Absolvição sumária
Evitar a responsabilização de autoridades faz com que o Brasil se assemelhe a um Estado absolutista
15 de dezembro de 2012 | 16h 05
ROBERTO ROMANO
Em artigo jocoso, "Apenasmente" Cajazeiras,
o professor Eugênio Bucci analisou recentemente as acusações contra
Luis Inácio da Silva. Ele compara o político popular ao personagem da
novela O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu. Boa dose de injustiça
ressalta do texto, mas vários elementos devem nele ser levados em conta,
como a crítica dos que eximem a priori o ex-presidente de toda
responsabilidade pelos malfeitos cometidos em seu governo. Lula, escreve
Bucci, "teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se
aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se
refugiar no mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de
precocemente instalado, é oco". Discordo da última frase e me apoio no
antropólogo Malinowski: "O mito é um subproduto constante de uma fé viva
que precisa de milagres, de um estado sociológico que tem necessidade
de precedentes e de um código moral que exige uma sanção". A taumaturgia
cortesã se opõe à racionalidade da ordem política e jurídica. Não
existe mito oco ou inocente.
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
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Dois pilares, na república democrática, garantem o direito e a
liberdade. O primeiro é a transparência dos atos políticos. Tal
princípio é reforçado pela norma segundo a qual em todo processo os
fatos devem ser descritos à exaustão (quid facti), sem os
obstáculos das seitas, partidos, governantes poderosos. Os tribunais e
seus integrantes (polícia, ministério público, advogados de defesa)
precisam apurar os atos, os documentos, os testemunhos para definir uma
narrativa sólida, contrária ou favorável ao acusado, do humilde cidadão
ao poderoso. Outro item é a busca de situar os fatos sob a lei que os
sanciona positiva ou negativamente (quid juris). Na
Constituição brasileira estão previstos os casos em que governantes,
atuais ou pretéritos, devem responder perante a nação. Nenhum parágrafo
afirma que um líder, por sua popularidade ou grandeza, deve escapar da
pesquisa dos fatos e das normas jurídicas. A Constituição, no entanto,
não é espelho fiel do que ocorre na política nacional. Falar no Brasil
em responsabilização de grandes líderes é anátema que faz surgir de
imediato, nos lábios de quem manda na esquerda e direita, a ladainha
sobre a intangibilidade do acusado, sua condição de pessoa acima das
outras. Semelhante traço oligárquico impede a soberania popular, gera os
tutores do País.
Enquanto não existir responsabilização das "autoridades", o Brasil
será um anacrônico e virulento Estado absolutista no qual o soberano
jamais é o povo e sim o ocupante do trono e seus cortesãos. O gestor e o
político não podem ter contra si nenhuma acusação ou dúvida. É o que
manda a fórmula restritiva "ilibada reputação" (illibatus, no
latim bem conhecido pelos nossos poderosos significa "íntegro",
"completo"). Quando um prócer de qualquer partido ou ideologia sofre
acusações que chegam à sociedade ele deixa - mesmo que inocente - de ser
"ilibado", condição a que retorna se a Justiça assim o decidir. Quem
paga impostos ou aceita obedecer às leis sob autoridades espera que os
dirigentes sejam ilibados. Para manter um cargo é preciso que o
funcionário, mesmo na chefia do governo, seja responsável e
responsabilizado. Essa doutrina foi compendiada por John Milton e
acolhida nas democracias: "Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos
seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra". (The Tenure of Kings and Magistrates).
É evidente que a imprensa não pode ser instância julgadora. Ela, não
raro, abusa ao veicular acusações. Mas é também evidente que os
julgamentos podem deixar de existir se atos que atentem contra o Estado e
a sociedade não forem trazidos ao eleitor. Quando um político é acusado
de negligência ou crime, para manter a fé pública o correto é
investigar as denúncias até que prova cabal ou juízo as dissolvam. O
político representa o Estado e deve ser íntegro. Caso contrário,
desaparece a base legitimadora do poder que se regula pela democracia e
se justifica pelo direito.
No Brasil, o poder público está sempre em crise, o que evidencia o
frankenstein jurídico e institucional do nosso Estado. Apesar de sinais
que anunciam melhorias na ordem política, como a lei de improbidade
administrativa, a lei da ficha limpa, a lei de acesso à informação e
outras, a fé pública é frágil entre nós. Combater a descrença da
cidadania exige apurações isentas e responsáveis, sem truques afetivos e
propaganda enganosa. A cada novo dia é preciso mostrar, por atos e
palavras, que existe compromisso ético. Sem tais atitudes públicas e
particulares, a governabilidade é impossível. Estado desprovido de fé
pública não pode ser um regime livre e responsável.
A governabilidade tem como pressuposto a obediência, pela cidadania
soberana, das leis elaboradas no Parlamento e destinadas à execução pelo
governo. Se os eleitores não podem confiar na abrangência universal das
referidas normas, se existe suspeita de que elas não valem para todos e
para cada um dos cidadãos, se existem pessoas acima da lei, some a
governabilidade. Bismarck dizia que duas coisas o cidadão ignora porque,
caso contrário, jamais aceitaria: o modo pelo qual são produzidas as
salsichas e as leis. Ele usa a figura médica antiga que une o poder
político ao "regime". As leis alimentam o corpo político e devem ser
controladas pelo juízo público. Este último requer ética e decoro dos
políticos, estejam eles no poder ou fora dele. Bismarck foi contrário à
democracia, inimigo da soberania popular. Se aplicarmos seu exemplo, no
entanto, as nossas salsichas e as leis não passariam nunca pelo controle
das secretarias de abastecimento. Nossos políticos, que se julgam acima
do povo, provam apenas que elas surgem com o prazo vencido, apodreceram
porque supõem o absolutismo ou a oligarquia. Não valem para uma
república democrática.
* ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA)