terça-feira, 25 de dezembro de 2012
Revistas de alto impacto publicam as piores fraudes
Do "Observatório da Imprensa":
ENTREVISTA / ELIANE
S. AZEVÊDO
Revistas de alto impacto publicam as piores fraudes
Por
Mauro Malin em 24/12/2012 na edição 726
Um
professor veterano da Universidade do Texas, Charles “Chip” Groat, pediu
demissão ao final da revisão de um estudo que conduziu sobre o processo de
perfuração do solo conhecido como fracionamento hidráulico (“hydraulic
fracturing”, ou “fracking”). A informação saiu em reportagem do site StateImpact Texas no dia
6 de dezembro.
O
relatório original de Groat, divulgado em fevereiro de 2012, tratava de
extração de gás de xisto (“Fact-Based Regulation for Environmental Protection in the
Shale Gas Development”). Concluía não haver relação entre método de
perfuração e contaminação da água. O que o autor não revelou é que ele integrou
o conselho de uma empresa de perfuração durante todo o tempo que durou o
estudo, o que lhe valeu receber US$ 1,5 milhão em cinco anos. A revisão
encontrou erros de elaboração, além de outras falhas na maneira como o
relatório foi divulgado.
Fórum
Mundial de Ciência
Ética na
ciência e na comunicação de ciência é um dos grandes temas propostos para a
discussão da participação brasileira no sexto Fórum Mundial de Ciências (FMC),
que se realizará no Rio de Janeiro em novembro de 2013 (veja informações sobre
o evento em http://fmc.cgee.org.br/).
Uma entrevista e um artigo trataram do assunto em edições recentes deste Observatório (“Comunicação científica para um público mais atento”
e “Ciência em tom jornalístico”).
A
preparação brasileira para o FMC incluiu até agora quatro encontros
preparatórios, realizados em São Paulo, Belo Horizonte, Manaus e Salvador.
Nesse último, a médica Eliane S. Azevêdo, professora emérita e ex-reitora da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), em palestra sobre “Desafios da Ética e
Integridade Científica”, falou sobre a influência da ciência na definição de
políticas públicas nas áreas da saúde pública, medicina, clima, ambiente,
agricultura, energia, influência que amplia a exigência de ética na condução e
na divulgação das pesquisas.
Dois
fenômenos foram destacados pela professora: o crescimento do número de desvios éticos
em publicações científicas e subsequente retratação pública de artigos
publicados, e o custo da má prática em ciência, assunto novo, abordado com
rigor e clareza pela palestrante.
A
professora Eliane concordou em dar a entrevista abaixo, feita por correio
eletrônico, na qual ela destaca que as fraudes mais graves são produzidas por
pesquisadores de primeiro time, por isso sua detecção é mais difícil, custa
mais caro e demora mais, do que resultam danos mais extensos e profundos.
Em relação
aos meios de comunicação, a ex-reitora diz que “as desonestidades mais graves,
isso é, fabricação e ou falsificação de dados são preferencialmente publicadas
em revistas de alto impacto (Science, Nature, Cell etc.).”
Mais
fraudes, vigilância intensificada
O aumento do
número de retratações, observado em pesquisa que a senhora mencionou em sua
apresentação, indica acréscimo da ocorrência de comportamentos fraudulentos ou
intensificação da vigilância?
Eliane S.
Azevêdo – Creio tratar-se de uma confluência de
fatores dentre os quais intensificação da vigilância e aumento de ocorrência,
conforme lembrado. Esses fatores, todavia, estão interligados a variáveis
causais como pressões institucionais por publicações; obsessão em atendê-las;
competição por recursos; prestígio conferido a currículos longos; crescente
número de pesquisadores; ambições pessoais sem crivo moral, etc. Além disso,
ações educativas para a boa prática científica ainda são incipientes e até
mesmo ausentes em muitas instituições universitárias, grupos de pesquisa,
cursos de pós-graduação, editores de revistas, etc.
A senhora
diria que falhas de filtragem de artigos em revistas científicas tendem a ser
magnificadas em jornais e revistas, cujos filtros costumam ser muito mais
precários?
E.S.A. – As editoras de revistas científicas e seu corpo editorial
compartilham igual responsabilidade social na divulgação de boa ciência, isso
é, ciência sem fraudes, fabricação, falsificação, plágios, autoplágios,
duplicações, fatiamentos, etc. A criação do COPE (Commitee on Publications
Ethics) em 1997, na Inglaterra, e ampliação à Wade (World Association of
Medical Editors) com objetivo central de prover editores e revisores com
conhecimentos para melhor lidar com situações suspeitas de desvios éticos na
pesquisa, traduz a importância do problema sob o olhar das revistas
científicas. Infelizmente, não se trata de uma prática dos editores em todos os
países, e suspeitamos ser praticamente inexistente em jornais e revistas de
divulgação.
As
revistas científicas devem funcionar como a última barreira na filtragem ética.
Se falha a filtragem e a publicação é reproduzida em jornais e revistas
dificilmente haverá reversão de danos com a retratação.
No Brasil,
cientistas alertam imprensa
Ao que
tudo indica, a grande imprensa brasileira está alheia à extensão dos prejuízos
causados pelas falhas éticas em publicações científicas. A senhora concorda com
essa hipótese?
E.S.A. – Ainda que esteja alheia a uma avaliação criteriosa dos
prejuízos, não está alheia à existência das questões da integridade científica.
Existem cientistas brasileiros alertando e até mesmo conclamando por ações
educativas e ou de vigilância. Considero urgente que, no Brasil, a geração
atual de pesquisadores íntegros aponte os danos intelectuais, morais e
financeiros gerados pela má prática científica e agregue reflexões pertinentes
aos ensinamentos que transmite aos alunos. Existe ampla literatura internacional
sobre o tema, inclusive com estudos de meta-análise sobre artigos retratados e
formulação matemática para cálculo do custo financeiro de um artigo retratado.
[Meta-análise, segundo o criador do termo, Gene Glass, é “uma análise
estatística de grandes coleções de resultados de estudos individuais com o
propósito de integrar os achados desses estudos”; fonte: Wikipedia.]
O perfil
dos desonestos em ciência já começa a ser desenhado: não são intelectualmente
medíocres; as desonestidades mais graves, isso é, fabricação e ou falsificação
de dados são preferencialmente publicadas em revistas de alto impacto (Science, Nature, Cell etc.).
Quando a má prática é menos grave, por plágio ou duplicação, a preferência é
por revistas de médio impacto. Essas associações são relatadas com
significância estatística. Assim, a ocorrência e o tipo de má prática em
ciência têm certa aderência ao nível intelectual dos desonestos. O recorte
moral dos cientistas atuais parece não diferir do resto da humanidade...
Teríamos sido diferentes no passado? Confiamos que melhoremos no futuro...
Demora
agrava prejuízos
Fale sobre
as consequências negativas da demora entre a publicação de texto fraudulento e
a retratação.
E.S.A. – Começamos a pensar sobre essa associação em 2009, quando lemos
na newsletter do Office of Research Integrity (ORI) o relato
de dezesseis artigos retratados, todos da autoria de dois pesquisadores
americanos e publicados entre os anos de 1997 e 2005. Entre o início das
publicações e a data das retratações passaram-se doze anos, período suficiente
para que se construísse uma corrente de pensamento médico e práticas de ensino
fundamentadas na consulta a artigos de revisão ou de meta-análise. Assim,
resolvemos verificar através do repositório PubMed. Encontramos não apenas um
longo trabalho de revisão com quatro citações dos artigos retratados, mas,
também, o próprio texto da revisão tecia elogios aos trabalhos dos dois
pesquisadores, agora reconhecidos como desonestos. Imaginamos que quanto maior
o tempo decorrido entre a publicação fraudulenta e sua retratação mais se
difundem danos irreparáveis à ciência. Com essa visão, escrevemos à direção do
ORI, que publicou nossas considerações na newsletter de
dezembro de 2009. Estudos recentes (Fang e col. 2012) demonstraram que o tempo
entre a publicação e a retratação é em média de dois anos nos casos de plágio e
de quatro anos nos casos de fraudes.
Plágio e
fraude
Que
mecanismo está por trás da constatação de que “quanto pior o tipo de fraude,
mais tempo ela demora para ser reparada”.
E.S.A. – Os casos de plágios podem ser detectados por qualquer pessoa e
comprovados mediante comparação dos dois textos: original e plagiado. Além
disso, já existem no mercado aplicativos com funções específicas para detectar
plágios.
Nos casos de
fraudes, por outro lado, percorre-se penoso processo de investigação que nasce
com a denúncia de suspeita, verificação inicial por comissão local da
instituição, subsequente abertura de processo investigatório por órgão
credenciado. A investigação examina as anotações originais, entrevista pessoas
da equipe, além de conduzir o interrogatório aos pesquisadores suspeitos. Tudo
isso requer tempo/horas de competentes pesquisadores, advogados, técnicos,
burocracias, etc. e tem alto custo financeiro. É raro situações como a de certo
pesquisador que impediu o andamento da investigação sob a alegação que os
papéis com as anotações originais “o cupim comeu...” Por outro lado, não são
raros os pesquisadores assumirem-se culpados, conforme constatamos nos relatórios
públicos do ORI. Nos EUA, o ORI é órgão governamental com função específica de
receber denuncia de má prática científica, conduzir o processo investigatório,
divulgar as conclusões, indicar artigos para retratação e aplicar as
respectivas penalidades aos pesquisadores infratores. Infere-se, assim, que
quanto mais elaborada a montagem científica da fraude mais difícil vencer as
dissimulações do pesquisador desonesto.
O CNPq
constituiu uma comissão de ética, mas, salvo engano, ela ainda não teve
oportunidade de examinar nenhum caso e de tomar alguma deliberação. Qual sua
expectativa em torno do trabalho dessa comissão? Os problemas de fraude são
graves no meio científico brasileiro?
E.S.A. – Temos conhecimento, sim, da criação dessa comissão. Percebemos
que criar uma comissão tenha sido o passo preliminar para posterior instalação
de um órgão ligado ao CNPq, mas independente, dirigido por pessoa de alta
qualificação moral e científica e em dedicação exclusiva, amparada por
competente equipe e infraestrutura investigatória, tudo isso bem protegido de
qualquer fluxo de influência. Acreditamos não ser fácil, porém, sem ser
impossível, criar-se algo semelhante ao ORI aqui no Brasil.
Desconhecemos
estudos que indiquem a frequência de fraudes científicas no Brasil. Casos
isolados já vieram a público. Concluímos reafirmando que ações educativas sobre
integridade científica devem ser oferecidas, de imediato, na formação de jovens
em iniciação científica, nos cursos de graduação e de pós-graduação, nos
institutos de pesquisa, e paralelamente exigidas pelas agencias de fomento e
revistas científicas.
***
A
apresentação da professora Eliane S. Azevêdo no 4º Encontro Preparatório para o
FMC, realizado em Salvador, pode ser vista aqui (trata-se do penúltimo
vídeo; a fala da professora começa duas horas e 12 minutos após o início da
exibição).
Fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed726_revistas_de_alto_impacto_publicam_as_piores_fraudes