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Painel Justiça Para Todos
Prof. Roberto Romano
Justiça Para Todos? Ao contrário
de todas as exposições de vosso encontro, a minha talvez não seja tempestiva.
Não tecerei, porque me falta competência, considerandos jurídicos sobre o nosso
mundo estatal. Vou permitir-me seguir uma via paralela e mais própria à
filosofia. Os que trabalham na minha área desconfiam de termos e de enunciados.
Vou desconfiar em voz alta do objetivo definido para este painel. Os senhores
irão me perdoar a impertinência. Espero apenas que as minhas ponderações,
extraídas da filosofia, da religião e de uma cotidiana e contínua luta pelos
direitos humanos, sejam postas no rol das opiniões prováveis.
O tema indicado para a reflexão é
árduo. Sentimos angústia ao dele nos aproximar. Ele apresenta todas as marcas
da experiência definida pela estética filosófica como "sublime".
Respeito e temor, de um lado, aspirações nobres da luz natural, de outro,
cercam a noção arcaica de justiça. Quando evoco a palavra "arcaica"
refiro-me à lógica do termo grego, arché, que abarca ao mesmo tempo as origens
do mundo e do homem, o poder e o fundamento da polis. A noção polissêmica de
justiça evidencia o seu aspecto arcaico porque conduz o pensamento sobre o
poder para além da finitude, abrindo o horizonte em realidades que transcendem
o tempo e o espaço, rumo à divindade ou à natureza. Justiça plena não é
destinada aos mortais. Estes apenas conseguem entrever, com muitas
dificuldades, os traços de superfície da ordem justa. O mal e o bem são vistos
pelos humanos sem a devida profundeza. E por isto eles se colocam a julgar
tudo, do universo à divindade. É assim que surgiu a experiência de um tribunal
da razão onde Deus tem sido julgado desde os tempos antigos, constituindo-se o
campo imenso da Teodicéia.
Platão situa-se no início da
longa fieira dos filósofos que defendam as divindades, "os deuses são
inocentes". O mal no universo, entretanto, sempre levantou acusações
perenes contra os numes. A solução de Leibniz é conhecida: o mal seria um problema
de perspectiva. Nós, mônadas que espelham o cosmos, somos limitados. A nossa
percepção do mundo é sempre anamorfótica. ( ) Enxergamos tudo distorcido, de
modo que a justiça e a bondade nos parecem pervertidas ou enodoadas. Apenas
Deus visualiza o todo simultâneamente. Só Ele tem o saber sobre si mesmo.
Refletimos outros eventos e seres. Em nosso horizonte a justiça é relativa por
necessidade ontológica.
Assim, o tema da mesa e o seu
rigor "Justiça para todos", pode ser ponderado. A idéia mesma de
"pensar" une-se de imediato à de pesar. Pensamento é pesagem de
palavras e de conceitos. Todo juiz deve ser um pensador, imagino. A balança
depositada nas mãos da justiça é simbolo eloquente deste vínculo.( ) Deixem-me
ponderar esta moeda que se apresenta hoje para nós, o enunciado sobre a Justiça
para todos.
Pensadores gregos e personagens
bíblicos indicam a frágil consistência de nossa justiça, a sua pobre
universalidade. O mais arcaico dos livros sobre a justiça e a política, a
República platônica, insiste em mostrar que a justiça, para os mortais, é caça
fugidía, a qual sempre pode escapar de nossas mãos e inteligências. Permitam-me
repetir as palavras dos interlocutores daquele diálogo. Sócrates e Glaucon já
definiram as bases harmônicas do governo, com o estabelecimento de quem deve
mandar na cidade. Mas isto não basta. É preciso ir mais fundo e atingir a
justiça. Mas como encontrá-la? Olhe Glaucon, adverte Sócrates, "agora
temos de nos postar em círculo à volta da moita, como caçadores de espírito
atento, não vá a justiça fugir por qualquer lado, tornar-se invisível e
desaparecer. Pois é evidente que ela anda aí por qualquer canto. Olha então e
esforça-te por a descortinares, a ver se a avistas antes de mim e me
prevines". A Justiça não é evidente, pois habita, afiança o arguto
Sócrates, num "lugar inacessível e sombrio, pois é escuro e dificil para a
batida".( ) Resta a esperança de pegar a caça/Justiça através de seu
rasto. É para isto que Platão redigiu a República. Este texto apresenta as
pistas para se atingir a Justiça. Nenhuma certeza entretanto é concedida,
porque a caça depende da boa constituição do caçador, de seu treino, e
sobremodo de sua astúcia.
A busca da Justiça, determinada
enquanto caça que exige destreza do pesquisador, insere-se num pensamento mais
amplo sobre o mundo e a existência humana coletiva, onde o conceito mesmo de
astúcia define todos vínculos entre os seres. Para os gregos, a metis habita
todo ente vivo, sendo ela mesma uma forma de vida.
Todo ser possui sua astúcia, o
peixe a tem. O pescador dela precisa se utilizar. O camaleão e o governante,
todos expandem o seu ser através da astúcia. Ulisses é dito polimetis, homem de
muitas astúcias, e por isto sobreviveu aos horrendos monstros e aos mais
violentos inimigos humanos. ( ) A arte da caça e a política, bem como o
exercício da justiça, têm em comum a própria astúcia. Até os nossos dias a
palavra "meticulosidade" constitui um sinal distintivo do bom
governante e do juiz competente. A justiça e o governo correto resultam da
busca treinada e jamais são garantidos pelo status deste ou daquele indivíduo.
Se entre os gregos a justiça não
é um dom, mas deve ser conquistada com diligente inteligência, o Antigo
Testamento define que o único juiz e a única justiça efetiva é a divina. O
grande enunciado sobre o Deus justo encontra-se no Livro de Jó, que serviu até
em I. Kant como referência para o problema do mal e da liberdade humana. Lemos
no texto sagrado: "Na verdade, Deus não pratica o mal, Shaddai não
perverte o direito (...) Um inimigo do direito saberia governar? Ousarias
condenar o Justo onipotente?". Se na República a justiça se esconde num
lugar sombrio, aqui a injustiça, mesmo envolta em trevas, não escapa aos olhos
divinos: "não há trevas, nem sombras espessas, onde possam esconder-se os
malfeitores. Pois que não se fixa ao homem um prazo para comparecer ao tribunal
divino. Ele aniquila os poderosos sem muitos inqueritos e põe outros em seu
lugar".(34, 12-24).
Um fato interessante de
referência textual, ajuda a refletir sobre a justiça e o poder, neste Livro de
Jó. O texto é muito corrompido, cheio de incertezas para o exegeta moderno,
cujos parâmetros são dados pela ciência e pela história. Mas a Septuaginta e a
Vulgata trazem um versículo relevante, que ajudou a cultura cristã a pensar os
nexos entre o governo e a justiça divinos e o mesmo prisma no campo humano.
"Ele faz reinar o homem hipócrita por causa dos pecados do povo". ( )
Dois lados da mesma experiência sobre a justiça, bem apanhados por Tomás de
Aquino no seu comentário sobre Jó : Deus justo, povo injusto. E o resultado
disto é que reina o tirano que, bom artista, exerce o julgamento e o poder e
por isto ostenta a máscara da justiça, mas só a máscara. ( ) Esta doutrina
sobre o poderoso enquanto persona do ser divino tem origem no Evangelho de
Mateus sendo de lá que os tradutores latinos e gregos retiraram a idéia da
magistratura enquanto máscara: "Porque vos digo que, se a vossa justiça
não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos
céus" (5, 20). A justiça é algo que não se exibe, visto que em nós ela é
um empréstimo da verdadeira, a divina: "guardai-vos de exercer a vossa
justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles" (6, 1). A
nossa justiça é falha, unida à vingança e às paixões, entre elas a da vaidade.
Esquecemos que somos apenas a persona de Deus e nos arrogamos o direito de
julgar em última instância. Cautela, "não julgueis para que não sejais
julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida
com que tiverdes medido vos medirão também (...) Hipócrita, tira primeiro a
trave do teu olho e então verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu
irmão" (7, 1-5). A justiça humana é cheia de embustes e astúcias. Os que
obedecem a justiça divina devem saber, de antemão, que seu destino é mover-se
entre serpes. Eles também devem ser astutos como as cobras, porque os homens
têm o costume de mandar os justos para os tribunais, punindo neles exatamente a
justiça, aprovando o mal. (Mateus, 10, 16-17). O ponto culminante da doutrina
sobre os poderosos e juízes enquanto máscaras de Deus, encontra-se em Mateus
23: "Na cadeira de Moisés se assentam os escribas e os fariseus. Fazei e
guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas
obras; porque dizem e não fazem. Atam fardos pesados e os põem sobre os ombros
dos homens, entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los" (1-4).
Quanto à Justiça, pois, é preciso
considerar que as duas vertentes, a grega e a judaico-cristã, não a determinam
como acessível de modo íntegro nos limites do tempo e do espaço. Na versão
platônica, a esperança de atingí-la encontra-se no conhecimento e na disciplina
de corpos e de mentes. Na ordem do Antigo Testamento e do Novo, ela só pode ser
atribuída a um Ser que nos ultrapassa de modo infinito. Para nós, vale a face
fenomênica da justiça, a sua superfície, e quem a aplica não passa de uma
distorcida máscara divina. Vem daí a insistência do Cristo no termo
"hipócrita". Nossos juízes e governos são apenas a persona do
Absoluto. E a justiça ao nosso alcance é apenas relativa.
A filosofia opera sempre com a
passagem do Absoluto, o que não tem amarras espaço-temporais, para o relativo,
o finito. No caso da justiça e do poder, ninguém mais do que Blaise Pascal foi
adiante na dedução da nossa terrível fragilidade diante do infinito. Deste
modo, ele escreveu a sátira mais dura contra os governantes e a justiça dos
homens, em pleno século 17, época do apogeu da monarquia supostamente
"absoluta". A coragem de Pascal e de seus companheiros jansenistas
lhes valeu a ira de Luis 14. Espanta, até hoje, saber que o mosteiro de
Port-Royal foi salgado, destruído, e os mortos foram extraídos de seus túmulos
para receberem a fôrca, a fim de aplacar a justiça do rei. Se relermos os
fragmentos pascalinos sobre a justiça, não apenas no seu conceito, mas na sua
execução, e os enunciados sobre o poder, veremos que a violência real tinha
motivos.Não só no conceito (sabemos o que disse ele nos Pensamentos, com
acentuado sabor cético) sobre a justiça que muda segundo os acidentes
geográficos e os costumes. A justiça pode mudar de um lado do rio para o outro.
Num século que buscava, com Descartes, fundamentos sólidos para a ciência e
para o convívio humano, Pascal foi incômodo. Mas fiquemos com o exercício
cotidiano do poder e dos tribunais.
Os juízes são atores que portam a
máscara da justiça, mas não a exercem de fato. Se eles tivessem a justiça
verdadeira "eles não teriam o que fazer de seus bonés quadrados". O
costume é descrever o autor dos Pensamentos como um místico, crítico da
filosofia cartesiana em plano sentimental. Os temas pascalinos do coração, com
suas razões que a própria razão desconhece, tornou-se risível lugar comum. Que
o Pascal místico e inimigo do pensamento não é o verdadeiro, nós todos sabemos,
sobretudo após as pesquisas de Lucien Goldman. Mas é preciso aprofundar as
razões pascalinas para definir bem o que ele pensava da sociedade e da
política. Um autor importante na análise do tempo, Sainte Beuve, no clássico
texto sobre Port Royal, diz que a diferença entre Hobbes e Pascal é mínima.
Autores de hoje comparam as teses políticas do filósofo às de Maquiavel e de
Montaigne. Trata-se de um item do maior interesse, mormente quando, no mundo
acadêmico se questiona a idéia de um direito natural. Pascal desconfiava
daquele suposto direito, o que embaraça os comentadores, sobretudo quando
analisam as suas teses sobre o direito de propriedade, o exército, o respeito
às autoridades constituidas.
"Há sem dúvida leis
naturais", diz Pascal,"mas esta bela razão corrompida tudo corrompeu
(...) Desta confusão ocorre que um diz que a essência da justiça é a autoridade
do legislador; o outro, a comodidade do soberano; o outro o costume presente, e
isto é o mais seguro : nada, segundo apenas a razão, é justo em si; tudo é
abalado com o tempo. O costume determina toda equidade, só porque o costume é
recebido; este é o fundamento místico de sua autoridade" (Pensées,
Pléiade, frag. 230). A Justiça pode ser ainda mais frívola: "Comme la mode
fait l´agrément, aussi fait-elle la justice" (frag. 237). Justiça unida à
moda : é um pouco forte, mesmo em nossos dias. Na época de Pascal domina a
estrita conformidade política, pois se trata da França sob o absolutismo
instituido por Richelieu, o qual domou a nobreza em Versalhes e impos à nação o
Estado centralizador e centralizado, com um permanente culto ao rei, o qual não
permitia oposições internas. As lutas sangrentas de religião, que culminaram na
Noite de São Bartolomeu, trouxeram a norma que proibia aos particulares lutar
para impor a sua crença acima do Estado. Tudo isso possibilitou, como
antecedentes do absolutismo, um clima de medo e de obediência forçada diante do
rei e de seus ministros. As heterodoxias religiosas e civís foram banidas. Se
no século 16 ainda eram mortos na fogueira os livres pensadores ou ateus, no
século 17 eles sequer vinham a público para apresentar idéias.Surgem os
escritores anônimos. Não raro, eles eram piedosos na vida civil e críticos
ferozes dos dogmas religiosos na existência privada. ( ) A censura era
eficiente. Além dela, a ação das Academias de ciências, artes, literatura, etc.
serviu para impor uma ortodoxia do Estado, com o rei no seu ápice. Tudo passou
a ser feito para propagar o culto à personalidade do rei. ( )
Pascal considera as idéias de
propriedade e as instituições políticas apenas como instituições cômodas para
manter a ordem. Elas indicam a servidão do povo. O filósofo pergunta: quem
dispensa a reputação dos indivíduos? Quem fornece o respeito e a veneração
pelas pessoas, obras, leis, aos grandes, senão a faculdade imaginante? ( ) As
riquezas, seriam insuficientes sem o consentimento da imaginação.
Mesmo um magistrado venerável,
será que ele enuncia suas sentenças sem apego ao imaginário que fere as mentes
fracas? Se este mesmo juiz entra numa igreja e o padre apresenta algum defeito
(uma barba mal feita, e outros pequenos erros no rosto ou vestimenta)
"aposto" diz Pascal, "na perda de sua gravidade". E mesmo o
maior filósofo, diz Pascal, andando sobre uma prancha, a maior que se possa
encontrar, se em baixo percebe um precipício, embora a sua razão o convença de
que está em segurança, prevalecerá a sua imaginação. "Muitos não
conseguiriam sustentar o pensamento sem suar e empalidecer".
O pensamento que capta o real é
insuportável, como o próprio real. Daí, o consolo da imaginação que enfeita o
efetivo, dando-nos medo ou encanto, mas sempre nos poupando da verdade, a qual
tememos e que pode ser letífera. A retórica usa a imaginação para mudar
opiniões, e faz isto não apenas com imagens completas, belas, cativantes. Ela
faz isto até mesmo com uma pequena mudança na inflexão da voz. Um tom de
autoridade pode mudar até mesmo a opinião de um homem que se julga, e é julgado
pelos homens, como superior. Nós sabemos, diz Pascal, "que um advogado bem
pago previamente considera mais justa a causa que ele defende. O quanto o seu
gesto ousado o faz parecer melhor para os juízes, enganados por esta
aparência..." Razão engraçada esta, continua Pascal, "que muda com um
vento, em todos os sentidos!"
Quem desejasse seguir apenas a
razão seria louco. Trabalha-se o dia todo tendo em vista bens imaginários,
dorme-se e se acorda para ir atrás de fumaças, à procura desta senhora do
mundo. O predomínio da imaginação sobre a razão é uma das causas do erro, mas
não a única. E aqui chega a frase satírica e justa: "nossos magistrados
conhecem bem este mistério (o predominio da imaginação sobre a razão), pois
usam vestidos vermelhos, arminhos, usam palácios, flores de lis em suas
armas.Se os médicos não tivessem nem sotainas nem mulas, e se os doutores não
tivessem bonés quadrados e vestidos amplo, nunca teriam enganado (dupé) o mundo
que não pode resistir a esta mostra tão autêntica. Mas só possuindo ciências
imaginárias, é preciso que eles peguem estes instrumentos que ferem a imaginação,
à qual eles mesmos se apegam. E por este meio eles atraem para si o respeito.
Só os guerreiros não se disfarçam deste modo, porque sua parte é mais
essencial, eles se estabelecem pela força, enquanto os demais o fazem através
de caretas". ( )
Assim, juízes e médicos recebem
as flechas de Pascal, com base no seu uso da imaginação e no desempenho de
ciencias imaginárias. Também os reis são por ele ironizados. Eles se fazem
respeitar por se apresentarem sempre com homens em armas, tambores, trombetas, as
quais fazem "tremer os mais firmes".
"O costume de ver reis
acompanhados de guardas tambores, oficiais, e de todas as coisas que inclinam a
máquina rumo ao respeito e ao terror, faz com que seu rosto, quando estão sós e
sem os seus acompanhamentos, imprima aos súditos o respeito e o terror, porque
não se separa a sua pessoa dos acessórios que sempre vem juntos deles. E o
mundo que não sabe de onde vem este costume, acredita que ele vem de uma força
natural, e dai derivam estas palavras: ´o caráter divino está impresso em seu
rosto´, etc". A força mostra seu papel, ao lado da imaginação ou unida a
ela. "Não podendo encontrar o justo, encontrou-se o forte", "não
podendo fazer com que o justo fosse forte, fez-se com que o forte fosse justo".
( )
Finalmente, vem o engano para
manter o Estado e a sociedade. "Pelo bem dos homens, é preciso enganá-los
com muita frequência". É estratégico que o povo não sinta a verdade da
usurpação. "Ela foi introduzida anteriormente sem razão, ela tornou-se razoável,
é preciso fazer com que se a olhe como autêntica, eterna, esconder o começo se
desejamos que ela não chegue rapido ao fim". A tese sobre o imaginário e a
força, bases do exercício da justiça, encontra seu correspondente na doutrina
pascalina sobre o poder. Seguindo a tradição cristã que aponta o juiz e o
poderoso como simples máscaras divinas, os Três Discursos sobre a condição dos
Grandes enuncia que o ocupante do poder deve se considerar apenas como um
náufrago parecido com o rei ausente de uma ilha. O respeito a ele prestado não
lhe pertence. O povo se engana, imaginando ser ele o poderoso. O mando lhe vem
de Deus, ou da natureza. A sua justiça é incerta como o fundamento de seu poder
: a qualquer momento ela pode ser-lhe retirada. E nem a força militar possui fundações
estáveis. Cromwell estava para dominar o mundo. De repente, um pequeno grão em
sua uretra o colocou no túmulo. O poder que vem da força é limitado, finito,
como a opinião que vem do imaginário. Mas os juízes devem temer a força :
sempre pode ocorrer um evento em que "um simples soldado arranca o boné de
um primeiro presidente de tribunal, e o faz voar pela janela" (Pensées,
Pléiade, frag. 245).
Justiça para todos. Quanto ao
primeiro termo, a filosofia só pode responder com uma busca de sentido, apontar
para os inumeráveis desvios de significação que nele se encontram. Justiça,
justiças. A força e a política, a retórica e a propaganda definem o campo
destes valores, tornando dificílimo determinar lógica e ontológicamente o seu
estatuto. Cautela, pois, diante da palavra e do que nela se visa. Afirma
Pascal, "as palavras diversamente arrumadas proporcionam um sentido
diferente, e os sentidos arrumados diversamente produzem efeitos
diferentes". (Pensées,Pléiade, frag. 66). A justiça e a política são pouco
afeitas à razão, mas sim ao imaginário dos homens. Se Platão e Aristóteles, diz
Pascal, escreveram sobre as leis e sobre o governo, "era como se eles
quisessem regulamentar um hospício; e se pareceram falar destes assuntos como
se fosse grande coisa, é que eles sabiam muito bem que os loucos a quem falavam
pensavam ser reis e imperadores. Eles entraram nos seus princípios, para
moderar sua loucura". (Pensées, Pléiade, frag. 294). Não seria preciso
Pascal para lembrar esta atitude filosófica. O próprio Platão, na Carta Sétima,
diz que "nenhum homem sério, ocupado por questões sérias, não arriscará
colocar no domínio público semelhantes questões (...) quando vemos obras
escritas em forma de leis por algum legislador (...) saibamos que isto não é
para ele o mais sério.(...) Supondo-se que aos seus olhos estas coisas sejam
sérias, e por isto foram escritas, então podemos dizer que não os deuses, mas
os mortais, lhe arruinaram totalmente o juízo". ( )
A razão aplicada sem cautelas
lógicas à política e à sociedade não é racional. Ela se transforma em loucura.
O poderoso é um ícone da vida humana e sua forma de ser o coloca apenas no
ápice da Stultifera navis da humanidade, sempre à deriva. Peço licença para
abordar, justo como um complemento das enunciações pascalinas, a lembrança do
juiz extremamente racional, cujo livro é uma das maiores fontes para a análise
do poder em nossos tempos. Refiro-me às Memórias de um doente de nervos ( ) do
presidente Daniel Paul Schreber e às observações a seu respeito em Massa e Poder
de Elias Canetti. ( )
Segundo Canetti, Schreber é
paranóico e a sua doença liga-se diretamente ao poder. Ela é a normalidade dos
homens numa sociedade de massas. No delírio, o juiz alemão insere a própria
massa dos homens em seu corpo e em sua alma, digerindo-a. Os homens não existem
para ele enquanto indivíduos autônomos, mas se diluem em multidões de pequenos
entes ameaçadores. "Qualquer tentativa de análise conceitual do poder será
mais pobre do que a clareza da visão de Schreber. Todos os elementos das
circunstancias reais estão nela: a intensa e contínua tração sobre os
indivíduos que irão se reunir numa massa, sua intenção duvidosa, sua
domesticação, sua miniaturização, o fato de se amalgamarem no poderoso que
representa o poder político em sua pessoa (...) o sentimento do catastrófico
que está vinculado a tudo isso, uma ameaça à ordem universal...".
Nos Testamentos, judaico e
cristão, Deus é o único poderoso e o único justo. Com Schreber ficamos
informados de que Deus, detentor do poder, tem partidos e seu reino reúne
províncias. Para aumentar o seu mando, Deus elimina os homens incômodos. A
impressão que temos ao ler o livro do juiz alemão, diz Canetti, é que
"Deus está em guarda, como uma aranha, no centro da teia política".
Quando se percebe que na terra um Salvador representa Deus, e Schreber
sintetiza em sua pessoa o Soter religioso e o político, captamos a extensão da
paranóia instalada no indivíduo que ocupa o cargo de julgador dos homens e de
mando sobre eles.
Alguns comentadores de Schreber,
como o psicanalista Lacan, afirmam que nele encontra-se a razão das Luzes
levadas ao paroxismo. Mas existe uma enorme distância entre o ideário sobre o
papel de juiz nas Memórias de um doente de nervos, e as perspectivas dos
philosophes no século 18. Para isto, basta consultar o verbete da Encyclopédie
diderotiana, sobre o juíz: " Como somos demasiadamente expostos à ceder às
influencias da paixão quando se trata de nossos interesses, considerou-se bom,
quando muitas famílias se reuniram num mesmo lugar, estabelecer juízes e
revestí-los do poder de vingar os ofendidos, de modo que todos os membros da
comunidade foram privados da liberdade oferecida pela natureza. Depois,
tratou-se de remediar os males que a intriga ou a amizade, o amor ou o ódio,
poderiam causar no espírito dos juízes nomeados. Foram feitas leis sobre este
ponto, as quais regulamentaram a maneira de dar satisfações às injúrias, e a
satisfação que as injúrias requeriam. Os juízes foram submetidos às leis; foram
atadas as suas mãos, após terem sido cobertos os seus olhos para impedí-los de
favorecer alguém; é por isto (...) que eles devem dizer o direito, e não fazer
o direito. Eles não são árbitros, mas interpretes e defensores das leis".
( )
O juiz das Luzes interpreta a
lei, o personagem de Schreber disputa com o artífice das leis, na tentativa de
se fazer Deus. "Um doente mental", enuncia Canetti, "que passou
seus dias vegetando numa clínica, pode, pelos conhecimentos que proporciona,
ser muito mais significativo do que Hitler ou Napoleão, e iluminar a humanidade
a respeito de sua maldição e de seus senhores". Nas Memórias, Schreber
indica que as tentativas de dominação que sofreu por parte de seres minúsculos
se caracterizavam sobretudo pelas perguntas e ordens. Comenta Elias Canetti:
"Como instrumentos do poder, ambas são bem conhecidas; como juiz, Schreber
mesmo as tinha manipulado exaustivamente".
Dentre os desejos de Schreber,
está o de invulnerabilidade frente à massa dos mortais, além da volúpia de
sobreviver à custa dos subordinados, a mais forte inclinação dos poderosos.
Deus é o máximo poder. Schreber termina sua delirante narrativa com um "fato"
essencial. Enquanto juiz e poderoso, "tudo o que ocorre refere-se a mim.
Eu me converti para Deus no homem absoluto ou no único homem, em torno do qual
tudo gira, ao qual deve ser relacionado tudo o que ocorre e o qual, a partir do
seu próprio ponto de vista, também deve referir todas as coisas a si
mesmo".
Justiça fugidía em Platão,
inacessível plenamente ao homem nos textos bíblicos, exercida em plano cósmico
e político na persona de Schreber, juiz poderoso e isolado de todos os demais
homens, por ele percebidos como simples mortos. A paranóia, doença do mando,
torna quem deveria ser apenas a máscara divina em rival de Deus. Suas sentenças
seriam tão absolutas quanto as do ser divino. Ele distribui justiça para todos,
sine ira et studio, mas apenas no conjunto, nunca visando indivíduos. Estes
estão amalgamados num Todo indistinto. O comentário de Canetti sobre a atitude
do juiz que domina, soberano, o mundo social, e para quem os homens nada
significam a não ser que sejam integrados numa multidão, é perfeito:
"Vêm-nos à lembrança algumas representações da iconografia cristã: anjos e
santos, todos apertados lado a lado feito nuvens, às vezes como nuvens de
verdade, nas quais apenas olhando-se com muita atenção percebem-se as cabeças
individuais". Tal é delírio totalitário in nuce na razão paranóica, e que
tantos poderosos e magistrados a eles afins tentaram impôr, desgraçando milhões
de individualidades. Aqui, o "todos" têm uma consistência monstruosa,
pois exclui as partes, de uma forma ou de outra.
Desculpando-me pela
impertinência, passo ao último ponto de minha fala, o âmbito da força enquanto
verdade última da justiça, enunciada por Pascal. Antes, ainda uma nota sobre o
paranóico: ele se percebe cercado. "Seu inimigo principal jamais se contentará
com atacá-lo sozinho. Sempre procurará atiçar contra ele uma malta odiosa,
soltando-a no momento exato. Os membros da malta a princípio se mantêm ocultos,
podem estar por toda parte". O vínculo da força e a desconfiança
produziram os organismos secretos de vigia sobre os dominados em todos os
regimes políticos autoritários do mundo moderno. Para o poderoso que só conhece
a lógica da força, todos conspiram contra ele. Se o seu nome é Luiz 14 ou
Napoleão, Hitler ou Stalin, Vargas ou...., é preciso vigiar os submetidos. E
eles são uma totalidade compacta e homogênea. Indivíduos, para os poderosos da
história ou segundo Schreber, simplesmente não existem: estão diluídos em
massas compactas. O poderoso desmascara, com a polícia política, os supostos
indivíduos, reduzindo-os a um Todo, o inimigo da França, do Reich, do
proletariado, do povo brasileiro. Arrancada a máscara de cada um dos vigiados e
presos, o poderoso os integra naqueles universais abstratos, o campo dos seus
amigos e o dos seus inimigos, pois é seu suposto dever e missão julgar o mundo,
como se ele fosse Deus. Aos seus olhos, todos conspiram para que ele, poderoso,
morra. Só ele, inocente, pode sentenciar milhões à morte.
Se Schreber enunciou a lógica do
isolamento que marca os poderosos e os magistrados dos tribunais de exceção, se
um paranóico diz algo muito real sobre a essência do mando político
autoritário, a lógica da espionagem governamental foi enunciada de modo
perfeito por um inimigo jurado da democracia, Donoso Cortés. No Discurso sobre
la dictadura (1849), ele diz que mais desce o nível da fé em Deus na sociedade,
e mais o poder precisa emprestar a onisciência divina, além da onipotência.
Chega um dia em que o governo diz: "temos um milhão de braços, mas não
bastam. Precisamos mais, precisamos de um milhão de olhos. E tiveram a polícia
e com ela um milhão de olhos. Apesar disto (...) o termômetro político e a
repressão política deviam subir, porque, apesar de tudo, o termômetro religioso
baixava, e subiram. Não bastou aos governos um milhão de braços, não lhes
bastou um milhão de olhos. Eles quiseram um milhão de ouvidos, e os tiveram com
a centralização administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as
reclamações e todas as queixas. (...) Mas os governos disseram: não me bastam, para
reprimir, um milhão de braços; não me bastam, para reprimir, um milhão de
olhos; não me bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos; precisamos mais,
precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes.
E tiveram isto, pois se inventou o telégrafo". ( ) O texto é do século 19.
Depois disto, quantos olhos e ouvidos, quanta ubiquidade ganharam os governos
que têm a força e desconfiam dos subordinados !
Encerro minha fala. Em resumo,
sublinho que o tema posto em debate, justiça para todos, precisa ser encarado
com delicadeza máxima. Em primeiro lugar, porque a noção de Justiça pode ser
transposta dos deuses para os homens poderosos, os quais se colocam como os
grandes justiceiros da sociedade, ditando regras loucas mas fortes a que todos
devem submeter-se. A história do nazismo e do estalinismo, a crônica das
ditaduras brasileiras, tudo isso aconselha prudente desconfiança e sadio
empirismo no trato da justiça. Razão em demasia na vida política e jurídica
pode conduzir à gênese de personalidades como a do presidente Schreber,
prototipo dos poderosos modernos. O segundo ponto que desejei mencionar é o
quanto os que mandam guardam desconfiança absoluta diante dos subordinados.
Esta falta de fé só pode ser atenuada em regime democrático. Neste, como não
existem deuses dirigindo os destinos dos cidadãos, não ocorrem muitos segredos
de Estado.( ) Para defendê-los, nenhuma instância pode se arrogar o direito de,
com mil ou um milhão de olhos, ouvidos, braços, telégrafo, rádio, TV, jornais,
Internet, destruir a intimidade dos indivíduos e a sua forma íntegra. Na
democracia, a justiça considera as pessoas uma a uma, jamais subsumindo-as em
pretensos coletivos, totalidades ontológica e lógicamente superiores aos átomos
sociais. Justiça para todos significa justiça para cada um dos humanos. Nesta
ordem, é inadmissível e monstruoso que organismos secretos tenham o direito de
"arranhar" ou de abolir os direitos individuais ou as prerrogativas
das pessoas reunidas em movimentos, partidos, igrejas.
Justiça para todos? Talvez, mas
como avaliar a decisão que devolve aos organismos de espionagem documentos onde
se confessa a tranqüila violência contra os direitos supremos da cidadania? Os
representantes do poder executivo entram com procedimentos contra os
Procuradores da República, tentando lhes aplicar penalidades por "abuso de
autoridade".( ) Os que decidem no tribunal aceitam argumentos como a
"segurança do Estado", quando a imprensa, no caso a Folha de São
Paulo, mostra cópias dos mesmos documentos onde brasileiros são definidos como
"prejudiciais" à vida nacional, operando os orgãos de informação como
se ainda estivessemos sob a égide do AI-5. Não sou jurista. Mas além de pagar
impostos que mantêm os três poderes, estudo um pouco a questão do Estado, tendo
inclusive um doutoramento sobre o assunto na França, país onde se originaram as
liberdades democráticas. Considero estranho que o termo "Estado"
entre nós conote organismos de espionagem contra os compatriotas. Desde muito
tempo, pelo menos desde a época em que a Revolução Francesa declarou os
direitos do homem, e acabou o absolutismo do rei -cujo marco mais evidente foi
o famoso "L´État c´est moi"- o "Estado" é o conjunto da
cidadania. Basta dos grupos, de direita ou de esquerda, que no pretérito, em
Moscou ou Berlim, praticaram todos os crimes imagináveis e não imagináveis em
nome da segurança do Estado. Elias Canetti disse um dia que tendo o homem
inventado o inferno, infinitos seriam os horrores que poderíamos esperar deste
ser "racional". Devem encontrar segurança contra o inferno
autoritário os indivíduos que trabalham e sacrificam suas forças em prol do bem
comum, nunca os espiões que não se pejam de conviver disfarçados, de
jornalistas ou com outra máscara, e ousam julgar os seus irmãos, que os chefes
apontam, sem provas e com dolo, como "inimigos" ao modo de Carl
Schmitt. Justiça para todos? Se os documentos apreendidos pelos Procuradores da
República enunciam monstruosidades subversivas como as que todos lemos é
preciso decidir: ou o Estado é aquele onde o povo detêm a soberania e no qual
todo poder só pode exercitar-se em seu nome, ou ele resume-se ao Executivo e
aos seus pretores, esbirros e similares. Como cidadão que frequentou as cadeias
da ditadura militar, não aceito a maneira pela qual os procedimentos daquela
época são mantidos, apenas mudando-se os nomes, reiterando-se a mesma doutrina
paranóica e anti-democrática sobre a "segurança nacional", a mesma
polícia secreta à qual se atribui o privilégio de julgar quem é bom cidadão
brasileiro, e à qual se permite violar a intimidade das pessoas, atentando
contra as garantias constitucionais. Isto constitui, de fato e de direito, a
suprema injustiça. Que os espiões e seus líderes saibam: com a pretensão de se
julgarem deuses consagrados pela onisciência, eles sim, integram o número das
"forças adversas" que destroem na raiz a justiça, a fé pública,
componentes sine qua non do regime democrático e das liberdades individuais e
coletivas. Enquanto existirem espiões pagos pelos contribuintes e cidadãos,
agindo de modo conspiratório e marcados pela paranóia, tenho a certeza de que
não haverá justiça, nem para cada um, nem para todos nós. Obrigado.
retirado de: http://www.anpr.org.br/bibliote/artigos/romano.html