Oportunismo de esquerda e religião
Roberto Romano
Devido
à batalha surgida nas eleições presidenciais, estudiosos e jornalistas
me procuram para falar de meu primeiro livro, “Brasil, Igreja contra
Estado” (esgotado). Nele, mostro que a ordem católica tem seus próprios
fins, não se deixa desviar em demasia por assuntos ideológicos ou
políticos. Se ocorrem rupturas drásticas na instituição religiosa surge
uma nova igreja (como na Reforma), mas as dissidências menores são
absorvidas pela Hierarquia.
Quando
o livro surgiu corria o ano da Graça de 1979. Morto João Paulo I,
subira ao trono João Paulo II, reformulando o trato da Igreja com o
mundo. É preciso levar em conta a grande abertura aos assuntos seculares
empreendida sob João XXIII e Paulo VI. Os dois conduziram o Concílio
Vaticano 2º que definiu novas orientações aos fiéis nas lides com a
sociedade política, em especial na Gaudium et Spes. Quando a Igreja se
abre em demasia ao exterior, ela tende a perder coesão interna. Logo, a
sua Hierarquia, seguindo um saber prudencial de milênios, retoma a
centralização disciplinar e dogmática, atenua em suas periferias o
ímpeto inovador. Em tal movimento de sístole e diástole, a Igreja mantém
a sua universalidade e movimento unificado.
Em
1979 João Paulo II iniciou o Termidor na ordem eclesiástica. Na moral,
na política, na cultura, tudo foi feito pelo Pontífice para colocar um
freio nas adesões aos valores seculares. Dada sua experiência com o
mundo soviético, incluindo a Polônia comunista, ele reprimiu as
tendências socialistas no interior da Igreja. Seminários foram
modificados, o clero passou a ser visto de mais perto pelos bispos, a
doutrina social da Igreja foi retomada em detrimento de sínteses entre
cristianismo e marxismo. Meu livro mostra a lógica da instituição,
evidenciando que jamais, no seu todo, ela poderia se tornar socialista,
como jamais se rendeu ao capitalismo, ao absolutismo, ao feudalismo,
etc. Como a tese lógica e histórica ia contra os desejos da esquerda, e
feriam interesses da direita, o seu autor foi atacado de maneiras
distintas. Na margem esquerda, resenhas e reportagens caluniosas. A
bibliografia internacional sempre menciona o volume, as nacionais,
sobretudo as da esquerda, o afogam em silêncio nada obsequioso.
Uma
técnica usada contra mim foi espalhar que eu era um “revoltado” contra a
Igreja. Sou gratíssimo à Ordem dos Pregadores por tudo o que nela
recebi, do plano especulativo ao prático. Guardo os instantes de
silêncio, estudo, culto e lazer com pessoas do mais elevado espírito. Se
me mantenho entre os membros da Igreja é porque tenho nela uma fonte de
esperança. Mas nunca deixei que a crença obnubilasse o juízo crítico.
Não confundo a Igreja com determinados setores seus, cujos matizes vão
da direita à esquerda social e política. Não aceito que tentem impor
como norma de fé as suas opções ideológicas. Quando uma pessoa como
Paulo Evaristo fala, eu penso e obedeço. Entre o Grande Inquisidor e o
Cristo, a opção imperativa é pelo segundo.
Recordo,
após 30 anos, a resenha de “Brasil, Igreja contra Estado” feita por
Clodovis Boff, irmão do teólogo. Na época, ele pregava o uso, pela
teologia, da “mediação sócio-analítica” marxista. Entre os dogmas
proclamados por ele, estava o que afirmava ser a Igreja uma instituição
grávida de socialismo. O autor teve, para sua verrina, duas páginas da
Revista Leia Livros. Os editores me negaram o mesmo espaço para a
réplica, publicada… nas “Cartas do Leitor” em tipos quase invisíveis.
Boff aprovou a censura. Em 1980, além das críticas à URSS e ao santo
partido serem vetadas (o santo partido poderia ter sua sede no Kremlin,
em Pequim ou na “pequenina e gloriosa Albânia”) também eram proibidas as
críticas à esquerda católica, dada a suposta guinada eclesiástica para o
socialismo…
A
guerra de hoje, as hipocrisias das candidaturas, as zumbaias e rapapés
aos fiéis e pastores, tudo mostra que a esquerda limita-se a repetir
palavras de ordem e passa ao largo do problema religioso. Não basta
fazer o sinal da cruz: é preciso ir à lógica da instituição sagrada, o
que exige pensamento. E pensar dói. As querelas de hoje farão muito mal
ao Estado e à Igreja. O primeiro tem a soberania arranhada, a segunda
percebe uma ruptura na própria CNBB. Os ódios da campanha envenenam a vi
da nacional. O que é lastimável em todos os sentidos.
*Roberto
Romano da Silva é Professor titular de Filosofia da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), professor de Ética, também pela Unicamp.
Doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
de Paris e membro do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da
Unicamp, é autor dos livros "Brasil, Igreja contra Estado", de 1979,
"Corpo e Cristal, Marx Romântico", de 1985, e "Conservadorismo
Romântico", de 1997.