As vítimas silenciosas do Haiti
Embora o país seja atingido regularmente por desastres naturais e políticos, o estupro é crise especialmente cruel
17 de dezembro de 2012 | 2h 01
Athena Kolbe e Robert Muggah, The New York Times - O Estado de S.Paulo
Uma mensagem de texto foi o primeiro sinal de que algo
estava errado. Na semana após o furacão Sandy atingir o Haiti, nossa
equipe de pesquisa estava avaliando os crimes ocorridos após o desastre,
a segurança dos alimentos e a oferta de serviços. A mensagem veio de
uma pesquisadora haitiana que integrava nosso grupo, uma jovem que
estava fazendo seu mestrado, talentosa e entusiasta, que chamaremos de
Wendy.
Ela caminhava sozinha a alguns quarteirões do nosso hotel quando foi forçada a entrar numa casa e brutalmente violentada.
Rapidamente localizamos um médico, que se recusou a examiná-la,
dizendo que ela deveria passar primeiro pela polícia. Quando contatamos a
polícia e após uma penosa entrevista em que o policial perguntou
repetidas vezes "o que você fez para fazer com que ele a violentasse?", o
policial disse que ela poderia ser examinada. O médico contudo, não foi
encontrado.
Embora o Haiti seja atingido regularmente por desastres naturais e
políticos, o estupro é uma crise especialmente insidiosa. A brutal
ditadura no país usou-o como instrumento político para corroer a
oposição. Um estudo realizado em 2006 concluiu que cerca de 35.000
mulheres e meninas em Porto Príncipe foram violentadas num único ano.
Após o terremoto de 2010, as mulheres que viviam em barracas na
capital tinham 20 vezes mais probabilidade de reportar um ataque sexual
do que outras haitianas.
Os promotores haitianos relutam em abrir processos contra os
estupradores salvo se a vítima for examinada por um médico dentro das
primeiras 72 horas para "atestar" o estupro, mas poucas vítimas
conseguem satisfazer esta exigência. A polícia enviou Wendy a uma
clínica do Estado na cidade mais próxima, a três horas de carro viajando
por estradas destruídas pelas águas . Quando Wendy chegou à clínica foi
informada que o médico não estava. Uma enfermeira disse que ele poderia
ser encontrado numa clínica particular próxima dali.
Já haviam se passado mais de 16 horas desde o ataque sofrido por ela.
Wendy não tinha tomada banho nem dormido. Suas roupas estavam
rasgadas e sujas. Havia sangue seco no local da cabeça que o estuprador
bateu contra a parede. O médico pediu um atestado policial de que uma
queixa tinha sido registrada antes de realizar o exame e colher fluidos
deixados pelo estuprador. Procuramos a polícia, mas o responsável alegou
que era preciso pagar uma "taxa" para liberar uma cópia do laudo.
Uma organização de direitos da mulher na capital sugeriu que pagamos
propina e posteriormente apresentou queixa junto aos superiores do
policial. Nossa colega viajou várias horas de volta à cidade onde o
estupro ocorrera, pagou um suborno de US$ 25 e esperou até o policial
escrever um relatório afirmando apenas que ela havia apresentado queixa
contra um indivíduo particular, mas não informou que ele a violentar.
Depois de alguma discussão o policial concordou em incluir a alegação de abuso sexual.
Passaram-se mais de 24 horas até Wendy finalmente ser atendida por um
médico que admitiu nunca ter examinado uma vítima de um estupro. Ela
gritou o tempo inteiro. As pessoas passavam aleatoriamente, entrando e
saindo da sala durante o exame, incluindo pacientes, enfermeiras e um
homem que visitava a esposa doente num leito adjacente.
Na América do Norte vítimas de estupro são medicadas para evitar uma
possível exposição a doenças transmitidas sexualmente e também com a
pílula do dia seguinte. Wendy estava apavorada de ter engravidado.
Declarou que, embora não defendesse o aborto, preferia "morrer" a ter
"um filho daquele homem". Ela conhecia a pílula do dia seguinte, mas
não sabia se estava disponível ou era legal no Haiti. O médico lhe
disse, falsamente, que depois de 24 horas já era muito tarde para
usá-la.
Depois do exame, a polícia recusou-se a receber o relatório médico ou
as amostras coletadas. Os policiais disseram que ela devia levar o
material a uma clínica gerida pelo Estado para vítimas de abuso sexual
na capital, a 15 horas de carro distante de Porto Príncipe. O médico da
clínica exigiu um pagamento exorbitante para apresentar o relatório
médico. O documento final declarou apenas que Wendy havia apresentado
uma queixa de estupro e que foram encontradas evidências do abuso.
Nenhum registro mais sobre as contusões nas coxas e os muitos ferimentos no seu corpo.
Antes de conseguir tomar um banho, Wendy teve de retornar à pequena
cidade onde o ataque ocorreu para mais um interrogatório da polícia.
Escassez. Por outro lado, percorreu farmácias em busca da pílula do
dia seguinte. Finalmente descobriu um farmacêutico que sabia do que se
tratava. Mas o remédio, como muitos outros no Haiti, era importado. As
instruções estavam em árabe e português, línguas que o farmacêutico
desconhecia.
Ele não sabia que embalagem continha a pílula do dia seguinte e qual
continha hormônios para mulheres na menopausa. Tampouco nossa colega,
que fechou os olhos e pegou uma caixa, que por sorte era o medicamento
correto. Depois de ingerir a pílula, Wendy dormiu durante a viagem
inteira na volta para Porto Príncipe, ajudada por um copo de gim caseiro
que o médico havia prescrito.
Não era nossa intenção manter oculto esse incidente. Contatamos a
polícia, as organizações de direitos da mulher e vários ministérios.
Falamos com o chefe de polícia da área onde o ataque ocorrera. Ele
disse ter interrogado o estuprador, que alegou que Wendy havia se
relacionado com ele de livre vontade. Como o relatório médico não
mencionou ataque sexual violento, o delegado que viu as contusões e os
ferimentos disse que não podia fazer nada.
Telefonemas para as organizações de direitos das mulheres e outros
grupos da sociedade civil confirmaram que quase nada poderia ser feito.
"Vocês podem pagar alguma coisa, dar a eles uma compensação para
prender o sujeito", disse uma funcionária. "Mas provavelmente ele pagará
outra propina e será solto".
Durante décadas as vítimas haitianas foram acusadas de incentivar o
estupro e raramente se opuseram a isso. Os políticos e a mídia perpetuam
esses estigmas. E também a lei: o depoimento de uma mulher de que não
consentiu com o ato sexual era insuficiente para uma condenação, e a
indenização em dinheiro ou o casamento com o estuprador eram as
soluções. Uma lei sancionada em 2005 tornou o estupro crime punível
depois de uma forte pressão de mulheres que foram violentadas e do
ministério haitiano da mulher. Em 2010 a lei foi reformulada após
relatos assustadores de estupros cometidos contra idosos e crianças.
Mas é difícil se desfazer de velhos hábitos. No Haiti a atitude com
relação ao estupro é similar àquelas que eram comuns nos Estados Unidos
antes dos anos 70 e 80. As autoridades haitianas com frequência afirmam
que moradores de favelas e de acampamentos para pessoas desalojadas são
promíscuos. Apesar das novas leis, poucas mulheres informam as
autoridades diante das normas sociais que prevalecem, em que as vítimas
são consideradas culpadas pelo próprio estupro. E mesmo as poucas
sobreviventes conseguem passar pelos complicados procedimentos para
apresentar uma acusação contra um estuprador.
Educação, dinheiro e relações não ajudam necessariamente. Quando
Wendy retornou a Porto Príncipe ela só pensava em voltar para sua
família.
Sua mãe nos agradeceu por levá-la ao médico e pediu para nunca mais
mencionarmos o fato novamente. Wendy disse que queria simplesmente
esquecer o que ocorreu.
Ela se culpou por andar sozinha, usar calças emprestadas que eram
muito apertadas, por sorrir e dizer alô quando um homem se aproximava
dela, por ficar fria e não gritar quando foi atacada. Apesar da sua
educação, capacidade de recuperação e sua dedicação no combate à
violência contra as mulheres, Wendy não conseguiu enfrentar o penoso
caminho de um processo por estupro no Haiti. Assim ela desistiu e pediu
para fazermos o mesmo. Quando informamos o grupo de direitos das
mulheres que ela não pretendia continuar com o processo, ninguém
demonstrou surpresa.
"Isso ocorre sempre", disse uma das funcionárias. "Tomamos
conhecimento de dezenas de casos todo mês e em quase todos nenhuma
mulher quer abrir um processo.
/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO * ATHENA KOLBE É PESQUISADORA DA ESCOLA DE TRABALHO SOCIAL DA UNIVERSIDADE DE MICHIGAN E CODIRETORA DE UM INSTITUTO DE TRABALHO SOCIAL EM EM PETIONVILLE, NO HAITI. ROBERT MUGGAH É DIRETOR DE PESQUISA DO INSTITUTO IGARAPÉ DO BRASIL E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
Haiti’s Silenced Victims
Damon Winter/The New York Times
By ATHENA KOLBE and ROBERT MUGGAH
Published: December 8, 2012
A TEXT MESSAGE was the first sign that something was wrong. In the week
after Hurricane Sandy hit Haiti, our research team was assessing
post-disaster crime, food security and service provision. The message
came from a Haitian researcher in our group, an enthusiastic and
talented graduate student whom we’ll call Wendy. She had been walking
alone a few blocks from our hotel when she was forced into a house and
brutally raped.
We quickly located a doctor but he refused to examine Wendy, saying she
needed to be seen by the authorities first. We then contacted the
police, and after a grueling interview in which one officer repeatedly
asked Wendy, “What did you do to make him violate you?” the police said
she was free to be examined. The doctor, however, couldn’t be found.
Although Haiti routinely suffers from political and natural disasters,
rape is an especially insidious crisis. Haiti’s brutal dictatorships
used rape as a political tool to undermine the opposition. A 2006 study
reported that some 35,000 women and girls in Port-au-Prince were
sexually assaulted in a single year. In the aftermath of the 2010
earthquake, residents of the capital’s tent cities were 20 times more
likely to report a sexual assault than other Haitians.
Haitian prosecutors are reluctant to pursue charges against rapists
unless a victim is examined by a doctor within the first 72 hours to
“certify” the assault, but few victims are able to satisfy this
requirement. The police referred Wendy to a state-run clinic in the
nearest large town, a three-hour drive over washed-out roads. When Wendy
arrived she was told the doctor was out. A nurse mentioned that he
could be found at a private clinic nearby.
It had been more than 16 hours since the attack. Wendy hadn’t slept or
bathed. Her clothes were ripped and dirty. Dried blood matted her hair
where the rapist had slammed her head against a wall. The doctor wanted
verification from the police that a sexual assault complaint had been
filed before he conducted an examination to retrieve fluids left by the
perpetrator. The police were called but they claimed a “fee” was
required before they would release a copy of the sexual assault
complaint.
A women’s rights organization in the capital suggested we pay a bribe
and complain to the policeman’s superiors later. Our colleague drove
several hours back to the town where the assault had taken place, paid a
$25 bribe, and waited while the officer wrote up a report that merely
stated that Wendy had lodged a complaint against a particular man but
not that she had been raped by him. After some argument, the officer
agreed to include the allegation of sexual assault.
It took more than 24 hours before Wendy finally saw a doctor who
admitted he’d never been trained to examine a rape victim. She cried the
entire time. Random individuals wandered freely in and out of the room
during the exam, including patients, nurses and a man visiting his sick
wife in an adjacent bed.
In North America, rape victims are often given medication to fight
possible exposure to sexually transmitted disease as well as the
morning-after pill. Wendy was terrified of pregnancy. She declared that
although she didn’t believe in abortion, she would rather “die” than
have “that man put a baby inside of me.” Wendy knew about the
morning-after pill but wasn’t aware if it was available or legal in
Haiti. The doctor falsely told her that after 24 hours it was too late
to use it.
After Wendy’s exam, the police refused to pick up the medical report or
fluid samples collected by the doctor. Instead, she was told to take
them to a state-run medical clinic for sexual assault victims in the
capital, a 15-hour drive away. The doctor then demanded an exorbitant
fee for the medical report. The final document stated simply that Wendy
had complained of being raped and was found to have evidence of sexual
activity. No record was made of the bruises covering her thighs or the
many lacerations on her body.
BEFORE Wendy could shower, she had to return to the small town where the
assault occurred for yet another interrogation by the police. Our
colleague, meanwhile, was scouring pharmacies for the morning-after
pill. He finally tracked down a pharmacist who knew what it was. But the
medication, like most pharmaceuticals in Haiti, was imported. The
instructions were in Arabic and Portuguese, neither of which the
pharmacist could read. He didn’t know which package contained the
morning-after pill and which contained hormones taken by post-menopausal
women. Nor did our colleague, who closed his eyes and picked a box,
which by chance happened to be the right one. After taking the pill,
Wendy slept for the entire ride to Port-au-Prince, helped into oblivion
by the glass of homemade gin the doctor had prescribed.
We had no intention of sweeping this incident under the rug. We
contacted the police, women’s rights organizations and various
government ministries. We spoke with the police chief from the area
where the assault had taken place. He said he had questioned the
perpetrator, who claimed that Wendy had had sex with him willingly.
Because the medical report made no mention of violent assault, the
police officer in charge, who had seen her bruises and cuts himself,
said there was nothing he could do.
Calls to the women’s rights organizations and other civil society groups
confirmed that there was little to be done. “You could pay something,
give them a gift so they arrest the guy,” one human rights worker
suggested. “But he’ll probably just pay another bribe and get out.”
For decades, Haitian victims were blamed for inviting rape, and seldom
spoke out. Politicians and the media perpetuated these stigmas. So did
the law: a woman’s testimony that she didn’t consent to sex was
insufficient for conviction, and monetary restitution or marriage to the
rapist was considered a solution. A 2005 law made rape a punishable
offense after intense lobbying from survivors and the Haitian Ministry
of Women’s Affairs. In 2010, the law was updated after chilling reports
of rapes committed against the elderly and children.
But old habits die hard. In Haiti, attitudes toward rape are similar to
those that were common in the United States before the 1970s and ’80s.
Haitian officials often claim that residents of slums and displaced
person camps are promiscuous. Despite new laws, few women will ever
report the event because of the prevailing social norms that blame
victims for their own assault. Even fewer survivors will be in a
position to navigate the complicated procedures to bring charges against
a rapist.
Having an education, money and connections doesn’t necessarily help. By
the time Wendy returned to Port-au-Prince she wanted only to return to
her family. Her mother thanked us for getting her medical attention and
asked that we never mention the rape to Wendy again. Wendy said she just
wanted to forget about it.
She blamed herself for walking alone, for wearing borrowed pants that
were too tight, for smiling and saying hello when the man first
approached her, for freezing up and not screaming when he attacked her.
Despite her education, resilience and dedication to fighting violence
against women, Wendy could not bring herself to face the grueling road
of rape prosecution in Haiti.
So she dropped it and asked us to do the same. When we told the women’s
rights group she didn’t want to pursue a case, they weren’t surprised.
“It happens all the time,” said a member of the staff. “We get dozens of
cases each month, and out of those sometimes not even one woman will
put herself through this process.” It is hard to blame them.