quarta-feira, 5 de março de 2014

A violência brasileira, abordada por dois entrevistados no Jornal da Unicamp em abril de 2007. Nada melhorou, pelo contrário.

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A cidadania acuada
 (Fotos: Henrique Esteves/Agif/Folha Imagem)A escalada da violência no país é analisada, nesta e nas duas próximas páginas, pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e pelo filósofo Roberto Romano. Ambos opinam sobre o papel do Estado, da elite, dos políticos e dos cidadãos nesse contexto, avaliam em que medida o fenômeno se institucionalizou, identificam as raízes do problema e falam sobre temas polêmicos – entre os quais a redução da maioridade penal – que emergiram sob a comoção provocada por casos recentes.
Jornal da Unicamp – As últimas três décadas assistiram não só à escalada da violência no país como também seu aprofundamento, capilarização, organização e institucionalização. Em que pesem soluções paliativas, a situação só tem se agravado. Qual a responsabilidade do Estado nesse estado de coisas? Trata-se de anomia, omissão, impotência, falta de vontade política ou tudo isso junto?

Luiz Eduardo Soares – A resposta exigiria uma tese de doutorado. Portanto, desde logo conto com a indulgência dos leitores ante a inevitável indigência da simplificação: a pergunta se refere à violência, o que nos remete a um universo quase ilimitado de relações, fenômenos e condições. Desigualdades sociais, de gênero, discriminações, racismo, intolerância, homofobia, as iniqüidades brasileiras são inúmeras e se manifestam nos mais distintos campos. A Constituição federal não é cumprida. A legislação infra-constitucional, tampouco. Em parte, isso bastaria para resumir nossos dilemas.

Comecemos por identificar as responsabilidades do Estado. A Lei de Execuções Penais (LEP) não é cumprida: o cárcere é o inferno. O Estatuto da Criança e do Adolescente tampouco se cumpre, com rigor (e já o Congresso se movimenta para alterá-lo, antes que se o aplique, até para que seja, efetivamente, avaliado): as entidades socioeducativas são simulacros do cárcere, sucursais do inferno. As polícias, via de regra (guardadas as variações estaduais) não valorizam seus profissionais, por um lado, nem os cidadãos, destinatários, afinal, da segurança que lhes compete prover – quando esses cidadãos são pobres, negros ou vivem em favelas e periferias.

A desigualdade no acesso à Justiça é uma ferida arreganhada com despudor ante nossos olhos – porém, nos aquietamos, anestesiados. Começa na abordagem policial (em que o filtro de classe e cor refrata a universalidade da lei e impõe seu crivo seletivo na contramão da eqüidade) e se conclui no cumprimento da sentença, passando pelas mediações judiciais em cujos meandros esta se constrói. Metade dos Estados brasileiros não conta sequer com Defensorias Públicas, as quais, quando existem, ainda não gozam das mesmas prerrogativas e condições de trabalho do Ministério Público. Pequenos ladrões de galinha se amontoam em galpões insalubres, enquanto criminosos confessos ostentam a liberdade polida à lupa delicadíssima e regiamente paga de exímios peritos em ourivesaria jurídico-formal.

A corrupção policial, de um modo geral, tem se mostrado extraordinariamente elevada, a ponto de que se radique e espraie, no país, o “crime organizado” –aquele que se caracteriza pela apropriação de instituições públicas e seus mecanismos, em benefício de interesses subalternos, privados e ilegais. A ineficiência é a contrapartida natural da corrupção, como o é a brutalidade, sobretudo letal, que alcançou patamares dantescos no Brasil. Nesse capítulo, o Rio de Janeiro constitui o caso mais grave: mais de mil pessoas são mortas todos os anos em ações policiais. O número de execuções corresponde a cerca de 65% desses casos. Também é no Rio onde mais morrem policiais. Cerca de 35, em média, por ano, em serviço, e o dobro, na folga.

Claro que a violência policial tem foco e endereço, não se distribui aleatoriamente ou “democraticamente”. Seus alvos são os jovens negros e pobres, do sexo masculino. Os mesmos que estão sobre-representados nas estatísticas da vitimização por homicídio doloso, em todo o país, ou nos censos penitenciários. Os mesmo que têm sido apanhados na malha da criminalização promovida por nossa política de drogas.

Paralelamente, estamos diante de uma criminalidade violenta crescentemente audaciosa e cruel. São cerca de 45 mil homicídios intencionais, no Brasil, todos os anos (27 por 100 mil habitantes). Os números relativos a outros tipos de crimes relevantes também são alarmantes. E há os crimes de colarinho branco, realimentados pela impunidade –e pelo viés já assinalado de nossa política criminal e de nosso sistema penal.

Como chegamos a esse quadro? Combinando a capacidade ilimitada de conciliação de nossas elites políticas com as estruturas que herdamos de nossa história autoritária – eis as marcas do que outrora denominamos desenvolvimento autoritário do capitalismo. Construímos, assim, esta democracia e esta Justiça, que representam avanços históricos notáveis, mas convivem com o caroço amargo de nosso patrimonialismo estamental hierárquico e discriminador.

Se os filhos da classe média freqüentassem prisões, entidades socioeducativas, fossem abordados com tiros de fuzil na nuca e pagassem o preço da hipocrisia e da irracionalidade de nossa política de drogas, já teríamos passado a limpo esses absurdos repulsivos e trágicos.

Roberto Romano – Não existe sociedade sem violência. Basta recordar a Bíblia, a Ilíada, Macbeth. Na Idade Média, as periferias urbanas tornaram-se perigosas devido à massa dos expulsos pelos violentos novos donos das terras. Deve-se lembrar o número terrível dos mortos aos milhões, na primeira e segunda guerras mundiais, os destruídos no Vietnã, os que sucumbiram às torturas nos golpes ditatoriais da África e Américas e tantos outros. Não esquecer os campos de concentração  como fruto do terror cujo nome é Razão de Estado.  A violência segue o homem do parto à morte. A religião, a cultura, o Estado procuram administrá-la. Mas não raro o mesmo Estado canaliza as forças infernais que latejam no sujeito humano e as usa em guerras, invasões etc. É preciso detectar os vários tipos de violência, para não absolver as mais graves com a exacerbação das menos amplas e profundas. Sim, qualquer assassinato é tremendo, porque mostra a voragem do vazio que suga todos os vivos.

Elias Canetti analisa, com frieza extrema, o alívio que experimentamos com a sobrevivência quando, em posição ereta, vemos um cadáver. Ele conecta os nossos sentimentos, naquela hora, com a gênese do poder. Mas uma coisa é a morte de milhares, causadas por bandidos que ainda não se apossaram do Estado. Outra, quando bandidos assumem o poder, com o direito de matar milhões. Um elemento que potencia o banditismo é a ideologia. Preocupa a retórica ensaiada por algumas quadrilhas paulistas recentes, que se apropriaram do jargão guerrilheiro. A síntese de ideologia e banditismo traz resultados piores do que os atos do chamado “crime comum”.

A violência pode ser atenuada, jamais extinta. Algumas formações sociais administram as lutas em seu interior. Mas nelas a violência usa a máscara dos bons modos. Depois que os indivíduos aderiram ao Estado, diz Hobbes, sendo-lhe vetado usar as garras ou facas, empregam a língua. No De cive se recomenda que todos procurem ser os últimos a sair das festas: a cada novo convidado que deixa a sala, línguas estraçalham sua reputação. A violência torna-se menos visível com a repressão estatal, mas não deixa de ser letífera. Sociedades que enfraqueceram a violência física podem retroceder, retornar à selvageria. . A educadíssima Alemanha, após se livrar parcialmente da truculência usada pelos nobres, instaurou formas bestiais na matança de pessoas por pessoas, de pessoas pelo governo.

Stephen Mesnnell, um estudioso da violência, afirma que “os comportamentos civilizados empregam tempo para se construir, mas dependem da manutenção de um alto grau de autocontrole, e podem ser destruídos rapidamente”. O mesmo pesquisador alerta: pensar que a lei e a ordem se deterioram em nossos dias e cresce o perigo cotidiano, pode ser grave erro. Na Inglaterra, por exemplo, durante séculos, as gerações expressaram os mesmos medos da violência, declínio moral, destruição dos valores tradicionais.

No caso brasileiro, os dados sobre o aumento ou a diminuição da violência devem ser vistos  em sincronia com outros, relativos ao crescimento da população urbana, aos fluxos migratórios, à complexificação da economia, às variações de emprego e de serviços essenciais, à concentração urbana, às mudanças culturais como na religião etc. Em especial, deve ser considerado o movimento comercial de país a país, o uso deste movimento para o contrabando de armas, de estupefacientes etc. Sem tais elementos, e outros, perde-se o equilíbrio no juízo ético. Daí, o fenômeno a que se chama genericamente de “violência” assume a amplitude aterradora de insuportável desmesura. Penso que este rol de questões subsumidas numa só palavra alerta contra a rapidez irresponsável da propaganda, dos slogans, das soluções mágicas, dos vieses ideológicos.

É preciso determinar a natureza dos crimes e as condições em que eles se efetivam. Por semelhante motivo, são relevantes pesquisas como as de Alba Zaluar, cujos dados sobre o comércio das drogas podem servir para a educação, a repressão, a prevenção policial ou judiciária. Zaluar indica com rigor lógico e empírico de quem se fala, quando se fala, onde se fala, ao se enunciar coisas sobre o emprego de jovens no comércio em pauta.

Com o aumento da população urbana, desprovida dos mínimos vitais e mesmo ecológicos, aumenta o exército de reserva, farta mão-de-obra juvenil para os traficantes. Estes, por sua vez, vendem mercadorias cuja origem está nos setores que “servem” o mercado mundial. Tanto o conhecimento do que se passa no país, quanto o controle das fronteiras, são estratégicos para a ação policial e judicial, se o alvo é coibir aquele mercado. Mas no governo brasileiro existem dogmas orçamentários, impostos politicamente. E aqueles dogmas rezam que a prioridade é o superávit primário, a satisfação dos especuladores financeiros etc. Recursos são extraídos da polícia. Eles serviriam à formação técnica de quadros, o aparelhamento científico etc. Com os cortes, enfraquecem os controles internos e externos. E vai por aí.

JU – Em sua opinião, onde estão as raízes do problema atual?

Luiz Eduardo Soares – Em parte, me antecipei, no final da resposta anterior. Aproveito, então, para mencionar outro fator: a inépcia dos liberais democráticos e das esquerdas para valorizar essas questões e enfrentá-las, com políticas públicas alternativas – elas existem, já foram amplamente expostas, em seminários, livros, entrevistas e planos governamentais, mas nunca mereceram apoio político substantivo para sua implementação consistente e continuada, enquanto política de Estado, não de governo, superior, portanto, a disputas partidárias e slogans ideológicos. Trata-se de tragédia nacional a exigir a mobilização e a união amplíssima, formando a coalizão necessária para a aplicação de um plano profundo de reformas.

Quanto aos conservadores, continuam surfando, demagogicamente, na indignação popular, contribuindo, entretanto, para a reprodução do problema. Ainda não compreenderam que sua visão estreita, unilateralmente repressiva, punitiva, não tem sido capaz de criar soluções. Pelo contrário, polícias brutais e um sistema penal míope, de cabeça inclinada, seletivamente impotente, gera benefícios a curto prazo, mas coloca em risco todo um processo civilizador, que também lhes deveria interessar, afinal de contas. Com o naufrágio na barbárie, todos perdemos. Insisto, todos. Essa história de que a barbárie interessa a alguns me parece inteiramente indefensável.

Aliás, essa esdrúxula tese paranóica faz parte do repertório de equívocos da esquerda mais estreita e sectária, segundo a qual o neoliberalismo tudo explica. A fórmula prêt-à-porter do momento, de novo, acaba afastando setores importantes do movimento social e do espectro político de uma participação mais positiva na construção de alternativas. Refiro-me àquela simplória equação: Estado-mínimo, desemprego em massa, potencial disruptivo inflacionado, escalada do encarceramento, contenção política via política penal. Se a sociedade fosse essa engrenagem funcional, armada pelo jogo banal de causa-efeito, e assim tão translúcida em sua racionalidade linear, tudo seria muito mais fácil.

Roberto Romano – Para o cristianismo a raiz reside no pecado original. Mas existem outras origens no mundo histórico. Para o Brasil, Alba Zaluar indica a gênese destes males na política repressiva dos positivistas jacobinos, adeptos da virtude, como uma das fontes do excessivo ajuntamento de indivíduos na prisão, fossem as acusações contra eles de crime ou delito, ou apenas porque não tinham emprego. A política repressiva assumiu preponderância, no mesmo passo em que as empresas não davam conta de absorver a gente jovem. Tentativas de mudar isto foram feitas também por positivistas, com a prática de educação técnica para as massas.

No governo Vargas, bastante inspirado no positivismo, com ajuda de várias correntes não-positivistas, foi instaurado o sistema “S”. Mas este sistema, hoje, não dá conta da população que dele necessita. A ditadura militar tem sua parcela de responsabilidade. Até 1965, o ensino de segundo grau brasileiro estava entre os melhores da América do Sul. Com a política deliberada de implodir as escolas públicas em favor das particulares, arruinou-se a máquina do ensino oficial. Aumentando os candidatos à mesma rede pública, e com meios arrasados, o desastre é o que vemos. 

Em Mimesis, Erich Auerbach critica, na indicação das causas, a técnica propagandística “que consiste em iluminar excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto, deixando na escuridão todo o restante que puder explicar e ordenar aquela parte, e que talvez serviria de contrapeso daquilo que é salientado; de tal forma diz-se aparentemente a verdade, pois que o dito é indiscutível, mas tudo não deixa de ser falsificado, pois que, da verdade faz parte toda a verdade, assim como a correta ligação das suas partes. O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado mais imediato. Contudo, o truque é, na maior parte dos casos, fácil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriu o seu tempo ou perdeu prestígio e tolerância, toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semi-consciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”.

Auerbach indica, nessas frases, a perseguição nazista aos judeus, ciganos, homossexuais, apontados como perigo que ameaçaria os honestos e “superiores” arianos. A propaganda isola aspectos efetivos e não os conecta ao todo a que pertencem.

'A centralização política corrompe
a teoria e a prática federativas

 (Foto: Antoninho Perri)JU - Fala-se que a violência gerou estados dentro do Estado, com leis próprias e uma dissociação crescente da sociedade civil. Até que ponto essa situação afeta o conceito de nação e de identidade nacional?

Luiz Eduardo Soares – Estou convencido de que o medo, de um lado (note-se que segurança é estabilização de expectativas positivas), e a desigualdade no acesso à Justiça (em seu sentido amplo, que envolve a abordagem policial etc, conforme já assinalado), de outro, interpelam e abalam experiências de coesão e identificação, ainda que dinâmicas gregárias continuem em curso e até se fortaleçam, na exata medida que a sociabilidade regida pela institucionalidade política entre em pré-colapso. Portanto, nada de alarmismos. Basta observarmos o vigor – e o fervor – religioso, na sociedade brasileira.

Roberto Romano – Se o Estado tem pelo menos três monopólios públicos, é para impor a soberania a todos os cidadãos. Como os fazendeiros desafiam a soberania – alguém tem notícia dos que mandaram matar os fiscais do trabalho em Unaí? –, o mesmo fazem poderosos em termos econômicos, que sequer acertam suas obrigações com o fisco etc. Existem verdadeiros exércitos de segurança privada, pagos pela classe média e rica, em detrimento da polícia oficial. E muitos policiais fazem o “bico” naqueles contingentes, porque os salários pagos na sua corporação atingem o nível da miséria. Tudo ocorre com as vistas grossas, cúmplices, dos políticos. Se a soberania é “relativizada” pelos que mandam no dinheiro e no poder, não surpreende que ela também o seja pelos pobres reunidos em quadrilhas – que, não raro, servem a interesses de muita gente fina que desfila nas colunas sociais. Se políticos responsáveis por cidades e Estados brincam com bicheiros e narcotraficantes no Carnaval, em palanques pagos pelos contraventores, como falar em respeito à soberania do governo?

Visto que o Estado, segundo Max Weber, é “uma organização que reivindica com sucesso um direito de fazer a lei num território, por força do controle do monopólio do uso da violência física legítima”, ele deve responder pelas situações em que a violência ilegítima se apresenta. Além do monopólio referido, o Estado possui pelo menos dois outros: o da norma jurídica e o que permite extrair impostos. Se os dirigentes, nas três faces estatais, não debelam o crime, não punem com eficácia, não usam bem os impostos, eles devem responder por isso.

Mas, no Brasil, os timoneiros do Estado raramente são responsabilizados, apesar do que diz a Constituição. O corporativismo do Legislativo absolve os legisladores improbos e indecorosos, falta  eficácia no Judiciário e surgem os sinais precursores de venalidade praticada por alguns juízes, e o Executivo optou pelas finanças em detrimento das políticas públicas. Em troca, a propaganda exige medidas draconianas contra “os bandidos”, “os monstros”. Quem adere a tais slogans esquece sua própria natureza humana, misto de ferocidade, desejo e força.

A propaganda vende a mentira de que existe um lado só, onde se reúnem cidadãos honestos e, de outro, apenas feras. No setor “honesto”, no entanto, muitos crimes são praticados. Notar este fato, prudencialmente, evitaria o privilégio, a impunidade, apanágio de poderosos e ricos, sobre os quais o holofote da mídia permanece tempo mínimo, se comparado ao gasto na exposição de transgressores pobres. Um jornalista importante mata sua namorada em plena luz do dia. A imprensa traz a noticia e depois cai o silêncio. O criminoso confesso é condenado e não é preso. Não se nota o escarcéu produzido quando alguém, desimportante para as colunas sociais e políticas, comete um assassinato.

JU – Há também quem coloque a violência brasileira no patamar de uma guerra civil, com a agravante de que os motivos não são ideológicos ou étnicos e os alvos são arbitrários. O que o sr. pensa disso?

Luiz Eduardo Soares – Os dados relativos à letalidade violenta intencional permitiriam essa analogia, mas ela é muito perigosa e eu prefiro evitá-la. Ela acabaria por justificar políticas de segurança pública irresponsáveis, criminosas, que definem favelas como territórios inimigos e seus habitantes como inimigos a serem enfrentados em incursões bélicas – ou como vítimas indiretas “naturais” de confrontos. Além do mais, não concebo uma guerra civil sem bandeiras e projetos de poder.

Roberto Romano – Existe uma guerra, antiga e trazida pelos colonizadores que exterminaram índios; antiga e violenta como a escravização dos negros; velha como o uso dos jagunços para intimidar e matar quem se levantasse contra os coronéis e fazendeiros etc. Como anda o processo da freira Dorothy Stang, uma entre milhares de pessoas assassinadas por encomenda de fazendeiros? Civil? Não sei. Mas insisto: os dados sobre a mortandade que resulta de assaltos, seqüestros, comércio de drogas, devem ser analisados em sincronia com os que indicam outras violências. Mata-se mais no trânsito brasileiro do que em muitas guerras. Todos conhecemos gente que fala de boca cheia contra os bandidos, mas desobedece o sinal vermelho, atropela e mata com frieza. E nunca vai para a cadeia. Falar em violência sem tocar nestes pontos é exercício inane ou técnica de pescar em águas turvas. O Brasil é a terra onde mais se repete o fato vivido pelo cínico Diógenes, citado pelo Padre Vieira em Sermão do Bom Ladrão: “Não são só ladrões (…) os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar (…): Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só”.

Quando vemos no Parlamento demagogos que deblateram contra “o crime” e redigem leis severas contra o roubo, é bom recordar Diógenes e Vieira. O foro privilegiado é prova cabal de uso das prerrogativas políticas como passaporte para delinqüir. Deste modo, os projetos oriundos da pura demagogia são negados pela prática costumeira da impunidade, no próprio âmbito do Congresso Nacional.

JU – A última campanha eleitoral para presidente da República tratou muito superficialmente o tema da segurança pública, para não dizer que o evitou. Como explicar essa indiferença?

Luiz Eduardo Soares – É realmente incrível, mas já não nos deve surpreender. A esquerda nunca reconheceu a legitimidade do tema e sempre pensou a violência criminal como epifenômeno das macro-estruturas sócio-econômicas; nunca reconheceu a necessidade de políticas de segurança específicas; apenas valoriza políticas estruturais, voltadas para as verdadeiras e permanentes causas dos problemas, ignorando que há políticas preventivas locais e focadas, capazes de produzir efeitos imediatos. Além do mais, a esquerda não gosta da polícia, porque a identifica com a repressão de classe e não a percebe como instituição fundamental para a democracia, para a qual é preciso propor uma política, no sentido nobre da palavra. A direita, com sua soberba, sempre acreditou conhecer as soluções – que estão sendo aplicadas, aliás, desde sempre, com raras exceções, com os resultados que se vêem. Quando falha, a direita propõe mais do mesmo. É notável!

Roberto Romano – A última campanha presidencial tratou todos os assuntos segundo a propaganda. Nenhuma política pública foi debatida a sério pelos candidatos. A segurança não foi exceção.

JU – Além da ausência de propostas concretas – normalmente restritas aos períodos eleitorais, com suas pirotecnias imagéticas e acessos verborrágicos –, as esferas municipal, estadual e federal jogam uma sobre as outras o ônus da ineficiência. Que análise o senhor faz dessa prática?

Luiz Eduardo Soares – Todos têm e não têm razão. O problema está em nossa Constituição, quando nos impede mudanças profundas no sistema de segurança e nas polícias. Precisaríamos implodir o artigo 144 para criarmos o Susp (Sistema Único de Segurança Pública); liberarmos os Estados para criarem novas polícias, inteiramente diferentes, organizadas de outro modo, e fecharem as atuais polícias, se lhes parecer adequado, respeitando os direitos trabalhistas dos policiais e os reaproveitando, claro.

Bastaria uma legislação infraconstitucional para regular o Susp – impondo exigências mínimas às polícias, as atuais ou aquelas por serem criadas, de qualidade, eficiência, legalismo e valorização profissional, com transparência e participação da sociedade, metas e avaliações, sob condições que propiciem uma gestão racional. E seria suficiente retirar do artigo 144 a definição uniforme do modelo policial. Com isso, estaria transferida para os Estados a autoridade para mudar – se desejarem fazê-lo. Além disso, teríamos de adotar uma Lei de Responsabilidade Social, ou socioeducativa e penal, para obrigar os governadores a cumprirem a LEP e o ECA.

A União teria de assumir responsabilidades na organização do Susp e o município se tornaria protagonista importante no sistema, atuando sobretudo na prevenção.

Roberto Romano – É o fruto da centralização política. No Brasil, isto corrompe a teoria e a prática federativas. Como tudo é acaparado pelo poder central e, dentro dele, pelo Executivo, os Estados e municípios não têm autonomia para empreender políticas públicas próprias à sua realidade. Na segurança, a federação norte-americana admite margens de autonomia insuspeitadas entre nós. O prefeito tem a polícia sob seu comando, com normas próprias, sem depender para tudo de Washington. Aqui, o alfa e o ômega residem no Palácio do Planalto. Em situações de crise, como a do PCC em São Paulo, mostra-se a fraqueza jurídica e policial da centralização excessiva.

Os demagogos, na falta de autonomia dos poderes municipais e estaduais, em suas falas nos legislativos, separam indivíduos e grupos e os expõem à execração, sem observar leis, direitos etc. Eles falam em “monstros” da Febem, mas calam sobre as condições em que o Estado submete os menores, nada enunciam sobre pesquisas que mostram os abusos contra mulheres, meninos a meninas no “santuário” do lar, silenciam sobre a falência dos sistemas educacionais, calam sobre as moradias onde se amontoam seres humanos como se fossem lixo, ignoram as condições de transporte coletivos e, sobretudo, escondem a ação truculenta de grupos corruptos e selvagens das polícias.

De vez em quando, como no caso da Favela Naval, por obra de amadores, o espetáculo da violência cometida oficialmente vem aos olhos do público. Demagogos da mídia usam aquelas imagens por um dia para melhorar o Ibope. Depois as jogam no arquivo. Todos clamam por leis severas contra os criminosos. Poucos recordam que a própria lei, como diz Diógenes o filósofo, é uma teia de aranha que prende os fracos, mas não segura os fortes e poderosos. 

JU – O Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, feito pela Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e a Cultura (OEI), põe cidades do chamado Brasil profundo no topo da barbárie, ao mesmo tempo em que joga ao pé do ranking regiões metropolitanas cujas populações vivem sobressaltadas. Essa leitura foi mal-interpretada ou está mesmo havendo um deslocamento dos focos de criminalidade? Dá para diferençar grilagem de terras, exploração ilegal de madeira, garimpo e contrabando – modalidades mais presentes no campo –, de seqüestro-relâmpago, furto, assaltos e latrocínios, que são ocorrências típicas da área urbana?

Luiz Eduardo Soares – Observe que esses dados não apontam queda da criminalidade nas grandes cidades. Mas, sim, apontam para a triste novidade, que é a nacionalização do problema, em sua diversidade. As razões são as mais diversas, mas o que se constata nessa pesquisa não surpreende. Eu tenho chamado a atenção há muitos anos – e não só eu, muitos colegas que pesquisam essas questões – para o fenômeno da nacionalização. O que está explodindo em cada região? Varia. Só estudos específicos nos dirão. Hipóteses há várias. De todo modo, tomemos cuidado. Numa cidade com 12 mil habitantes, um homicídio corresponde a mil homicídios na cidade de São Paulo. Se houver mil homicídios, em São Paulo, em um ano, e 1001, no ano seguinte, a variação não será sequer identificada. Mas se esse único homicídio, na cidade de 12 mil habitantes, for sucedido por dois homicídios, no ano seguinte, a estatística dirá que houve um crescimento de 100%. O que será verdade, mas não significará que a cidade vive uma situação mais grave do que São Paulo. Os números absolutos não devem ser esquecidos nas avaliações.

Roberto Romano – Minha resposta é negativa. É preciso tipificar cada ponto, caso oposto cai-se na inatividade e no desespero social, como está ocorrendo no Brasil. 

Quem é Roberto Romano

Nasceu no Paraná. Estudou em várias cidades do país. Participou do movimento estudantil de 1962 até 1968. Foi integrante da Ordem dos Padres Pregadores (Dominicanos). Foi preso político no governo militar. Fez a graduação e a pós em Filosofia (USP) e o doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, no CETSAS (Centre d´Études Transdisciplinaires) com a especialização em Filosofia Política. A tese foi publicada com o título de Brasil, Igreja contra Estado (Kayrós, 1979). É autor também de Conservadorismo Romântico, (Editora Unesp), Silêncio e Ruído (Editora da Unicamp) e O Caldeirão de Medéia (Editora Perspectiva), entre outras obras. Trabalhou na Unesp (Marília e Araraquara), na Faculdade de Educação da Unicamp (FE) e atualmente está ligado ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). Prestou concurso público para os cargos de livre-docente, adjunto e titular da Unicamp. Integrou a Congregação da FE e do IFCH. Participou da Cadi e do Consu, tendo também presidido a Comissão de Perícias da Unicamp. Publicou vários artigos especializados e colabora com diversos órgãos da mídia.

'É preciso se libertar do jogo entre reatividade e voluntarismo'
 (Foto: Antoninho Perri)JU – A recente polêmica em torno da violência social brasileira, na qual o filósofo Renato Janine Ribeiro foi acusado de abandonar o cânone do politicamente correto, é um sintoma de que os intelectuais começam a guindar o assunto ao primeiro plano? Como o sr. analisa esse debate?  

Luiz Eduardo Soares – Acho que o professor Renato Janine foi profundamente infeliz, mas não creio que esteja havendo um movimento em uma nova direção negativa, contrária aos direitos humanos. O que me parece é que o tema está chegando à agenda pública, finalmente, e aqueles que nunca se devotaram a estudá-lo, mesmo sendo intelectuais qualificados, tendem a pensá-lo como o faz o senso comum, o que é compreensível, ainda que, eu espero, talvez seja apenas o primeiro momento de um despertar para a gravidade das questões. Interessados pelo assunto, talvez os intelectuais se disponham a ler o que já se acumulou na matéria e logo descobrirão que caminhos racionais existem, desde que o problema seja armado com alguma sofisticação.


Roberto Romano – Peço desculpa, mas prefiro não responder a esta pergunta.

JU – Reduzir a maioridade penal é uma solução?

Luiz Eduardo Soares – Começo perguntando ao leitor, à leitora: você está satisfeito com o funcionamento de nosso sistema penitenciário, esse que tem atendido aos maiores de 18 anos e que muitos querem ver atendendo também aos menores de 18? Você acha que a aplicação das penas privativas de liberdade aos maiores de 18 os está impedindo de praticar crimes? Nossas prisões estão inibindo, prevenindo ou contendo a criminalidade? Estariam reeducando ou ressocializando os apenados? Como sabemos, as penas distribuídas pela Justiça não têm o propósito de vingar o mal feito, impondo ao malfeitor sofrimento equivalente àquele que ele infligiu à vítima. Por isso, não pergunto se alguém se sente saciado ao visitar nossas prisões e constatar a que extremos a vendetta foi conduzida.

Mas as perguntas não param aí. Gostaria de saber se alguém considera que o Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo aplicado, consistentemente? As normas que zelam pela separação entre as idades e os tipos de transgressão vêm sendo cumpridas? O processo socioeducativo vem sendo respeitado, em todo o seu rigor, em todos os níveis que envolve? As instituições responsáveis pela aplicação do ECA têm se mostrado equipadas e qualificadas? O acompanhamento posterior à internação, assim como a avaliação das trajetórias individuais têm respondido às exigências estipuladas pelo Estatuto? E as polícias têm se revelado preparadas para cumprir sua parte na aplicação do Estatuto?

Acredito que os leitores tenham respondido negativamente aos dois blocos de perguntas, porque, hoje, está óbvio que o nosso sistema penitenciário está falido. Na verdade, tornou-se uma gigantesca, caríssima, irracional máquina de moer espíritos, escola do crime e fonte de ressentimentos. As penas privativas de liberdade não têm servido aos seus propósitos originais. Pelo contrário, além de se revelarem inúteis como fator de inibição da criminalidade, têm concorrido para seu crescimento. Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente nunca foi aplicado para valer, em todas as suas dimensões e com o rigor de todas as suas exigências.

Ora, se todos respondem negativamente aos dois blocos de perguntas que formulei e, portanto, se concordam com as duas afirmações acima, estamos todos de acordo com o seguinte: 1) O que está falido não serve de modelo nem deve ser proposto como solução e muito menos faria sentido defender a ampliação de sua abrangência. Ou seja, se nosso sistema penitenciário é essa tragédia, é o desastre que todos conhecemos, em nome de quê poderia fazer qualquer sentido propor que, além de (des)servir ao público maior de 18 anos, ele estendesse suas funções, ampliasse suas responsabilidades e passasse a se ocupar também das crianças e dos adolescentes? 2) Antes de concluir pelo fracasso do ECA ou mesmo de criticar sua ineficiência (reeducativa e inibidora da prática de transgressões), antes de propor sua alteração ou substituição, não seria conveniente testá-lo?

Aliás, é curioso como, no Brasil, tendemos a achar sempre que nosso problema é a falta de leis e que a existência de leis adequadas seria suficiente para mudar a realidade. E é surpreendente como, em geral, estamos mais dispostos a propor mudanças legais do que a tentar aperfeiçoar a aplicação das leis que temos. Os problemas, em geral, não estão nas leis, mas na deficiência de sua aplicação. De resto, seria irracional trocar uma legislação sem lhe dar a chance de ser testada a sério.

Portanto, não creio que faça sentido torpedear o ECA antes de aplicá-lo com o rigor que merece e requer. Tampouco me parece razoável sugerir a extensão de um de nossos maiores fracassos nacionais, o sistema penitenciário, através do expediente legal da redução da idade de imputabilidade. Já não chega o tamanho de seu fracasso? Em lugar de sub-repticiamente postular sua extensão, deveríamos propor sua reforma radical e urgente.

Finalmente, um esclarecimento: a verdadeira dicotomia, que opõe os defensores do ECA e seus críticos, não pode ser traduzida pela diferença entre transigência e severidade. O ECA não retrata, decreta, institui ou legitima a transigência com a transgressão ou o crime. A oposição não é generosidade solidária e ilimitadamente compreensiva, portanto leniente e leviana, versus severidade e rigor na aplicação dos limites legais. Se a oposição continuar a ser apresentada à opinião pública nesses termos, não haverá nenhuma chance para os defensores do Estatuto.

O ECA é severo, se for realmente aplicado com o respeito devido a todas as exigências que contempla. Afinal, o Estatuto prevê a internação e determina medidas unilaterais, imperativas. Nenhum menino pede a aplicação das medidas socioeducativas. Elas não são voluntárias. São fortes e rigorosas. O fato de diferenciarem-se do encarceramento não as torna menos severas. Torna-as mais eficientes, se a meta a alcançar é a ressocialização, a redução da reincidência e a sinalização inibidora. As medidas socioeducativas do ECA diferenciam-se da mera privação penal da liberdade justamente porque o encarceramento não funciona, é contraproducente em todos os níveis. O que está em jogo, portanto, é o sentido da severidade. O que está em disputa é a definição prática, moral, legal e política dessa severidade. O verdadeiro dilema é saber qual deve ser a nossa severidade. Qual é a severidade mais apta a cumprir as funções sociais às quais se aplica com o rigor que lhe define o significado? 

Qual severidade melhor serviria à sociedade brasileira? Aquela que é adjetiva, isto é, que faz profissão de fé na retórica da intolerância, da dureza policial, do vigor punitivo, mas que, na prática, concorre para a reprodução da irracionalidade institucionalizada, alimenta um sistema penitenciário apodrecido, um aparato de segurança degradado, a violência policial e o desenvolvimento da criminalidade nas instituições que deveriam cuidar da ordem pública? Essa seria a severidade do fracasso e da impotência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é severo e poderá realizar seu potencial construtivo se for, algum dia, efetivamente aplicado. A severidade do Estatuto é aquela que se compatibiliza ao mesmo tempo com o respeito aos direitos humanos e com um sentido construtivo de responsabilidade, porque se volta para o futuro, repelindo a vingança.

Roberto Romano – As medidas simplistas, costumeiras no Brasil, apenas indicam uma pobreza de políticas públicas. Sempre que especialistas apresentam planos para atenuar a violência, indicam toda uma constelação, um sistema de providências a serem tomadas. Infelizmente, as questões de âmbito público são decididas no Brasil não com base em saberes, mas com fundamento na propaganda, no proselitismo demagógico de partidos, na pressão de setores sociais arcaizantes, beneficiários da mais injusta distribuição de renda do continente. 

JU – Que cenário o sr. antevê para o futuro próximo?

Luiz Eduardo Soares – Já vivi muitos momentos em que a profundidade da crise me fez crer que chegáramos a um ponto em que se tornaria racional a união de todos em torno de um projeto viável de mudança, com políticas preventivas inter-setoriais e reformas das polícias, das entidades socioeducativas e do sistema penitenciário, e em torno também de um efetivo esforço de redução das desigualdades no acesso à Justiça. Nada aconteceu, depois do espasmo das primeiras reações. Aprendi que não é a racionalidade que move a política.

Portanto, minha esperança hoje reside na conscientização das universidades, dos agentes de cultura – sobretudo jovem –, dos agentes sérios da mídia mais responsável, das lideranças sociais, daqueles, enfim, que poderiam contribuir para a sensibilização da opinião pública. Só assim, talvez, de fora para dentro – quem sabe? –, as lideranças políticas e os gestores comecem a se movimentar em uma direção mais consistente, para além da emergência e da crise, construindo um futuro que possa vir a ser menos marcado pelas crises –para que nos libertemos, finalmente, do eterno jogo entre reatividade e voluntarismo no varejo, refratário à construção sistêmica e sustentável. Uma fonte preciosa de esperança seria o desenvolvimento de uma consciência não-corporativa dos policiais. Mas isso parece estar ainda muito longe.

Roberto Romano – Todos os cenários são possíveis. Do inferno aberto à violência mascarada. O necessário é conseguir impor a soberania popular (consagrada em nossa Constituição), com a exigência da prestação de contas dirigida aos operadores do Estado nas suas três faces. Sem fé pública, os cidadãos honestos continuarão desconfiando do mundo político e jurídico e os desonestos terão maior latitude para delinqüir, não raro em companhia de legisladores. Sem acabar com este paradoxo, tudo o que se fizer é de fato paliativo. “Instale-se a moralidade, ou locupletemo-nos todos!”, seja de quem for a frase, ela é a única correta em termos éticos.

Se os políticos permanecem impunes, é tarefa da hipocrisia exigir a punição dos bandidos. Estes devem ser presos e condenados com rigor. E também aqueles. Se o procurador-geral da República teve a coragem e a lucidez de se referir a um número apreciável de legisladores como “quadrilha”, o final da frase deveria ser o seguinte: “que sejam condenados à maior pena do Código”. As ações  das engravatadas excelências refletem-se nas metralhadoras dos que dominam as ruas do Rio, de São Paulo etc. E se forem mantidos os privilégios dos parlamentares, ministros e quejandos, ninguém mais sentirá necessidade de ser honesto. E breve será oficialmente instituída a república bandalha. 

Quem é Luiz Eduardo Soares

Luiz Eduardo Soares é mestre em antropologia social, doutor em ciência política, com pós-doutorado em filosofia política. É secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu, RJ; professor da Universidade Cândido Mendes e da Uerj. Foi professor do Iuperj e da Unicamp, pesquisador do Iser, pesquisador visitante do Vera Institute of Justice, de New York, e professor visitante da Columbia University, University of Virginia e University of Pittsburgh. Foi secretário nacional de Segurança Pública (entre janeiro e outubro, de 2003); subsecretário de Segurança e depois coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (entre janeiro de 1999 e março de 2000); e consultor da prefeitura de Porto Alegre, responsável pelo plano municipal de segurança desta cidade (em 2001). Seus últimos livros são: Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública do estado do Rio de Janeiro (Cia das Letras, 2000); Cabeça de Porco, com MV Bill e Celso Athayde (Objetiva, 2005); Elite da Tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006); Legalidade Libertária (Lumen-Juris, 2006); e Segurança tem saída (editora Sextante, 2006).