Justiça
Foro privilegiado causa desvio de função do STF
Tribunal é o único que pode julgar 608
autoridades por crimes comuns, o que tem gerado um acúmulo de casos. No
julgamento do mensalão, defesa tentou desmembrar o processo
Publicado em 05/08/2012 | Daniela Neves
A
questão levantada na abertura do julgamento do caso do mensalão sobre a
competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar todos os 38
réus do caso mostra a situação de acúmulo de processos no STF. O
tribunal, que deveria cuidar exclusivamente de questões de ofensa à
Constituição, em decorrência do foro privilegiado é o único que pode
julgar 608 autoridades por crimes comuns, o que tem gerado um acúmulo de
casos que não deveriam ser de sua competência.
Princípios jurídicos
O que significam os termos usados na defesa do desmembramento do caso do mensalão:Foro privilegiado
Cabe ao STF julgar, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, os ministros do próprio Supremo e o procurador-geral da República. Justifica-se o “privilégio” pela necessidade de se preservar as funções e instituições e não os ocupantes dos cargos para que não se promovam processos judiciais sem base jurídica, por motivos políticos, que possam afetar a estabilidade das instituições.
Juiz natural
Esse princípio garante que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que somente os juizes, tribunais e órgãos jurisdicionais previstos na Constituição se identificam ao juiz natural. Deve-se ter o respeito às regras objetivas de determinação de competência para que não seja afetada a independência e a imparcialidade do órgão julgador.
Duplo grau de jurisdição
É a possibilidade do reexame da decisão judicial por órgão hierarquicamente superior. Quando o processo corre diretamente no Supremo, não há instância superior para se recorrer.
“Sobe e desce”
Competência dos tribunais é usada como estratégia da defesaA discussão da competência para julgar leva a um “sobe e desce” de processos entre instâncias e gera atraso para o fim do julgamento. A tentativa no julgamento do mensalão de questionar a competência do Supremo para julgar todos os réus também foi feita em casos no Paraná, como o dos Gafanhotos (acusação de desvio de salários de funcionários do Legislativo que teriam ocorrido entre 2001 e 2004) e o da ex-empregada do senador Roberto Requião, que teria sido funcionária fantasma na Assembleia Legislativa do Paraná nos anos 2000 e 2001.
No caso da ex-empregada, a defesa questionou a competência do Ministério Público Federal para investigar e denunciar. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) disse que o caso deveria tramitar no Tribunal de Justiça do Paraná e não no Tribunal Regional Federal, no qual corriam pelo fato de envolvidos serem deputados estaduais, que tinham prerrogativa de foro.
No caso Gafanhotos, a defesa pediu a tramitação no Supremo, mas o STF manteve, depois de dois anos com a investigação parada, a continuidade pela Polícia Federal e pelo MPF. A estratégia da defesa pode ser gerar benefícios com a demora processual. “Ao retornar para o primeiro grau, muitas condenações prescrevem. Não é uma estratégia ilegítima, devendo ser considerada dentro da ampla defesa, utilizando os vários caminhos que sejam benéficos para o acusado”, diz o professor de Direito Penal Adel El Tasse.
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Segundo a Constituição, no artigo 102, cabe ao STF julgar,
nas infrações penais comuns, o presidente da República, o
vice-presidente, os membros do Congresso Nacional (81 senadores e 513
deputados), ministros do próprio Supremo (onze) e o procurador-geral da
República. São 608 autoridades nessa condição e, como geralmente
denúncias contra eles envolvem diversos outros réus, todos são atraídos
para o STF. No caso do mensalão, três réus têm prerrogativa de foro, os
deputados federais João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e
Valdemar Costa Neto (PR-SP). Os outros 35 foram “arrastados” para o
mesmo julgamento pela conexão que têm com a mesma acusação de crime.
O advogado Márcio Thomaz Bastos, que defende um deles, José Roberto
Salgado, ex-executivo do Banco Rural, questionou o fato de essa atração
de todos no mesmo julgamento privar os réus comuns de dois direitos
fundamentais: o de ser julgado por seu juiz natural e o de poder
recorrer das decisões, ou seja, a garantia do chamado “duplo grau de
jurisdição”. “O Supremo é volátil nessa decisão e isso permite que se
provoque o assunto. Se o Supremo tivesse uma posição marcada sobre o
assunto, esse tema não teria tanta importância”, comenta Luiz Guilherme
Arcaro Conci, professor da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo.
Para o professor de Direito Penal Adel El Tasse, nesse caso não havia
dúvida da conexão, apesar dos bons argumentos contrários. “É preciso
entender que o foro não é um privilégio concedido a alguém e sim a
concentração para a otimização do julgamento”, diz. Ele exemplifica em
caso de deputados federais que, se precisarem se defender em seus
estados de acusações sofridas, necessitariam se ausentar muitas vezes do
Congresso e prejudicar a atuação parlamentar.
Além da dúvida sobre o direito à ampla defesa, esse acúmulo de casos
causa problemas de estrutura do STF. “O Supremo não tem a estrutura de
um juiz de primeiro grau. Ele delega a instrução a juízes federais, mas
isso gera problemas para a segurança jurídica porque os ministros não
têm contato com a prova, diretamente. Conhecer todas as peças é
importante para formar convicção”, diz Ricardo Breier, advogado e
professor de Direito Penal e Processo Penal no Rio Grande do Sul. Para
ele, o Supremo deveria ser um tribunal exclusivamente revisor.
Luiz Guilherme Arcaro Conci acredita que há um exagero na
prerrogativa de foro. “Uma coisa são os governadores, o presidente da
República, os ministros do Supremo. Mas nessa situação, em que todos os
parlamentares federais recebem esse foro, há um excesso e uma morosidade
em outros processos que tramitam no Supremo”, diz.
No primeiro dia da sessão de julgamento do Mensalão, a Corte decidiu
não acolher o pedido de desmembramento dos autos efetuado por um dos
defensores. O que pretendia com o desmembramento? Que todos os réus não
detentores de prerrogativa de foro fossem julgados em primeiro grau. Com
isto, atrasaria o andamento do feito, bem como obteria a possibilidade
de que todos, sendo condenados em primeiro grau, pudessem recorrer à
segunda instância e, eventualmente, ao STJ e ao próprio STF.
Eventualmente, o atraso poderia conduzir à prescrição.
Atualmente, três dos réus detêm a prerrogativa de serem julgados pelo
STF, pois são deputados federais. Pelas regras do Código de Processo
Penal, quando alguém, sem prerrogativa de foro, comete crime em conjunto
com outra pessoa, detentora da prerrogativa, ambos são julgados pela
instância mais graduada (o STF). Isto porque ambos respondem a ações
penais “conexas”, uma vez que são co-autores do mesmo fato, bem como a
prova acerca do fato praticado por um deles automaticamente interessará à
ação penal do outro. Assim, evitam-se decisões contraditórias pelo
Poder Judiciário – já que um só juiz decidirá - e produz-se “economia
processual”, pois há reunião de toda a prova respectiva aos fatos
criminosos, instruindo um só julgador, que tem visão de tudo o que
ocorreu. Tudo mais rápido do que repetir a produção das provas em cada
ação penal, separando-as.
Excepcionalmente, há casos em que a lei autoriza “desmembrar” ou
separar as ações penais. Isto ocorre quando as vantagens derivadas da
reunião não ocorrem: casos em que a reunião das ações penais torna o
trâmite tão lento que se produzem prejuízos para a acusação, como a
eventual prescrição da punição, ou para a defesa, como um atraso nos
atos processuais durante ação penal respondida por réu preso. A decisão
sobre a junção ou separação costuma operar-se durante a investigação ou,
quando muito, no início da ação penal.
No caso do Mensalão, os Ministros discutiram há anos sobre a reunião
das ações, ainda na fase de investigação, e rejeitaram a separação dos
autos, embora excessivo o número de réus. Por isto, a maioria dos
julgadores rejeitou o pedido de desmembramento, considerando que não se
poderia mais discutir o tema: o que um mesmo juiz já decidiu, não volta a
decidir (preclusão consumativa). Andaram bem. Sobretudo, porque
desmembrar o processo agora geraria: a) risco de decisões diferentes
sobre idênticos fatos; b) atraso no desfecho do processo; c) nenhuma
economia processual. Somente dois Ministros – inclusive o revisor –
aceitaram a pretensão da defesa. Curiosamente, sustentaram posições
conflitantes com a Súmula 704, editada pelo Tribunal a que pertencem.
Discussões sobre competência são clássicas estratégias de defesa em
casos de réus detentores de foro privilegiado. Atrasam a discussão de
mérito e muitas vezes levam à prescrição. É o caso de mantê-lo?
Fábio André Guaragni é Promotor de Justiça, Professor Doutor de Direito Penal no Mestrado do Unicuritiba.
Julgamento dos autos da ação penal 470/STF
Poderá se dessumir que o julgamento da ação penal 470/STF
representa o ápice da judicialização da política. Por demais é
conhecido que desde a CF/88 gradativamente tem se constatado o aumento
expressivo das demandas judiciais. O Executivo não efetiva as políticas
públicas, o Legislativo é negligente e letárgico em suas funções
precípuas; resta aos cidadãos bater às portas do Judiciário e o têm
feito avidamente na busca da satisfação dos seus pleitos. O processo
popularmente conhecido como “mensalão” referenda essa tendência em sua
vertente mais paradigmática. Afinal os imputados pertencem à nata da
classe política, empresarial e financeira, outrora distantes de uma
resposta jurídico-penal.
Todavia a consciência dos julgadores não deve se nortear pelas suas
convicções pessoais ou morais, mas orientar-se pela égide da ordem
jurídica. Portanto, condenar ou absolver não é uma decisão sujeita ao
sabor das paixões, dos valores individuais ou coletivos e em atenção a
clamores populares. Urge, pois, desapaixonar o julgamento, imprimindo
notas pragmáticas que procurem equilibrar as teses da acusação e da
defesa em favor de um resultado mais próximo do ideal de segurança
jurídica e Justiça.
O STF precede e sucede o julgamento da Ação Penal 470. Diga-se de
passagem: reduzir a Corte Suprema da Nação a esse julgamento seria uma
capitis diminutio que o Judiciário e a democracia brasileira não
merecem.
A questão de ordem levantada pela defesa em favor do desmembramento
do processo sob uma perspectiva do duplo grau de jurisdição, o qual
seria vedado aos réus que não possuem prerrogativa de função, acabou
impondo à Corte a necessidade de revisitar posicionamentos anteriores
sobre o tema, com resultado amplamente favorável ao não acolhimento do
pleito.
Quanto ao mérito, confia-se em um julgamento isento, imparcial,
técnico e permeado pelos princípios universais de garantia, em especial
da ampla defesa e da realização de Justiça. Um resultado lastreado em
tais premissas evidenciará o consolidado estágio da nossa democracia.
Rodrigo Sánchez Rios, Professor de Direito Penal PUC/PR, advogado criminalista.