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A escalada
da violência no país é analisada, nesta e nas duas próximas páginas,
pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e pelo filósofo Roberto Romano.
Ambos opinam sobre o papel do Estado, da elite, dos políticos e dos
cidadãos nesse contexto, avaliam em que medida o fenômeno se
institucionalizou, identificam as raízes do problema e falam sobre temas
polêmicos – entre os quais a redução da maioridade penal – que
emergiram sob a comoção provocada por casos recentes.
Jornal da Unicamp – As últimas três décadas
assistiram não só à escalada da violência no país como também seu
aprofundamento, capilarização, organização e institucionalização. Em que
pesem soluções paliativas, a situação só tem se agravado. Qual a
responsabilidade do Estado nesse estado de coisas? Trata-se de anomia,
omissão, impotência, falta de vontade política ou tudo isso junto?
Luiz Eduardo Soares – A resposta exigiria
uma tese de doutorado. Portanto, desde logo conto com a indulgência dos
leitores ante a inevitável indigência da simplificação: a pergunta se
refere à violência, o que nos remete a um universo quase ilimitado de
relações, fenômenos e condições. Desigualdades sociais, de gênero,
discriminações, racismo, intolerância, homofobia, as iniqüidades
brasileiras são inúmeras e se manifestam nos mais distintos campos. A
Constituição federal não é cumprida. A legislação infra-constitucional,
tampouco. Em parte, isso bastaria para resumir nossos dilemas.
Comecemos por identificar as responsabilidades do
Estado. A Lei de Execuções Penais (LEP) não é cumprida: o cárcere é o
inferno. O Estatuto da Criança e do Adolescente tampouco se cumpre, com
rigor (e já o Congresso se movimenta para alterá-lo, antes que se o
aplique, até para que seja, efetivamente, avaliado): as entidades
socioeducativas são simulacros do cárcere, sucursais do inferno. As
polícias, via de regra (guardadas as variações estaduais) não valorizam
seus profissionais, por um lado, nem os cidadãos, destinatários, afinal,
da segurança que lhes compete prover – quando esses cidadãos são
pobres, negros ou vivem em favelas e periferias.
A desigualdade no acesso à Justiça é uma ferida
arreganhada com despudor ante nossos olhos – porém, nos aquietamos,
anestesiados. Começa na abordagem policial (em que o filtro de classe e
cor refrata a universalidade da lei e impõe seu crivo seletivo na
contramão da eqüidade) e se conclui no cumprimento da sentença, passando
pelas mediações judiciais em cujos meandros esta se constrói. Metade
dos Estados brasileiros não conta sequer com Defensorias Públicas, as
quais, quando existem, ainda não gozam das mesmas prerrogativas e
condições de trabalho do Ministério Público. Pequenos ladrões de galinha
se amontoam em galpões insalubres, enquanto criminosos confessos
ostentam a liberdade polida à lupa delicadíssima e regiamente paga de
exímios peritos em ourivesaria jurídico-formal.
A corrupção policial, de um modo geral, tem se
mostrado extraordinariamente elevada, a ponto de que se radique e
espraie, no país, o “crime organizado” –aquele que se caracteriza pela
apropriação de instituições públicas e seus mecanismos, em benefício de
interesses subalternos, privados e ilegais. A ineficiência é a
contrapartida natural da corrupção, como o é a brutalidade, sobretudo
letal, que alcançou patamares dantescos no Brasil. Nesse capítulo, o Rio
de Janeiro constitui o caso mais grave: mais de mil pessoas são mortas
todos os anos em ações policiais. O número de execuções corresponde a
cerca de 65% desses casos. Também é no Rio onde mais morrem policiais.
Cerca de 35, em média, por ano, em serviço, e o dobro, na folga.
Claro que a violência policial tem foco e
endereço, não se distribui aleatoriamente ou “democraticamente”. Seus
alvos são os jovens negros e pobres, do sexo masculino. Os mesmos que
estão sobre-representados nas estatísticas da vitimização por homicídio
doloso, em todo o país, ou nos censos penitenciários. Os mesmo que têm
sido apanhados na malha da criminalização promovida por nossa política
de drogas.
Paralelamente, estamos diante de uma criminalidade
violenta crescentemente audaciosa e cruel. São cerca de 45 mil
homicídios intencionais, no Brasil, todos os anos (27 por 100 mil
habitantes). Os números relativos a outros tipos de crimes relevantes
também são alarmantes. E há os crimes de colarinho branco, realimentados
pela impunidade –e pelo viés já assinalado de nossa política criminal e
de nosso sistema penal.
Como chegamos a esse quadro? Combinando a
capacidade ilimitada de conciliação de nossas elites políticas com as
estruturas que herdamos de nossa história autoritária – eis as marcas do
que outrora denominamos desenvolvimento autoritário do capitalismo.
Construímos, assim, esta democracia e esta Justiça, que representam
avanços históricos notáveis, mas convivem com o caroço amargo de nosso
patrimonialismo estamental hierárquico e discriminador.
Se os filhos da classe média freqüentassem
prisões, entidades socioeducativas, fossem abordados com tiros de fuzil
na nuca e pagassem o preço da hipocrisia e da irracionalidade de nossa
política de drogas, já teríamos passado a limpo esses absurdos
repulsivos e trágicos.
Roberto Romano – Não existe sociedade sem
violência. Basta recordar a Bíblia, a Ilíada, Macbeth. Na Idade Média,
as periferias urbanas tornaram-se perigosas devido à massa dos expulsos
pelos violentos novos donos das terras. Deve-se lembrar o número
terrível dos mortos aos milhões, na primeira e segunda guerras mundiais,
os destruídos no Vietnã, os que sucumbiram às torturas nos golpes
ditatoriais da África e Américas e tantos outros. Não esquecer os campos
de concentração como fruto do terror cujo nome é Razão de Estado. A
violência segue o homem do parto à morte. A religião, a cultura, o
Estado procuram administrá-la. Mas não raro o mesmo Estado canaliza as
forças infernais que latejam no sujeito humano e as usa em guerras,
invasões etc. É preciso detectar os vários tipos de violência, para não
absolver as mais graves com a exacerbação das menos amplas e profundas.
Sim, qualquer assassinato é tremendo, porque mostra a voragem do vazio
que suga todos os vivos.
Elias Canetti analisa, com frieza extrema, o
alívio que experimentamos com a sobrevivência quando, em posição ereta,
vemos um cadáver. Ele conecta os nossos sentimentos, naquela hora, com a
gênese do poder. Mas uma coisa é a morte de milhares, causadas por
bandidos que ainda não se apossaram do Estado. Outra, quando bandidos
assumem o poder, com o direito de matar milhões. Um elemento que
potencia o banditismo é a ideologia. Preocupa a retórica ensaiada por
algumas quadrilhas paulistas recentes, que se apropriaram do jargão
guerrilheiro. A síntese de ideologia e banditismo traz resultados piores
do que os atos do chamado “crime comum”.
A violência pode ser atenuada, jamais extinta.
Algumas formações sociais administram as lutas em seu interior. Mas
nelas a violência usa a máscara dos bons modos. Depois que os indivíduos
aderiram ao Estado, diz Hobbes, sendo-lhe vetado usar as garras ou
facas, empregam a língua. No De cive se recomenda que todos procurem ser
os últimos a sair das festas: a cada novo convidado que deixa a sala,
línguas estraçalham sua reputação. A violência torna-se menos visível
com a repressão estatal, mas não deixa de ser letífera. Sociedades que
enfraqueceram a violência física podem retroceder, retornar à
selvageria. . A educadíssima Alemanha, após se livrar parcialmente da
truculência usada pelos nobres, instaurou formas bestiais na matança de
pessoas por pessoas, de pessoas pelo governo.
Stephen Mesnnell, um estudioso da violência,
afirma que “os comportamentos civilizados empregam tempo para se
construir, mas dependem da manutenção de um alto grau de autocontrole, e
podem ser destruídos rapidamente”. O mesmo pesquisador alerta: pensar
que a lei e a ordem se deterioram em nossos dias e cresce o perigo
cotidiano, pode ser grave erro. Na Inglaterra, por exemplo, durante
séculos, as gerações expressaram os mesmos medos da violência, declínio
moral, destruição dos valores tradicionais.
No caso brasileiro, os dados sobre o aumento ou a
diminuição da violência devem ser vistos em sincronia com outros,
relativos ao crescimento da população urbana, aos fluxos migratórios, à
complexificação da economia, às variações de emprego e de serviços
essenciais, à concentração urbana, às mudanças culturais como na
religião etc. Em especial, deve ser considerado o movimento comercial de
país a país, o uso deste movimento para o contrabando de armas, de
estupefacientes etc. Sem tais elementos, e outros, perde-se o equilíbrio
no juízo ético. Daí, o fenômeno a que se chama genericamente de
“violência” assume a amplitude aterradora de insuportável desmesura.
Penso que este rol de questões subsumidas numa só palavra alerta contra a
rapidez irresponsável da propaganda, dos slogans, das soluções mágicas,
dos vieses ideológicos.
É preciso determinar a natureza dos crimes e as
condições em que eles se efetivam. Por semelhante motivo, são relevantes
pesquisas como as de Alba Zaluar, cujos dados sobre o comércio das
drogas podem servir para a educação, a repressão, a prevenção policial
ou judiciária. Zaluar indica com rigor lógico e empírico de quem se
fala, quando se fala, onde se fala, ao se enunciar coisas sobre o
emprego de jovens no comércio em pauta.
Com o aumento da população urbana, desprovida dos
mínimos vitais e mesmo ecológicos, aumenta o exército de reserva, farta
mão-de-obra juvenil para os traficantes. Estes, por sua vez, vendem
mercadorias cuja origem está nos setores que “servem” o mercado mundial.
Tanto o conhecimento do que se passa no país, quanto o controle das
fronteiras, são estratégicos para a ação policial e judicial, se o alvo é
coibir aquele mercado. Mas no governo brasileiro existem dogmas
orçamentários, impostos politicamente. E aqueles dogmas rezam que a
prioridade é o superávit primário, a satisfação dos especuladores
financeiros etc. Recursos são extraídos da polícia. Eles serviriam à
formação técnica de quadros, o aparelhamento científico etc. Com os
cortes, enfraquecem os controles internos e externos. E vai por aí.
JU – Em sua opinião, onde estão as raízes do problema atual?
Luiz Eduardo Soares – Em parte, me
antecipei, no final da resposta anterior. Aproveito, então, para
mencionar outro fator: a inépcia dos liberais democráticos e das
esquerdas para valorizar essas questões e enfrentá-las, com políticas
públicas alternativas – elas existem, já foram amplamente expostas, em
seminários, livros, entrevistas e planos governamentais, mas nunca
mereceram apoio político substantivo para sua implementação consistente e
continuada, enquanto política de Estado, não de governo, superior,
portanto, a disputas partidárias e slogans ideológicos. Trata-se de
tragédia nacional a exigir a mobilização e a união amplíssima, formando a
coalizão necessária para a aplicação de um plano profundo de reformas.
Quanto aos conservadores, continuam surfando,
demagogicamente, na indignação popular, contribuindo, entretanto, para a
reprodução do problema. Ainda não compreenderam que sua visão estreita,
unilateralmente repressiva, punitiva, não tem sido capaz de criar
soluções. Pelo contrário, polícias brutais e um sistema penal míope, de
cabeça inclinada, seletivamente impotente, gera benefícios a curto
prazo, mas coloca em risco todo um processo civilizador, que também lhes
deveria interessar, afinal de contas. Com o naufrágio na barbárie,
todos perdemos. Insisto, todos. Essa história de que a barbárie
interessa a alguns me parece inteiramente indefensável.
Aliás, essa esdrúxula tese paranóica faz parte do
repertório de equívocos da esquerda mais estreita e sectária, segundo a
qual o neoliberalismo tudo explica. A fórmula prêt-à-porter do momento,
de novo, acaba afastando setores importantes do movimento social e do
espectro político de uma participação mais positiva na construção de
alternativas. Refiro-me àquela simplória equação: Estado-mínimo,
desemprego em massa, potencial disruptivo inflacionado, escalada do
encarceramento, contenção política via política penal. Se a sociedade
fosse essa engrenagem funcional, armada pelo jogo banal de causa-efeito,
e assim tão translúcida em sua racionalidade linear, tudo seria muito
mais fácil.
Roberto Romano – Para o cristianismo a raiz
reside no pecado original. Mas existem outras origens no mundo
histórico. Para o Brasil, Alba Zaluar indica a gênese destes males na
política repressiva dos positivistas jacobinos, adeptos da virtude, como
uma das fontes do excessivo ajuntamento de indivíduos na prisão, fossem
as acusações contra eles de crime ou delito, ou apenas porque não
tinham emprego. A política repressiva assumiu preponderância, no mesmo
passo em que as empresas não davam conta de absorver a gente jovem.
Tentativas de mudar isto foram feitas também por positivistas, com a
prática de educação técnica para as massas.
No governo Vargas, bastante inspirado no
positivismo, com ajuda de várias correntes não-positivistas, foi
instaurado o sistema “S”. Mas este sistema, hoje, não dá conta da
população que dele necessita. A ditadura militar tem sua parcela de
responsabilidade. Até 1965, o ensino de segundo grau brasileiro estava
entre os melhores da América do Sul. Com a política deliberada de
implodir as escolas públicas em favor das particulares, arruinou-se a
máquina do ensino oficial. Aumentando os candidatos à mesma rede
pública, e com meios arrasados, o desastre é o que vemos.
Em Mimesis, Erich Auerbach critica, na indicação
das causas, a técnica propagandística “que consiste em iluminar
excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto,
deixando na escuridão todo o restante que puder explicar e ordenar
aquela parte, e que talvez serviria de contrapeso daquilo que é
salientado; de tal forma diz-se aparentemente a verdade, pois que o dito
é indiscutível, mas tudo não deixa de ser falsificado, pois que, da
verdade faz parte toda a verdade, assim como a correta ligação das suas
partes. O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em
tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do
nosso passado mais imediato. Contudo, o truque é, na maior parte dos
casos, fácil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao público, em
tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida
ou um grupo humano cumpriu o seu tempo ou perdeu prestígio e tolerância,
toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar
de se ter uma semi-consciência do seu caráter de injustiça, com alegria
sádica”.
Auerbach indica, nessas frases, a perseguição
nazista aos judeus, ciganos, homossexuais, apontados como perigo que
ameaçaria os honestos e “superiores” arianos. A propaganda isola
aspectos efetivos e não os conecta ao todo a que pertencem.
'A centralização política corrompe
a teoria e a prática federativas'
a teoria e a prática federativas'
JU -
Fala-se que a violência gerou estados dentro do Estado, com leis
próprias e uma dissociação crescente da sociedade civil. Até que ponto
essa situação afeta o conceito de nação e de identidade nacional?
Luiz Eduardo Soares – Estou convencido de
que o medo, de um lado (note-se que segurança é estabilização de
expectativas positivas), e a desigualdade no acesso à Justiça (em seu
sentido amplo, que envolve a abordagem policial etc, conforme já
assinalado), de outro, interpelam e abalam experiências de coesão e
identificação, ainda que dinâmicas gregárias continuem em curso e até se
fortaleçam, na exata medida que a sociabilidade regida pela
institucionalidade política entre em pré-colapso. Portanto, nada de
alarmismos. Basta observarmos o vigor – e o fervor – religioso, na
sociedade brasileira.
Roberto Romano – Se o Estado tem pelo menos
três monopólios públicos, é para impor a soberania a todos os cidadãos.
Como os fazendeiros desafiam a soberania – alguém tem notícia dos que
mandaram matar os fiscais do trabalho em Unaí? –, o mesmo fazem
poderosos em termos econômicos, que sequer acertam suas obrigações com o
fisco etc. Existem verdadeiros exércitos de segurança privada, pagos
pela classe média e rica, em detrimento da polícia oficial. E muitos
policiais fazem o “bico” naqueles contingentes, porque os salários pagos
na sua corporação atingem o nível da miséria. Tudo ocorre com as vistas
grossas, cúmplices, dos políticos. Se a soberania é “relativizada”
pelos que mandam no dinheiro e no poder, não surpreende que ela também o
seja pelos pobres reunidos em quadrilhas – que, não raro, servem a
interesses de muita gente fina que desfila nas colunas sociais. Se
políticos responsáveis por cidades e Estados brincam com bicheiros e
narcotraficantes no Carnaval, em palanques pagos pelos contraventores,
como falar em respeito à soberania do governo?
Visto que o Estado, segundo Max Weber, é “uma
organização que reivindica com sucesso um direito de fazer a lei num
território, por força do controle do monopólio do uso da violência
física legítima”, ele deve responder pelas situações em que a violência
ilegítima se apresenta. Além do monopólio referido, o Estado possui pelo
menos dois outros: o da norma jurídica e o que permite extrair
impostos. Se os dirigentes, nas três faces estatais, não debelam o
crime, não punem com eficácia, não usam bem os impostos, eles devem
responder por isso.
Mas, no Brasil, os timoneiros do Estado raramente
são responsabilizados, apesar do que diz a Constituição. O
corporativismo do Legislativo absolve os legisladores improbos e
indecorosos, falta eficácia no Judiciário e surgem os sinais
precursores de venalidade praticada por alguns juízes, e o Executivo
optou pelas finanças em detrimento das políticas públicas. Em troca, a
propaganda exige medidas draconianas contra “os bandidos”, “os
monstros”. Quem adere a tais slogans esquece sua própria natureza
humana, misto de ferocidade, desejo e força.
A propaganda vende a mentira de que existe um lado
só, onde se reúnem cidadãos honestos e, de outro, apenas feras. No setor
“honesto”, no entanto, muitos crimes são praticados. Notar este fato,
prudencialmente, evitaria o privilégio, a impunidade, apanágio de
poderosos e ricos, sobre os quais o holofote da mídia permanece tempo
mínimo, se comparado ao gasto na exposição de transgressores pobres. Um
jornalista importante mata sua namorada em plena luz do dia. A imprensa
traz a noticia e depois cai o silêncio. O criminoso confesso é condenado
e não é preso. Não se nota o escarcéu produzido quando alguém,
desimportante para as colunas sociais e políticas, comete um
assassinato.
JU – Há também quem coloque a violência
brasileira no patamar de uma guerra civil, com a agravante de que os
motivos não são ideológicos ou étnicos e os alvos são arbitrários. O que
o sr. pensa disso?
Luiz Eduardo Soares – Os dados relativos à
letalidade violenta intencional permitiriam essa analogia, mas ela é
muito perigosa e eu prefiro evitá-la. Ela acabaria por justificar
políticas de segurança pública irresponsáveis, criminosas, que definem
favelas como territórios inimigos e seus habitantes como inimigos a
serem enfrentados em incursões bélicas – ou como vítimas indiretas
“naturais” de confrontos. Além do mais, não concebo uma guerra civil sem
bandeiras e projetos de poder.
Roberto Romano – Existe uma guerra, antiga e
trazida pelos colonizadores que exterminaram índios; antiga e violenta
como a escravização dos negros; velha como o uso dos jagunços para
intimidar e matar quem se levantasse contra os coronéis e fazendeiros
etc. Como anda o processo da freira Dorothy Stang, uma entre milhares de
pessoas assassinadas por encomenda de fazendeiros? Civil? Não sei. Mas
insisto: os dados sobre a mortandade que resulta de assaltos,
seqüestros, comércio de drogas, devem ser analisados em sincronia com os
que indicam outras violências. Mata-se mais no trânsito brasileiro do
que em muitas guerras. Todos conhecemos gente que fala de boca cheia
contra os bandidos, mas desobedece o sinal vermelho, atropela e mata com
frieza. E nunca vai para a cadeia. Falar em violência sem tocar nestes
pontos é exercício inane ou técnica de pescar em águas turvas. O Brasil é
a terra onde mais se repete o fato vivido pelo cínico Diógenes, citado
pelo Padre Vieira em Sermão do Bom Ladrão: “Não são só ladrões (…) os
que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a
roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são
aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo
das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha,
já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um
homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu
risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são
enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais
aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e
ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar:
— Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia,
que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não
padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a
enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser
levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E
quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De
um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar
(…): Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e
em os fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar
os ladrões do mundo, para roubar ele só”.
Quando vemos no Parlamento demagogos que deblateram
contra “o crime” e redigem leis severas contra o roubo, é bom recordar
Diógenes e Vieira. O foro privilegiado é prova cabal de uso das
prerrogativas políticas como passaporte para delinqüir. Deste modo, os
projetos oriundos da pura demagogia são negados pela prática costumeira
da impunidade, no próprio âmbito do Congresso Nacional.
JU – A última campanha eleitoral para
presidente da República tratou muito superficialmente o tema da
segurança pública, para não dizer que o evitou. Como explicar essa
indiferença?
Luiz Eduardo Soares – É realmente incrível,
mas já não nos deve surpreender. A esquerda nunca reconheceu a
legitimidade do tema e sempre pensou a violência criminal como
epifenômeno das macro-estruturas sócio-econômicas; nunca reconheceu a
necessidade de políticas de segurança específicas; apenas valoriza
políticas estruturais, voltadas para as verdadeiras e permanentes causas
dos problemas, ignorando que há políticas preventivas locais e focadas,
capazes de produzir efeitos imediatos. Além do mais, a esquerda não
gosta da polícia, porque a identifica com a repressão de classe e não a
percebe como instituição fundamental para a democracia, para a qual é
preciso propor uma política, no sentido nobre da palavra. A direita, com
sua soberba, sempre acreditou conhecer as soluções – que estão sendo
aplicadas, aliás, desde sempre, com raras exceções, com os resultados
que se vêem. Quando falha, a direita propõe mais do mesmo. É notável!
Roberto Romano – A última campanha
presidencial tratou todos os assuntos segundo a propaganda. Nenhuma
política pública foi debatida a sério pelos candidatos. A segurança não
foi exceção.
JU – Além da ausência de propostas concretas
– normalmente restritas aos períodos eleitorais, com suas pirotecnias
imagéticas e acessos verborrágicos –, as esferas municipal, estadual e
federal jogam uma sobre as outras o ônus da ineficiência. Que análise o
senhor faz dessa prática?
Luiz Eduardo Soares – Todos têm e não têm
razão. O problema está em nossa Constituição, quando nos impede mudanças
profundas no sistema de segurança e nas polícias. Precisaríamos
implodir o artigo 144 para criarmos o Susp (Sistema Único de Segurança
Pública); liberarmos os Estados para criarem novas polícias,
inteiramente diferentes, organizadas de outro modo, e fecharem as atuais
polícias, se lhes parecer adequado, respeitando os direitos
trabalhistas dos policiais e os reaproveitando, claro.
Bastaria uma legislação infraconstitucional para
regular o Susp – impondo exigências mínimas às polícias, as atuais ou
aquelas por serem criadas, de qualidade, eficiência, legalismo e
valorização profissional, com transparência e participação da sociedade,
metas e avaliações, sob condições que propiciem uma gestão racional. E
seria suficiente retirar do artigo 144 a definição uniforme do modelo
policial. Com isso, estaria transferida para os Estados a autoridade
para mudar – se desejarem fazê-lo. Além disso, teríamos de adotar uma
Lei de Responsabilidade Social, ou socioeducativa e penal, para obrigar
os governadores a cumprirem a LEP e o ECA.
A União teria de assumir responsabilidades na
organização do Susp e o município se tornaria protagonista importante no
sistema, atuando sobretudo na prevenção.
Roberto Romano – É o fruto da centralização
política. No Brasil, isto corrompe a teoria e a prática federativas.
Como tudo é acaparado pelo poder central e, dentro dele, pelo Executivo,
os Estados e municípios não têm autonomia para empreender políticas
públicas próprias à sua realidade. Na segurança, a federação
norte-americana admite margens de autonomia insuspeitadas entre nós. O
prefeito tem a polícia sob seu comando, com normas próprias, sem
depender para tudo de Washington. Aqui, o alfa e o ômega residem no
Palácio do Planalto. Em situações de crise, como a do PCC em São Paulo,
mostra-se a fraqueza jurídica e policial da centralização excessiva.
Os demagogos, na falta de autonomia dos poderes
municipais e estaduais, em suas falas nos legislativos, separam
indivíduos e grupos e os expõem à execração, sem observar leis, direitos
etc. Eles falam em “monstros” da Febem, mas calam sobre as condições em
que o Estado submete os menores, nada enunciam sobre pesquisas que
mostram os abusos contra mulheres, meninos a meninas no “santuário” do
lar, silenciam sobre a falência dos sistemas educacionais, calam sobre
as moradias onde se amontoam seres humanos como se fossem lixo, ignoram
as condições de transporte coletivos e, sobretudo, escondem a ação
truculenta de grupos corruptos e selvagens das polícias.
De vez em quando, como no caso da Favela Naval, por
obra de amadores, o espetáculo da violência cometida oficialmente vem
aos olhos do público. Demagogos da mídia usam aquelas imagens por um dia
para melhorar o Ibope. Depois as jogam no arquivo. Todos clamam por
leis severas contra os criminosos. Poucos recordam que a própria lei,
como diz Diógenes o filósofo, é uma teia de aranha que prende os fracos,
mas não segura os fortes e poderosos.
JU – O Mapa da Violência dos Municípios
Brasileiros, feito pela Organização dos Estados Ibero-americanos para a
Educação, Ciência e a Cultura (OEI), põe cidades do chamado Brasil
profundo no topo da barbárie, ao mesmo tempo em que joga ao pé do
ranking regiões metropolitanas cujas populações vivem sobressaltadas.
Essa leitura foi mal-interpretada ou está mesmo havendo um deslocamento
dos focos de criminalidade? Dá para diferençar grilagem de terras,
exploração ilegal de madeira, garimpo e contrabando – modalidades mais
presentes no campo –, de seqüestro-relâmpago, furto, assaltos e
latrocínios, que são ocorrências típicas da área urbana?
Luiz Eduardo Soares – Observe que esses
dados não apontam queda da criminalidade nas grandes cidades. Mas, sim,
apontam para a triste novidade, que é a nacionalização do problema, em
sua diversidade. As razões são as mais diversas, mas o que se constata
nessa pesquisa não surpreende. Eu tenho chamado a atenção há muitos anos
– e não só eu, muitos colegas que pesquisam essas questões – para o
fenômeno da nacionalização. O que está explodindo em cada região? Varia.
Só estudos específicos nos dirão. Hipóteses há várias. De todo modo,
tomemos cuidado. Numa cidade com 12 mil habitantes, um homicídio
corresponde a mil homicídios na cidade de São Paulo. Se houver mil
homicídios, em São Paulo, em um ano, e 1001, no ano seguinte, a variação
não será sequer identificada. Mas se esse único homicídio, na cidade de
12 mil habitantes, for sucedido por dois homicídios, no ano seguinte, a
estatística dirá que houve um crescimento de 100%. O que será verdade,
mas não significará que a cidade vive uma situação mais grave do que São
Paulo. Os números absolutos não devem ser esquecidos nas avaliações.
Roberto Romano – Minha resposta é negativa. É
preciso tipificar cada ponto, caso oposto cai-se na inatividade e no
desespero social, como está ocorrendo no Brasil.
Quem é Roberto Romano
Nasceu no Paraná. Estudou em várias cidades do
país. Participou do movimento estudantil de 1962 até 1968. Foi
integrante da Ordem dos Padres Pregadores (Dominicanos). Foi preso
político no governo militar. Fez a graduação e a pós em Filosofia (USP) e
o doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris,
no CETSAS (Centre d´Études Transdisciplinaires) com a especialização em
Filosofia Política. A tese foi publicada com o título de Brasil, Igreja
contra Estado (Kayrós, 1979). É autor também de Conservadorismo
Romântico, (Editora Unesp), Silêncio e Ruído (Editora da Unicamp) e O
Caldeirão de Medéia (Editora Perspectiva), entre outras obras. Trabalhou
na Unesp (Marília e Araraquara), na Faculdade de Educação da Unicamp
(FE) e atualmente está ligado ao Departamento de Filosofia do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). Prestou concurso
público para os cargos de livre-docente, adjunto e titular da Unicamp.
Integrou a Congregação da FE e do IFCH. Participou da Cadi e do Consu,
tendo também presidido a Comissão de Perícias da Unicamp. Publicou
vários artigos especializados e colabora com diversos órgãos da mídia.
'É preciso se libertar do jogo entre reatividade e voluntarismo'
JU –
A recente polêmica em torno da violência social brasileira, na qual o
filósofo Renato Janine Ribeiro foi acusado de abandonar o cânone do
politicamente correto, é um sintoma de que os intelectuais começam a
guindar o assunto ao primeiro plano? Como o sr. analisa esse debate?
Luiz Eduardo Soares – Acho que o professor
Renato Janine foi profundamente infeliz, mas não creio que esteja
havendo um movimento em uma nova direção negativa, contrária aos
direitos humanos. O que me parece é que o tema está chegando à agenda
pública, finalmente, e aqueles que nunca se devotaram a estudá-lo, mesmo
sendo intelectuais qualificados, tendem a pensá-lo como o faz o senso
comum, o que é compreensível, ainda que, eu espero, talvez seja apenas o
primeiro momento de um despertar para a gravidade das questões.
Interessados pelo assunto, talvez os intelectuais se disponham a ler o
que já se acumulou na matéria e logo descobrirão que caminhos racionais
existem, desde que o problema seja armado com alguma sofisticação.
Roberto Romano – Peço desculpa, mas prefiro não responder a esta pergunta.
JU – Reduzir a maioridade penal é uma solução?
Luiz Eduardo Soares – Começo perguntando ao
leitor, à leitora: você está satisfeito com o funcionamento de nosso
sistema penitenciário, esse que tem atendido aos maiores de 18 anos e
que muitos querem ver atendendo também aos menores de 18? Você acha que a
aplicação das penas privativas de liberdade aos maiores de 18 os está
impedindo de praticar crimes? Nossas prisões estão inibindo, prevenindo
ou contendo a criminalidade? Estariam reeducando ou ressocializando os
apenados? Como sabemos, as penas distribuídas pela Justiça não têm o
propósito de vingar o mal feito, impondo ao malfeitor sofrimento
equivalente àquele que ele infligiu à vítima. Por isso, não pergunto se
alguém se sente saciado ao visitar nossas prisões e constatar a que
extremos a vendetta foi conduzida.
Mas as perguntas não param aí. Gostaria de saber se
alguém considera que o Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo
aplicado, consistentemente? As normas que zelam pela separação entre as
idades e os tipos de transgressão vêm sendo cumpridas? O processo
socioeducativo vem sendo respeitado, em todo o seu rigor, em todos os
níveis que envolve? As instituições responsáveis pela aplicação do ECA
têm se mostrado equipadas e qualificadas? O acompanhamento posterior à
internação, assim como a avaliação das trajetórias individuais têm
respondido às exigências estipuladas pelo Estatuto? E as polícias têm se
revelado preparadas para cumprir sua parte na aplicação do Estatuto?
Acredito que os leitores tenham respondido
negativamente aos dois blocos de perguntas, porque, hoje, está óbvio que
o nosso sistema penitenciário está falido. Na verdade, tornou-se uma
gigantesca, caríssima, irracional máquina de moer espíritos, escola do
crime e fonte de ressentimentos. As penas privativas de liberdade não
têm servido aos seus propósitos originais. Pelo contrário, além de se
revelarem inúteis como fator de inibição da criminalidade, têm
concorrido para seu crescimento. Ademais, o Estatuto da Criança e do
Adolescente nunca foi aplicado para valer, em todas as suas dimensões e
com o rigor de todas as suas exigências.
Ora, se todos respondem negativamente aos dois
blocos de perguntas que formulei e, portanto, se concordam com as duas
afirmações acima, estamos todos de acordo com o seguinte: 1) O que está
falido não serve de modelo nem deve ser proposto como solução e muito
menos faria sentido defender a ampliação de sua abrangência. Ou seja, se
nosso sistema penitenciário é essa tragédia, é o desastre que todos
conhecemos, em nome de quê poderia fazer qualquer sentido propor que,
além de (des)servir ao público maior de 18 anos, ele estendesse suas
funções, ampliasse suas responsabilidades e passasse a se ocupar também
das crianças e dos adolescentes? 2) Antes de concluir pelo fracasso do
ECA ou mesmo de criticar sua ineficiência (reeducativa e inibidora da
prática de transgressões), antes de propor sua alteração ou
substituição, não seria conveniente testá-lo?
Aliás, é curioso como, no Brasil, tendemos a achar
sempre que nosso problema é a falta de leis e que a existência de leis
adequadas seria suficiente para mudar a realidade. E é surpreendente
como, em geral, estamos mais dispostos a propor mudanças legais do que a
tentar aperfeiçoar a aplicação das leis que temos. Os problemas, em
geral, não estão nas leis, mas na deficiência de sua aplicação. De
resto, seria irracional trocar uma legislação sem lhe dar a chance de
ser testada a sério.
Portanto, não creio que faça sentido torpedear o
ECA antes de aplicá-lo com o rigor que merece e requer. Tampouco me
parece razoável sugerir a extensão de um de nossos maiores fracassos
nacionais, o sistema penitenciário, através do expediente legal da
redução da idade de imputabilidade. Já não chega o tamanho de seu
fracasso? Em lugar de sub-repticiamente postular sua extensão,
deveríamos propor sua reforma radical e urgente.
Finalmente, um esclarecimento: a verdadeira
dicotomia, que opõe os defensores do ECA e seus críticos, não pode ser
traduzida pela diferença entre transigência e severidade. O ECA não
retrata, decreta, institui ou legitima a transigência com a transgressão
ou o crime. A oposição não é generosidade solidária e ilimitadamente
compreensiva, portanto leniente e leviana, versus severidade e rigor na
aplicação dos limites legais. Se a oposição continuar a ser apresentada
à opinião pública nesses termos, não haverá nenhuma chance para os
defensores do Estatuto.
O ECA é severo, se for realmente aplicado com o
respeito devido a todas as exigências que contempla. Afinal, o Estatuto
prevê a internação e determina medidas unilaterais, imperativas. Nenhum
menino pede a aplicação das medidas socioeducativas. Elas não são
voluntárias. São fortes e rigorosas. O fato de diferenciarem-se do
encarceramento não as torna menos severas. Torna-as mais eficientes, se a
meta a alcançar é a ressocialização, a redução da reincidência e a
sinalização inibidora. As medidas socioeducativas do ECA diferenciam-se
da mera privação penal da liberdade justamente porque o encarceramento
não funciona, é contraproducente em todos os níveis. O que está em jogo,
portanto, é o sentido da severidade. O que está em disputa é a
definição prática, moral, legal e política dessa severidade. O
verdadeiro dilema é saber qual deve ser a nossa severidade. Qual é a
severidade mais apta a cumprir as funções sociais às quais se aplica com
o rigor que lhe define o significado?
Qual severidade melhor serviria à sociedade
brasileira? Aquela que é adjetiva, isto é, que faz profissão de fé na
retórica da intolerância, da dureza policial, do vigor punitivo, mas
que, na prática, concorre para a reprodução da irracionalidade
institucionalizada, alimenta um sistema penitenciário apodrecido, um
aparato de segurança degradado, a violência policial e o desenvolvimento
da criminalidade nas instituições que deveriam cuidar da ordem pública?
Essa seria a severidade do fracasso e da impotência.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é severo e
poderá realizar seu potencial construtivo se for, algum dia,
efetivamente aplicado. A severidade do Estatuto é aquela que se
compatibiliza ao mesmo tempo com o respeito aos direitos humanos e com
um sentido construtivo de responsabilidade, porque se volta para o
futuro, repelindo a vingança.
Roberto Romano – As medidas simplistas,
costumeiras no Brasil, apenas indicam uma pobreza de políticas públicas.
Sempre que especialistas apresentam planos para atenuar a violência,
indicam toda uma constelação, um sistema de providências a serem
tomadas. Infelizmente, as questões de âmbito público são decididas no
Brasil não com base em saberes, mas com fundamento na propaganda, no
proselitismo demagógico de partidos, na pressão de setores sociais
arcaizantes, beneficiários da mais injusta distribuição de renda do
continente.
JU – Que cenário o sr. antevê para o futuro próximo?
Luiz Eduardo Soares – Já vivi muitos
momentos em que a profundidade da crise me fez crer que chegáramos a um
ponto em que se tornaria racional a união de todos em torno de um
projeto viável de mudança, com políticas preventivas inter-setoriais e
reformas das polícias, das entidades socioeducativas e do sistema
penitenciário, e em torno também de um efetivo esforço de redução das
desigualdades no acesso à Justiça. Nada aconteceu, depois do espasmo das
primeiras reações. Aprendi que não é a racionalidade que move a
política.
Portanto, minha esperança hoje reside na
conscientização das universidades, dos agentes de cultura – sobretudo
jovem –, dos agentes sérios da mídia mais responsável, das lideranças
sociais, daqueles, enfim, que poderiam contribuir para a sensibilização
da opinião pública. Só assim, talvez, de fora para dentro – quem sabe?
–, as lideranças políticas e os gestores comecem a se movimentar em uma
direção mais consistente, para além da emergência e da crise,
construindo um futuro que possa vir a ser menos marcado pelas crises
–para que nos libertemos, finalmente, do eterno jogo entre reatividade e
voluntarismo no varejo, refratário à construção sistêmica e
sustentável. Uma fonte preciosa de esperança seria o desenvolvimento de
uma consciência não-corporativa dos policiais. Mas isso parece estar
ainda muito longe.
Roberto Romano – Todos os cenários são
possíveis. Do inferno aberto à violência mascarada. O necessário é
conseguir impor a soberania popular (consagrada em nossa Constituição),
com a exigência da prestação de contas dirigida aos operadores do Estado
nas suas três faces. Sem fé pública, os cidadãos honestos continuarão
desconfiando do mundo político e jurídico e os desonestos terão maior
latitude para delinqüir, não raro em companhia de legisladores. Sem
acabar com este paradoxo, tudo o que se fizer é de fato paliativo.
“Instale-se a moralidade, ou locupletemo-nos todos!”, seja de quem for a
frase, ela é a única correta em termos éticos.
Se os políticos permanecem impunes, é tarefa da
hipocrisia exigir a punição dos bandidos. Estes devem ser presos e
condenados com rigor. E também aqueles. Se o procurador-geral da
República teve a coragem e a lucidez de se referir a um número
apreciável de legisladores como “quadrilha”, o final da frase deveria
ser o seguinte: “que sejam condenados à maior pena do Código”. As ações
das engravatadas excelências refletem-se nas metralhadoras dos que
dominam as ruas do Rio, de São Paulo etc. E se forem mantidos os
privilégios dos parlamentares, ministros e quejandos, ninguém mais
sentirá necessidade de ser honesto. E breve será oficialmente instituída
a república bandalha.
Quem é Luiz Eduardo Soares
Luiz Eduardo Soares é mestre em antropologia
social, doutor em ciência política, com pós-doutorado em filosofia
política. É secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da
Violência de Nova Iguaçu, RJ; professor da Universidade Cândido Mendes e
da Uerj. Foi professor do Iuperj e da Unicamp, pesquisador do Iser,
pesquisador visitante do Vera Institute of Justice, de New York, e
professor visitante da Columbia University, University of Virginia e
University of Pittsburgh. Foi secretário nacional de Segurança Pública
(entre janeiro e outubro, de 2003); subsecretário de Segurança e depois
coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de
Janeiro (entre janeiro de 1999 e março de 2000); e consultor da
prefeitura de Porto Alegre, responsável pelo plano municipal de
segurança desta cidade (em 2001). Seus últimos livros são: Meu Casaco de
General: 500 dias no front da segurança pública do estado do Rio de
Janeiro (Cia das Letras, 2000); Cabeça de Porco, com MV Bill e Celso
Athayde (Objetiva, 2005); Elite da Tropa, com André Batista e Rodrigo
Pimentel (Objetiva, 2006); Legalidade Libertária (Lumen-Juris, 2006); e
Segurança tem saída (editora Sextante, 2006).