São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000
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Laterones!
ROBERTO ROMANO
Presenciamos tanta corrupção política no Brasil que não temos tempo para
refletir sobre o supremo furto, cometido no cotidiano do Parlamento. Refiro-me ao roubo dos valores maiores
que fundamentam a vida pública democrática. Sem correta ética social,
afastamo-nos da segurança coletiva. E,
sem esta, não tem sentido elaborar leis
para todos os cidadãos.
Os atos cínicos que se tornaram frequentes em nossos Legislativos,
Executivos, Judiciários têm como base o
sequestro da igualdade cidadã. Quando a discriminação de pessoas e de
cargos é instituída numa república democrática, essa última deixa de ser
digna
até mesmo do próprio nome.
Espinosa, filósofo admirador de Maquiavel, forneceu as bases modernas
da vida democrática. Naquele regime,
"nenhum indivíduo transfere seu direito natural para um outro indivíduo
(em proveito do qual, desde então, ele
aceitaria não mais ser consultado). Ele
o transfere para o todo da sociedade
em que se integra; os indivíduos permanecem, deste modo, todos iguais,
como antes, no estado de natureza"
("Tratado Teológico Político"). Desde
então, as lutas dos povos livres definiram, enquanto conquista inalienável, o
direito à igualdade.
O Brasil, após 500 anos, dificilmente
pode ser visto como uma república democrática. Aqui as oligarquias antigas
e recentes assaltam o poder público,
sugam impostos e riquezas. Acostumadas a se nutrir do esforço alheio,
elas agarram privilégios, vilipendiam
os preceitos da justiça e das regras cidadãs. Alguns exemplos bastam: em
data recente, parlamentares instituíram no Congresso o nepotismo oficial,
integrantes do Executivo quebram regras e leis, sem vislumbre de punição,
magistrados substituem a toga pelo
banco dos réus e são apoiados de modo corporativo.
O último atentado
ao nosso direito público está sendo discutido no Parlamento. Talvez seja ele o
roubo pior e mais
profundo, na incessante busca de se abolir a igualdade. Trata-se do "foro privilegiado" dos mandatários,
algo que vai além das
prerrogativas inerentes aos cargos. No
efetivo, temos aí a proposta de um salvo-conduto para os administradores
ímprobos. São tantos corruptos no
país inteiro que o STF, mesmo multiplicado por mil, não será bastante para
os julgar com rigor.
No pretérito, diz o padre Vieira, "os
que assistiam ao lado dos príncipes
chamavam-se "laterones". E depois...
chamavam-se "latrones'". A licença política proposta no Parlamento amplia o
guarda-chuva protetor da exceção: dos
príncipes aos parlamentares, como
não poderia deixar de ser numa falsa
república. Políticos afoitos dizem não
permitir que um juiz togado julgue "alguém que recebeu milhões de votos".
Isso sacraliza a tirania. Usando esse
critério, Hitler não foi julgado. O mesmo diga-se de Augusto Pinochet e de
Fernando Collor.
Roubar dinheiro público é hediondo.
Pior é subtrair direitos coletivos, atribuindo-os apenas a uma casta que
parasita os governantes. A tentativa de
roubo dos nossos direitos, a busca de
privilégios corruptos,
deve ser barrada por
nós. Enquanto isso, é
bom espalhar o "Sermão do Bom Ladrão",
do padre Antônio
Vieira. Larápios devem receber a punição. Mas, adianta o padre, "haverá,
porém,
algum político tão especulativo que a queira limitar a certo gênero de
sujeitos, e que funde as exceções...". Os desonestos dizem que em
pessoas "de inferior condição será bem
que se executem estes e semelhantes rigores, e não em outras de
diferente suposição".
Foro privilegiado é negócio oligárquico ou atributo de monarquias aristocráticas. De qualquer modo, é tirania
em estado puro. Mandemos aos congressistas, por telegrama, fax, e-mail
ou carta simples, a frase de Vieira: "Em
matéria de furtar não há exceção de
pessoas, e quem se abateu a tais vilezas
perdeu todos os foros".
Roberto Romano, 53, filósofo, é professor de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). |