus da colocação pronominal. Mas o acordo interessa,
é claro, a gente poderosa. Ou não teria sido implementado contra tudo e
todos. No Brasil, creio que sobretudo interessa às grandes editoras que
publicam dicionários e livros de referência, bem como didáticos. Se
cada casa brasileira que tem um exemplar do Houaiss, por exemplo,
adquirir um novo, dada a obsolescência do que possui, não há dúvida que
haverá benefícios comerciais para a editora e para a Fundação Houaiss –
Antonio Houaiss, como se sabe, foi um dos idealizadores e o maior
negociador do acordo. O mesmo vale para os autores de gramáticas e
livros didáticos – entre os quais se encontram também outros entusiastas
da nova ortografia. E não é de espantar que tenham sido justamente
esses – e não os linguistas e filólogos vinculados à universidade – os
que elaboraram o texto e os termos do acordo. Nem vale a pena referir
mais uma vez o custo social de tal negócio: treinamento de docentes,
obsolescência súbita de material didático adquirido pelas famílias,
adequação de programas de computador, cursos necessários para aprender
as abstrusas regras do hífen e outras miuçalhas. De meu ponto de vista, o
acordo só interessa a uns poucos e nada à nação brasileira, como um
todo. Já Portugal deu uma prova inequívoca de fraqueza ao se submeter ao
interesse localista brasileiro, apesar da oposição muito forte de
notáveis intelectuais, que, muito mais do que aqui, argumentaram com
brilho contra o texto e os objetivos (ou falta de objetivos legítimos)
do acordo.
TP. Tem um iPad? E um Kindle? Como vê o futuro do livro em papel
num mundo tomado de assalto pela revolução digital e pelo download
pirata?
PF. Tenho um iPad. Não tenho um Kindle. Sou
um entusiasta da informática, mas acho que o livro em papel terá ainda
um longo futuro, por uma razão simples: é uma tecnologia perfeita para a
preservação da informação, que não fica antiquada, não depende de
atualizações periódicas do sistema operacional, não custa muito caro,
não é sujeita a roubo, nem a irremediáveis avarias por queda, vírus ou
descuido de armazenamento. É evidente, porém, que a forma digital
ganhará cada vez mais espaço, pelo custo baixo dos livros eletrônicos,
pela sua portabilidade (leva-se uma biblioteca pessoal num iPad hoje –
um dia talvez levemos o equivalente a todas as bibliotecas do mundo) e
pela rapidez de acesso à informação. A médio prazo, é provável que o
livro impresso, tal como já começa a acontecer, venha a ser
preferencialmente ou um objeto de arte, ou o lugar de materialização do
valor intelectual, no sentido que é fácil e barato publicar na internet,
mas caro e complicado publicar em papel – o que pode ser lido como: “o
que vale a pena incontestavelmente resulta num livro de papel”.
Quanto ao download pirata, creio que é inevitável, por enquanto. Mas hoje, com os scanners e câmeras digitais (além da velha máquina de fotocópia), o livro de papel tampouco está protegido do download pirata.
Creio que, desse ponto de vista, o livro eletrônico seguirá o rumo
aberto pelo interesse da indústria fonográfica, desenvolvendo mecanismos
de controle de cópias e preservação do direito autoral. Mas como os
valores envolvidos são menores, não acredito que o controle será eficaz.
E devo confessar que, como professor, me valho muito das bibliotecas
digitais, inclusive da do Google – e gosto muito quando encontro
disponível um livro de que preciso.
Não é, porém, no download do livro novo que se processará a mudança mais interessante no mercado livreiro. É no que toca ao download de
livros clássicos ou em domínio público. Aquela parte do catálogo das
editoras que consistia na republicação, sem aparatos e notas novas, de
textos clássicos sofrerá grandes golpes. E isso – veja como sou otimista
– é bom, pois só fará sentido, em breve, publicar em papel um livro
clássico se essa publicação apresentar um diferencial, uma novidade,
seja no apuro gráfico, na preparação do texto ou no aparato crítico.
TP. Pode indicar alguns dos livros que mais gosto lhe deu editar até hoje?
PF. Um dos livros que mais gostei de editar foi A formação do nome – duas interrogações sobre Machado de Assis, de Abel Barros Baptista. O livro, que em Portugal se chamava Em nome do apelo do nome,
nunca foi distribuído. A editora que o produziu morreu antes de o dar à
luz. Fiquei muito feliz, assim, por poder, assim que assumi a Editora,
publicar esse livro notável, que existia apenas na casa do seu autor, e
que estava destinado a alterar a leitura brasileira de um dos textos
mais referidos aqui, que é ensaio sobre o instinto de nacionalidade, de
Machado.
Também me deu grande alegria publicar a segunda edição de O teatro do sacramento,
de Alcir Pécora. Esse livro, que estabeleceu novos parâmetros de
leitura do barroco brasileiro, estava esgotado havia tempos. No
aniversário de 10 anos da primeira publicação, tive oportunidade de
fazer nova edição, tendo eu mesmo cuidado de lhe desenhar a capa e de
dirigir a diagramação.
Muito me alegrou também poder publicar, pelos mesmos motivos, o livro A sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen.
Por fim, eis alguns outros motivos de satisfação pessoal: Poesia pois é poesia, de Décio Pignatari; O livro agreste, de Abel Barros Baptista; A Divina Comédia, de Dante Alighieri, em tradução de João Trentino Ziller e com as ilustrações originais de Botticelli; O modernismo brasileiro e o modernismo português, de Arnaldo Saraiva; O conceito de universidade no projeto da Unicamp, de Fausto Castilho; e Poesia e crise, de Marcos Siscar. Também gostei muito de poder publicar as traduções de Augusto de Campos e o livro de ensaios de Paulo Leminski – especialmente este último, que reuniu textos até há pouco de muito difícil acesso.
TP. Em que situação gostaria de deixar a Editora da Unicamp quando chegar a hora de abraçar outros desafios?
PF. Gostaria de a deixar muito
profissionalizada. O que estou conseguindo fazer por meio não só da
constituição de um corpo de funcionários de rara competência, mas
principalmente com o trabalho em equipe de três gerentes notáveis, que
se encarregam da produção, das vendas e da administração, bem como de um
assistente técnico administrativo que faz todos os contratos, contatos e
acordos internacionais. Como a Unicamp prima pela qualidade acadêmica,
penso que o próximo conselho editorial será tão rigoroso e participante
como o atual. Assim, tendo publicado boa parte do catálogo hoje
disponível e tendo constituído essa equipe, creio que já posso dar por
encerrada esta etapa da minha vida profissional, com a sensação do dever
cumprido.