Instituto de Nicolelis enfrenta 'apagão científico'
Após saída de boa parte da equipe, há 18 meses, IINN nada produziu, mas neurocientista continua recebendo volumosas verbas do governo
16 de dezembro de 2012 | 2h 07
HERTON ESCOBAR - O Estado de S.Paulo
O Instituto Internacional de Neurociências de Natal
(IINN), inaugurado no início de 2007 sob o comando do neurocientista
Miguel Nicolelis, passa por um apagão científico desde julho de 2011,
quando praticamente toda sua equipe de pesquisadores, técnicos e alunos
(mais de 90 pessoas no total) abandonou o projeto e fundou um outro
centro de pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), batizado de Instituto do Cérebro (ICE).
Desde então, o IINN não publicou nenhum trabalho científico novo. Sua
equipe de pesquisadores residentes foi reduzida a seis cientistas sem
vínculos acadêmicos e três estudantes de pós-graduação, ocupando uma
infraestrutura predial e laboratorial que recebeu volumes expressivos de
recursos públicos nos últimos oito anos, bem acima dos padrões da
ciência nacional.
A Associação Alberto Santos Dumont para apoio à Pesquisa (AASDAP),
entidade privada sem fins lucrativos que administra o IINN, presidida
por Nicolelis, já tem garantido R$ 41,8 milhões em novos recursos do
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e suas agências para
fins de pesquisa e educação científica, segundo um levantamento feito
pelo Estado, com dados do Portal da Transparência do governo federal.
"Estamos pagando para ele fazer pesquisa nos Estados Unidos? É isso
que queremos saber", questiona uma liderança da comunidade científica
nacional. Nicolelis é professor titular da Universidade Duke, nos EUA, e
não tem vínculo empregatício com nenhuma instituição de ensino e
pesquisa no País. "A contribuição pessoal dele para a ciência brasileira
é zero", diz a fonte, que pediu para não ter o nome revelado, por medo
de represálias. "Quem produzia a ciência era o pessoal que foi embora."
O motivo do "racha" no IINN, segundo fontes ouvidas pelo Estado,
teria sido a personalidade difícil de Nicolelis, que, apesar de
raramente estar presente no instituto, controlava todas as decisões a
distância, desde as coisas mais banais, como a instalação de tomadas,
até quem podia entrar no prédio e quais experimentos podiam ser
realizados.
Nicolelis, na ocasião, minimizou o ocorrido e publicou uma carta
dizendo que "o término da colaboração já estava previsto" e não
representava "nenhum prejuízo na continuidade das pesquisas
desenvolvidas pela equipe própria de pesquisadores contratados pela
AASDAP". Na mesma hora, divulgou uma lista com os nomes de 31 cientistas
estrangeiros que passariam a "colaborar permanentemente com a equipe
científica do instituto, atuando como orientadores, pesquisadores e
chefes de projetos".
A notícia no site do IINN era ilustrada com uma foto de Nicolelis em
Brasília ao lado do então ministro da Educação, Fernando Haddad,
cercados por 20 pessoas que representariam a nova equipe científica do
instituto.
Quase metade das pessoas na foto, porém, era de cientistas do
laboratório de Nicolelis na Universidade Duke, que retornaram aos EUA e
não têm vínculo formal com o IINN. Fato que não passou despercebido por
outros membros da comunidade científica.
"Ele mandou trazer pessoas de fora que, no dia seguinte, voltaram
para os EUA. Não foi um procedimento decente", declarou o neurocientista
Ricardo Gattass, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um
dos vários cientistas ouvidos pela reportagem que apoiaram Nicolelis no
início do projeto, mas mudaram de opinião sobre ele nos últimos anos.
"A coisa mais importante na vida de um cientista é seu compromisso
com a verdade", afirmou Gattass, que durante oito anos foi
superintendente de Universidades e Instituições de Pesquisa da
Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), órgão do MCTI que deu o
primeiro R$ 1,5 milhão para a criação do IINN em Natal, ainda em 2004.
Qualificações. A equipe residente que trabalha no IINN hoje é
composta por seis cientistas, sendo que apenas três são pesquisadores do
stricto sensu, com uma produção científica mais relevante. Juntando os
seis currículos, segundo estatísticas disponíveis na base de dados
Scopus (referência bibliográfica no mundo científico), a equipe tem, em
média, 9,5 trabalhos publicados e 69 citações por pesquisador - bem
abaixo do que se esperaria de um instituto que busca se tornar
referência na neurociência mundial.
O índice H médio da equipe é 3,8 - bem abaixo do que o próprio
Nicolelis disse considerar aceitável em entrevista ao caderno Aliás, do
Estado, em agosto de 2011, pouco após o racha. "Um índice 10 é muito
ruim, é o cara que acabou o pós-doutorado, no máximo", afirmou
Nicolelis, questionando a qualificação científica dos pesquisadores que
trocaram o IINN pela UFRN. "Ninguém ali tem um índice H maior do que 15;
há quem tenha índice 2", disse. Um ano e meio depois, o índice H mais
alto da nova equipe do IINN é 7 e o mais baixo, 1 (veja explicação sobre
o índice H nesta página).
Os dados não levam em conta o currículo do próprio Nicolelis, que,
apesar de presidir a AASDAP e ser o grande nome associado ao IINN, passa
pouco tempo em Natal. "Ele só aparecia para gravar entrevistas e tirar
foto com ministro", diz um ex-aluno.
Quando o Estado bateu à porta do instituto perguntando pelo
cientista, no início deste mês, o segurança não sabia quem era o "dr.
Miguel". "Faz muitos meses que ele não aparece por aqui", justificou,
espontaneamente, um outro funcionário.
Nicolelis tem um índice H de 45, com 186 trabalhos publicados e mais
de 8 mil citações. Um número altíssimo, que confirma sua reputação como
um dos cientistas de ponta da neurociência mundial. Muitos criticam,
porém, o fato de que pouco, ou quase nada, dessa ciência é produzida de
fato no Brasil.
"Ninguém questiona a qualidade do Nicolelis como cientista. O
problema é que ele é um bom cientista nos EUA, não no Brasil", diz um
pesquisador, que também pediu anonimato.
"O Miguel é um excelente cientista, com todos os méritos", diz o
neurocientista e diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ,
Roberto Lent. "Só que, para fazer o que ele quer fazer, ele teria de se
mudar para o Brasil. Não dá para fazer à distância; tem de pôr o pé na
lama."
No último um ano e meio, desde o "racha", Nicolelis publicou 13
trabalhos científicos, segundo os dados disponíveis no seu currículo
Lattes. Em 12, ele é o único autor afiliado ao IINN. Dentre os vários
coautores estrangeiros que assinam os artigos com ele, 5 fazem parte da
lista de 31 colaboradores internacionais anunciada por Nicolelis em
agosto de 2011, mas seus créditos não mencionam afiliação ao IINN -
apenas à Duke. Considerando a ausência de Nicolelis em Natal, muitos
cientistas questionam se alguma parte dos trabalhos foi produzida no
IINN.
O único trabalho que carrega o nome de outros membros da equipe
residente do IINN é um estudo publicado na revista PLoS One em novembro
de 2011, sobre os efeitos da implantação de eletrodos no cérebro de
ratos, que tem o biólogo Marco Aurélio Freire como primeiro autor. As
pesquisas que deram origem ao trabalho foram realizadas antes do
"racha", quando Freire ainda era orientado pelo neurocientista Sidarta
Ribeiro, ex-diretor científico do IINN e atual diretor do ICE.
Separação. Ex-aluno de pós-doutorado de Nicolelis na Duke, de 2000 a
2005, Ribeiro foi o braço direito e principal apoiador do ex-professor
nos primeiros anos do projeto em Natal, referindo-se a ele em artigos na
imprensa como "o Pelé da ciência brasileira". Hoje, é seu maior
desafeto. No fim de julho de 2011, Ribeiro se juntou ao restante da
equipe do IINN e se mudou para o ICE, que a universidade havia criado
para lotar administrativamente seus professores e alunos do curso de
neurociências.
Procurado, Ribeiro preferiu não comentar sobre sua relação pessoal
com Nicolelis. "Nosso grupo deixou o IINN por entender que a
universidade é o melhor espaço para realizar nossa tríplice missão de
ensino, pesquisa e extensão", afirmou.