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Domingo, 02 de março de 2014
Bíblia, eros e família. O discurso do cardeal Walter Kasper no consistório
Homem e mulher são, conjuntamente e na célula familiar, futuro,
virtude social e busca da felicidade.
Se pensarmos na importância das
famílias para o futuro da Igreja, o número em rápido crescimento das famílias desagregadas
parece ser uma tragédia ainda maior. Há muito sofrimento. Não basta
considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja
como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e
devemos – como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) – considerar a
situação também a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.
Publicamos aqui a palestra proferida pelo cardeal Walter Kasper, ex-presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, a pedido do Papa Francisco, por ocasião do consistório extraordinário recém-concluído, definida como ouverture em vista do Sínodo sobre a família de outubro.
O documento foi publicado pelo jornal Il Foglio, 01-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Neste ano internacional da família, o Papa Francisco
convidou a Igreja a celebrar um processo sinodal sobre os "Desafios
pastorais sobre a família no contexto da evangelização". Na exortação
apostólica Evangelii gaudium,
ele escreve: "A família atravessa uma crise cultural profunda, como
todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a
fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se
trata da célula básica da sociedade" (EG 66).
Muitas famílias hoje devem se confrontar com grandes dificuldades.
Muitos milhões de pessoas se encontram em situação de migração, fuga e
afastamento, ou em condições de miséria indignas do homem, nas quais não
é possível uma vida familiar ordenada. O mundo atual está vivendo uma
crise antropológica. O individualismo e o consumismo colocam em
discussão a cultura tradicional da família; as condições econômicas e de
trabalho tornam muitas vezes difícil a convivência e a coesão no seio
da família. Portanto, o número daqueles que têm medo de fundar uma
família ou que fracassam na realização do seu projeto de vida aumentou
de modo dramático, como também o das crianças que não têm a sorte de
crescer em uma família ordenada.
A Igreja, que compartilha as alegrias e as esperanças, as tristezas e
as angústias dos homens (GS 1), é desafiada por essa situação. Por
ocasião do último ano da família, o Papa João Paulo II retocou as palavras da encíclica Redemptor hominis (1979):
"O homem é a via da Igreja", afirmando que "a família é a via da
Igreja" (2 de fevereiro de 1994). Porque, normalmente, a pessoa nasce em
uma família e geralmente cresce no ventre de uma família. Em todas as
culturas da história da humanidade, a família é o percurso normal do
homem. Hoje também muitos jovens buscam a felicidade em uma família
estável.
Porém, devemos ser honestos e admitir que, entre a doutrina da Igreja
sobre o matrimônio e sobre a família e as convicções vividas por muitos
cristãos criou-se um abismo. O ensinamento da Igreja se abre hoje a
muitos cristãos como distante da realidade e da vida. Porém, também
podemos dizer e podemos dizê-lo com alegria: também há famílias que
fazem o seu melhor para viver a fé da Igreja e que dão testemunho da
beleza e da alegria da fé vivida no seio da família.
Muitas vezes, são uma minoria, mas são uma minoria significativa. A
situação da Igreja de hoje não é uma situação inédita. Ao contrário, a
Igreja dos primeiros séculos também estava confrontada com conceitos e
modelos de matrimônio e de família muito diferentes do pregado por
Jesus, que era novíssimo tanto para os judeus quanto para os gregos e os
romanos. Portanto, a nossa posição hoje não pode ser uma adaptação
liberal ao status quo, mas sim uma posição radical que vai às raízes,
isto é, ao Evangelho, e para além de um olhar à frente. Assim, será
tarefa do Sínodo falar novamente da beleza e da alegria do Evangelho da
família, que é sempre o mesmo e, no entanto, sempre novo (EG 11).
A presente intervenção não pode abordar todas as questões atuais, nem pretende antecipar os resultados do syn-odos, isto é, do caminho (odos) comum (syn) da Igreja inteira, o caminho da atenta escuta recíproca, do intercâmbio e da oração. Ao invés, ele quer ser uma espécie de ouverture que leva ao tema, na esperança de que, no fim, nos seja doada uma sym-phonia, ou seja, um conjunto harmônico de todas as vozes na Igreja, mesmo aquelas que, por enquanto, são em parte dissonantes.
Não se trata, agora, de reiterar a doutrina da Igreja.
Interrogamo-nos sobre o Evangelho da família e, de tal modo, retornamos à
fonte da qual brotou a doutrina. Como já afirmava o Concílio de Trento,
o Evangelho acreditado e vivido na Igreja é a fonte de toda verdade de
salvação e disciplina do costume (DH 1501; cfr. EG 36). Isso significa
que a doutrina da Igreja não é uma laguna estagnada, mas sim uma
torrente que brota da fonte do Evangelho, ao qual afluiu a experiência
de fé do povo de Deus de todos os séculos. É uma tradição viva que,
hoje, como muitas outras vezes na história, chegou a um ponto crítico e
que, em vista dos "sinais dos tempos" (OS 4), exige ser continuada e
aprofundada.
O que é esse Evangelho? Não é um código jurídico. É luz e força da
vida que é Jesus Cristo. Ele doa o que se pede. Só à sua luz e na sua
força é possível compreender e observar os mandamentos. Para Tomás de Aquino, a lei da nova Aliança não é uma lex scripta, mas sim a gratia Spiritus Sancti, quae datur per fidem Christi.
Sem o Espírito que opera nos corações, a carta do Evangelho é uma lei
que mata (2Cor 3-6). Portanto, o Evangelho da família não quer ser um
peso, mas sim, como dom da fé, uma alegre novidade, luz e força da vida
na família.
Chegamos assim ao ponto central. Os sacramentos, também o do matrimônio, são sacramentos da fé. Signa protestantia fidem, diz Tomás de Aquino. O Concílio Vaticano II
reitera essa afirmação. Diz sobre os sacramentos: "Não só supõem a fé,
mas também a alimentam, fortificam e exprimem" (SC 59). O sacramento do
matrimônio também pode se tornar eficaz e ser vivido só na fé. Portanto,
a pergunta essencial é: como é a fé dos futuros esposos e dos cônjuges?
Nos países de antiga cultura cristã, observamos hoje o colapso daquelas
que, por séculos, foram obviedades da fé cristã e da compreensão
natural do matrimônio e da família. Muitas pessoas são batizadas, mas
não evangelizadas. Dito em termos paradoxais, são catecúmenos batizados,
senão até pagãos batizados.
Nessa situação, não podemos partir de uma lista de ensinamentos e de
mandamentos, fixarmo-nos nas chamadas "questões candentes". Não queremos
e não podemos evitar essas perguntas, mas devemos partir de modo
radical, ou seja, da raiz da fé dos primeiros elementos da fé (Hb 5,12) e
percorrer, passo a passo, um caminho de fé (FC 9; EG 3.439). Deus é um
Deus do caminho; na história da salvação ele fez um caminho conosco; a
Igreja, na sua história, também fez um caminho. Hoje, ela deve
percorrê-lo de novo junto com as pessoas do presente. Não quer impor a
fé a ninguém. Só pode apresentá-la e propô-la como via para a
felicidade. O Evangelho só pode convencer através de si mesmo e da sua
profunda beleza.
1. A família na ordem da criação
O Evangelho da família remonta aos primórdios da humanidade. Foi-lhe
dado pelo Criador no seu caminho. Portanto, a instituição do matrimônio e
família é apreciada em todas as culturas da humanidade. Ela é entendida
como comunidade de vida entre homem e mulher, juntamente com os seus
filhos. Essa tradição da humanidade tem características diferentes nas
diversas culturas. Na origem, a família estava inserida na grande
família ou no clã. A instituição da família é, embora com todas as
diferenças particulares, a ordem original da cultura da humanidade. Não
pode ter um bom sucesso estabelecer hoje uma nova definição da família,
que contradiga ou mude a tradição cultural de toda a história da
humanidade.
As antigas culturas da humanidade consideravam seus próprios costumes
e leis da ordem familiar como ordem divina. Do seu respeito, dependiam a
existência, o bem e o futuro do povo. No contexto do período axial, os
gregos falavam de maneira não mais mitológica, mas sim, em certo
sentido, iluminada, de uma ordem fundada na natureza do homem. São Paulo
assumiu esse modo de pensar e falou de uma lei moral natural, inscrita
por Deus no coração de todo homem (Rm 2, 14 s.).
Todas as culturas conhecem, de um modo ou de outro, a regra áurea que
impõe que se respeite o outro como a si mesmo. No discurso da montanha,
Jesus reiterou essa regra áurea (Mt 7, 12; Lc 6, 31). Nela, está
plantando como um gérmen, o mandamento do amor pelo próximo, de amar o
próximo como a si mesmo (Mt 22, 39). A regra áurea é considerada uma
síntese do direito natural e do que ensinam a lei e os profetas (Mt
7,12; 22, 40; Lc 6, 31).
O direito natural, que encontra expressão na regra áurea, torna
possível o diálogo com todas as pessoas de boa vontade. Oferece-nos um
critério para avaliar a poligamia, os casamentos forçados, a violência
do casamento em família, o machismo, a discriminação das mulheres, a
prostituição, as condições econômicas modernas hostis à família, as
situações de trabalho e salariais. A pergunta decisiva é sempre: O que,
na relação entre homem, mulher e filhos, corresponde ao direito da
dignidade do outro?
Embora útil, o direito natural permanece genérico e, quando se trata
de questões concretas, ambíguo. Nessa situação, na revelação, Deus veio
ao nosso encontro. A revelação interpreta de modo concreto o que podemos
reconhecer do ponto de vista do direito natural. O Antigo Testamento
ganhou impulso da sabedoria da tradição do antigo Oriente da época e,
através de um longo processo educativo, o aperfeiçoou à luz da fé em Yahweh.
A segunda tábua do decálogo (Ex 20, 12-17; Dt 5 5, 16-21) é o resultado
de tal processo. Jesus o confirmou (Mt 19), e os Padres da Igreja
estavam convencidos de que os mandamentos da segunda tábua do decálogo
correspondiam a todos os mandamentos da consciência moral comum dos
homens.
Os mandamentos da segunda tábua do decálogo, portanto, não são uma
moral especial judaico-cristã. São tradições da humanidade
concretizadas. Neles, valores fundamentais da vida familiar são
confiados à proteção particular de Deus: O respeito pelos pais e o
cuidado dos pais idosos, a inviolabilidade do matrimônio, a proteção da
nova vida humana que nasce do matrimônio, a propriedade como base para a
vida da família e as relações recíprocas verdadeiras, sem as quais não
pode existir a comunidade.
Com esses mandamentos, foi dado aos homens um modelo, uma espécie de
bússola para o seu caminho. Por isso, a Bíblia não entende esses
mandamentos como um ônus e uma limitação da liberdade; ela se alegra com
o mandamento de Deus (Sl 1, 2; 112, 1; 119). Eles são indicações sobre o
caminho para uma vida feliz e realizada. Não podem ser impostos a
ninguém, mas podem ser propostos a todos, com boa razão, como caminho
para a felicidade.
O Evangelho da família no Antigo Testamento chega à conclusão nos dois primeiros capítulos do Gênesis. Estes também contêm antiquíssimas tradições da humanidade, interpretadas de maneira crítica e aprofundadas à luz da fé em Yahweh.
Quando é estabelecido o cânone da Bíblia, no conjunto, foram postos por
primeiro, de modo programático, como ajuda hermenêutica à leitura e à
interpretação da Bíblia. Neles, é apresentado o desígnio original de
Deus da família. É possível extrapolar três afirmações fundamentais a
partir deles.
1. "E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de
Deus ele o criou; e os criou homem e mulher" (Gn 1, 27). No seu duplo
gênero, o homem é a boa ou até mesmo a ótima criação de Deus. Não foi
criado solteiro: "Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer para
ele uma auxiliar que lhe seja semelhante" (2, 18). Por isso, Adão
acolhe a mulher com um alegre grito de boas-vindas (2, 23). O homem e a
mulher foram doados por Deus um ao outro. Devem se completar e se
sustentar, comprazer-se e encontrar alegria um no outro.
Ambos, homem e mulher, como imagem de Deus, têm a mesma dignidade.
Não há lugar para a discriminação da mulher. Mas o homem e a mulher não
são simplesmente iguais. A sua igualdade na dignidade se fundamenta
também como a sua diversidade, na criação. Estas não são dadas a eles
por ninguém, nem eles se dão por si mesmos. Não nos tornamos homem ou
mulher através da respectiva cultura, como afirmam algumas opiniões
recentes. O ser homem e o ser mulher estão fundamentados ontologicamente
na criação. A igual dignidade da sua diversidade explica a atração
entre os dois, cantada nos mitos e nos grandes poemas da humanidade,
assim como no Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. Querer
torná-los iguais por ideologia destrói o amor erótico. A Bíblia
entende esse amor como união para se tornar uma só carne, isto é, como
uma comunidade de vida, que inclui sexo, eros, além da amizade humana
(2, 24). Nesse sentido completo, o homem e a mulher foram criados pelo
amor e são imagem de Deus, que é amor (1Jo 4, 8).
Como imagem de Deus, o amor humano é algo grande e belo, mas não é
divino por si só. A Bíblia desmitiza a "baalização" vetero-oriental da
sexualidade na prostituição nos templos e condena a licenciosidade como
idolatria. Se um parceiro deifica o outro e espera dele que lhe prepare o
céu na terra, então o outro, por força, se sente solicitado demais; só
pode decepcionar. Por causa dessas expectativas excessivas, muitos
matrimônios fracassam. A comunidade de vida entre homem e mulher, junto
com os seus filhos, só pode ser feliz se eles se entendem reciprocamente
como um dom que os transcende. Assim, a criação do homem desemboca no
sétimo dia, na celebração do sabbat. O homem não foi criado como animal de trabalho, mas para o sabbat.
Como dia para ser livres para Deus, também deve ser um dia para ser
livres para a festa e a celebração comum, um dia de tempo livre a ser
passado com e para o outro (cfr. Ex 20, 8-10; Dt 5, 12-14). O sabbat, ou seja, o domingo, como dia da família, é algo que devemos aprender de novo com os nossos amigos judeus.
2. "E Deus os abençoou e lhes disse: 'Sejam
fecundos, multipliquem-se'" (1, 28). O amor entre o homem e a mulher não
é fechado em si mesmo; transcende a si mesmo e se concretiza nos filhos
que nascem desse amor. O amor entre um homem e uma mulher, e a
transmissão da vida são inseparáveis. Isso não vale apenas para o ato do
gerar, mas também vai além. O primeiro nascimento continua no segundo, o
social e cultural, na introdução à vida e através da transmissão dos
valores da vida. Por isso, os filhos precisam do espaço protetor e da
segurança afetiva no amor dos país; ao contrário, os filhos reforçam e
enriquecem o laço de amor entre os pais. As crianças são uma alegria e
não um peso.
Para a Bíblia, a fecundidade não é uma realidade
meramente biológica. Os filhos são fruto da bênção de Deus. A bênção é o
poder de Deus na história e no futuro. A bênção na criação continua na
promessa da descendência de Abrão (Gn 12, 2-5; 18, 18;
22, 18). Assim, a potência vital da fecundidade, divinizada no mundo
antigo, é entrelaçada com a ação de Deus na história. Deus coloca o
futuro do povo e a existência da humanidade nas mãos do homem e da
mulher.
O discurso sobre a parentalidade responsável tem um significado mais
profundo do que aquele que lhe é atribuído geralmente. Significa que
Deus confia a coisa mais preciosa que pode dar, isto é, a vida humana, à
responsabilidade do homem e da mulher. Eles podem decidir
responsavelmente sobre o número e os tempos do nascimento dos seus
filhos. Devem fazer isso na responsabilidade diante de Deus e no
respeito da dignidade e do bem do parceiro, na responsabilidade com
relação ao bem dos filhos, na responsabilidade com relação ao futuro da
sociedade e no respeito da natureza do homem (GS 50). Disso resulta não
uma casuística, mas sim uma figura sensata vinculante, cuja realização
concreta é confiada à responsabilidade do homem e da mulher. A eles é
dada a responsabilidade do futuro. O futuro da humanidade passa pela
família. Sem a família, não há futuro, mas sim o envelhecimento da
sociedade, perigo diante do qual se encontram as sociedades ocidentais.
3. "Encham a terra e submetam-na" (1, 28). Às vezes,
as palavras submeter e reinar foram entendidas no sentido de submissão
violenta e de exploração, atribuindo ao cristianismo a culpa pelos
problemas ambientais. Os biblistas demonstraram que essas duas palavras
não devem ser entendidas no sentido de uma submissão e de um domínio
violento. A segunda narração da criação fala de cultivar e guardar (2,
15). Trata-se, portanto, como dizemos hoje, da missão cultural do homem.
O homem deve cultivar e cuidar da terra como de um jardim, deve ser
guardião do mundo e transformá-lo em um ambiente de vida digno do homem.
Essa tarefa não cabe apenas ao homem, mas a homem e mulher
conjuntamente. Ao seu cuidado e responsabilidade é confiada não apenas a
vida humana, mas também a terra em geral.
Com essa missão cultural, mais uma vez a relação entre homem e mulher
transcende a si mesma. Não é mero sentimentalismo que gira em torno de
si mesmo; não deve se fechar em si mesmo, mas sim abrir-se à missão para
o mundo. A família não é apenas uma comunidade pessoal privada. É a
célula fundamental e vital da sociedade. É a escola de humanidade e das
virtudes sociais, necessárias para a vida e o desenvolvimento da
sociedade (OS 47; 52). É fundamental para o nascimento de uma
civilização do amor e para a humanização e a personalização da
sociedade, sem as quais ela se torna uma massa anônima. Nesse sentido,
pode-se falar de uma tarefa social e política da família (FC 44).
Como instituição primordial da humanidade, a família é mais antiga do
que o Estado e, com relação a ele, de direito próprio. Na ordem da
criação, nunca se fala de Estado. Ele deve, sempre que possível,
sustentar e promover a família; mas não pode interferir nos seus
direitos próprios. Os direitos da família, indicados na carta da
família, fundamentam-se na ordem da criação (FC 46). A família como
célula fundamental do Estado e da sociedade é, ao mesmo tempo, modelo
fundamental do Estado e da humanidade como única família humana. Disso
resultam consequências para uma espécie de ordem familiar na igual
distribuição dos bens, como também para a paz no mundo (EG 176; 258). O
Evangelho da família é, ao mesmo tempo, um Evangelho para o bem e para a
paz da humanidade.
2. As estruturas de pecado na vida da família
O que foi dito até agora constitui um quadro ideal, mas, de fato, não é a realidade das famílias. A Bíblia também sabe disso. Assim, aos capítulos 1 e 2 do Gênesis,
segue-se o capítulo 3, com a expulsão do paraíso e da realidade
conjugal e familiar paradisíaca. A alienação do homem de Deus tem como
consequência a alienação do homem e entre os homens. Na linguagem da
tradição teológica, definimos essa alienação como concupiscência; ela
não deve ser entendida somente como desejo sexual desregulado. Para
evitar tal mal-entendido, muitas vezes hoje se fala de estruturas do
pecado (FC 9). Estas agravam também a vida da família. A Bíblia oferece
uma descrição realista da conditio humana e da sua interpretação a partir da fé.
A primeira alienação ocorre entre o homem e a mulher. Eles sentem
vergonha um diante do outro (3, 10). A vergonha demonstra que a harmonia
original entre corpo e espírito é perturbada e que o homem e a mulher
são alienados um do outro. O afeto degenera no desejo recíproco e no
domínio do homem sobre a mulher (3, 16). Eles se criticam e se acusam
mutuamente (3, 12). Violência, ciúme e discórdia se insinuam no
matrimônio e na família.
A segunda alienação refere-se de modo particular às mulheres e às
mães. Agora, elas devem dar à luz os próprios filhos com fadiga e dor
(3, 16). Também devem criá-los na dor. Quantas mães se lamentam e choram
pelos seus filhos, assim como Raquel chorou pelos seus, sem querer ser
consolada? (Jr 31, 15; Mt 2, 18).
A alienação diz respeito também à relação do homem com a natureza e
com o mundo. A terra não é mais um belo jardim, tem espinhos e ervas
daninhas, é indomável e hostil, e o trabalho tornou-se duro e difícil.
Agora, o homem deve trabalhar com fadiga e com o suor do seu rosto (3,
19).
Bem cedo se chega também à alienação e à disputa em família. Sobrevêm
a inveja e a discórdia entre irmãos, o fratricídio e a guerra entre
irmãos (4, 1-16). A Bíblia conta sobre a infidelidade
entre cônjuges. Esta se insinua até na árvore genealógica de Jesus; de
fato, compreende duas mulheres (Tamar e a mulher de Urias),
que são consideradas pecadoras (Mt 1, 5 s.). Jesus também tinha
antepassados que não provinham "de boa família" e que se preferiria
calar e manter escondidos. A Bíblia aqui é muito realista, muito
honesta.
Enfim, há a alienação mais importante, a morte (3, 19; cfr. Rm 5, 12)
e todas as forças da morte que enfurecem no mundo, trazendo chagas,
luto e perdição. Trazem também sofrimento à família. Pensemos apenas no
que acontece quando uma mãe se encontra diante do túmulo do próprio
filho ou quando os cônjuges devem se dizer adeus, algo particularmente
penoso nos matrimônios felizes e que, para as pessoas mais idosas,
muitas vezes significa dolorosos anos de solidão.
Quando falamos da família e da beleza da família, não podemos partir
de uma irrealista imagem romântica. Devemos ver também as duras
realidades e participar da tristeza, das preocupações e das lágrimas de
muitas famílias. O realismo bíblico pode até nos oferecer uma certa
consolação. Ele nos mostra que aquilo pelo qual choramos não é algo de
hoje e que, no fundo, sempre foi assim. Não devemos ceder à tentação de
idealizar o passado e depois, como está na moda em alguns ambientes, ver
o presente como mera história de decadência. A saudade dos bons e
velhos tempos e as lamentações sobre as jovens gerações existem desde
que existe uma geração mais velha. Não é só a Igreja que é (como disse o
Papa Francisco) um hospital de campanha,
mas a família também é um hospital de campo com muitas feridas a se
enfaixar e tantas lágrimas a enxugar, e onde é preciso continuar criando
reconciliação e paz.
No fim, o terceiro capítulo do Gênesis acende uma
luz de esperança. Expulsando o homem do paraíso, Deus lhe deu uma
esperança para lhe acompanhar no seu caminho. O que a tradição define
como protoevangelho (Gn 3, 15) pode ser entendido também como
protoevangelho da família. Da sua descendência, nascerá o Salvador. As
genealogias em Mateus e Lucas (Mt 1,
1-7; Lc 3, 23-38) testemunham que, da sucessão das gerações, mesmo que
sofrendo alguns abalos, no fim nasceu o Salvador. Deus pode escrever
certo por linhas tortas. Por isso, acompanhando os homens no seu
caminho, devemos ser não profetas da desventura, mas sim portadores de
esperança, que oferecem consolação e que, também nas situações difíceis,
encorajam a seguir em frente.
3. A família na ordem cristã da redenção
Jesus entrou em uma história familiar. Cresceu na família de Nazaré
(Lc 2, 51 s.). Dela também faziam parte irmãos e irmãs em sentido lato
(Mc 3, 1-33; 6, 3), além de parentes mais distantes, evidentemente
íntimos, como Isabel, Zacarias e João Batista (Lc 1, 35; 39-56). No início da sua vida pública, Jesus participou da celebração das bodas de Caná,
realizando o primeiro milagre (Jo 2, 1-12). Desse modo, colocou toda a
sua obra sob o sinal de um matrimônio e da alegria matrimonial. Com ele,
o Esposo, tiveram início o matrimônio escatológico e o tempo de alegria
anunciados pelos profetas.
Uma afirmação fundamental de Jesus sobre o matrimônio e sobre a família se encontra nas famosas palavras sobre o divórcio (Mt 19, 3-9). Moisés
o havia admitido sob determinações condições (Dt 24, 1); as condições
eram motivo de controvérsia entre as diversas escolas dos escribas
judeus. Jesus não se deixa envolver nessa casuística, fazendo, ao invés,
referência à vontade original de Deus: "No início da criação, não era
assim". Os discípulos se assustam com essa afirmação. Consideram-na como
um ataque inaudito à concepção do matrimônio do mundo que os circunda,
além de uma pretensão impiedosa e excessiva. "Se essa é a condição do
homem no matrimônio, não convém se casar". Jesus confirma indiretamente
que, do ponto de vista humano, trata-se de uma pretensão excessiva. Deve
ser "concedida" ao homem; ela é um dom da graça.
A palavra "concedido" mostra que as palavras de Jesus
não devem ser entendidas de modo isolado, mas sim no contexto
abrangente da sua mensagem do reino de Deus. Jesus faz derivar o repúdio
da dureza do coração (Mt 19, 8), que se fecha a Deus e ao próximo. Com a
vinda do reino de Deus, se cumpriu a palavra dos profetas, segundo a
qual Deus, no tempo messiânico, transformaria o coração endurecido em um
coração novo, não mais duro como pedra, mas sim um coração de carne,
terno, sensível e empático (Ez 36, 26 s.; cfr. Jr 31, 33; Sal 51, 12).
Como o adultério tem início no coração (Mt 5, 28), a cura só pode
ocorrer através da conversão e do dom de um coração novo. Por isso,
Jesus tomou distância da dureza do coração e da hipocrisia das punições
draconianas infligidas a uma adúltera e concedeu o perdão a uma mulher
acusada de adultério (Jo 8, 2-11; cfr. Lc 7, 36-50).
A boa nova de Jesus é que a aliança estreitada pelos
cônjuges é abraçada e sustentada pela aliança de Deus, que, pela
fidelidade de Deus, continua existindo mesmo quando o frágil laço humano
do amor se torna mais fraco ou até mesmo morre. A promessa definitiva
de aliança e de fidelidade de Deus priva o vínculo humano da
arbitrariedade humana; confere-lhe solidez e estabilidade. O vínculo que
Deus estreita em torno dos esposos seria mal-entendido se se quisesse
compreendê-lo como um jugo; ao invés, é a primorosa promessa de
fidelidade de Deus ao homem; é um encorajamento e uma constante fonte de
força para manter, nas alternadas vicissitudes da vida, a fidelidade
recíproca.
Dessa mensagem, Agostinho tirou a doutrina da indissolubilidade do
vínculo matrimonial, que continua subsistindo mesmo onde, humanamente, o
matrimônio se despedaça. Muitos, hoje, têm dificuldade para
compreendê-la. Essa doutrina não pode ser entendida como uma espécie de
hipóstase metafísica ao lado ou acima do amor pessoal dos cônjuges; por
outro lado, não se esgota no amor afetivo recíproco e não morre com ele
(GS 48; EG 66). É Evangelho, ou seja, palavra definitiva e promessa
permanentemente válida. Como tal, leva a sério o homem e a sua
liberdade. É próprio da dignidade do homem poder tomar decisões
definitivas. Elas pertencem de modo permanente à história da pessoa;
caracterizam-na de modo duradouro; não é possível tirá-las de cima dos
ombros e fazer como se nunca foram tomadas. Se são despedaçadas, cria-se
uma ferida profunda. As feridas podem ser curadas, mas a cicatriz
permanece e continua fazendo mal; mas se pode e se deve continuar
vivendo mesmo com fadiga. De modo semelhante, a boa nova de Jesus é que, graças à misericórdia de Deus, para quem se converte, são possíveis o perdão, a cura e um novo início.
Paulo retoma a mensagem de Jesus. Fala de um matrimônio "no Senhor"
(1Cor 7, 20). Ele não se refere à forma eclesial do matrimônio, que se
desenvolveu de modo definitivo só diversos séculos depois, por meio do
decreto Tametsi do Concílio de Trento
(1563). As "tábuas da família" (Col 3, 18 - 4, 1; Ef 5, 21 – 6, 9; 1 Pd
2, 18 - 3, 7) mostram que "no Senhor" não se refere ao início do
matrimônio, mas sim a toda a vida em família, à relação entre marido e
mulher, entre pais e filhos, entre os senhores e os escravos que vivem
na casa. As tábuas da cada retomam a ordem patriarcal, modificando-a,
porém, "no Senhor". Através do "no Senhor", a submissão unilateral da
mulher ao homem torna-se uma relação recíproca de amor, que
caracterizará também as outras relações familiares. Paulo diz até – algo
singular e até mesmo revolucionário em toda a antiguidade – que a
diferença entre o homem e a mulher não conta mais para aqueles que são
"um em Cristo" (Gal 3, 28). Assim, as "tábuas da família" são um exemplo
da força da fé cristã que modifica e caracteriza as normas.
A Carta aos Efésios também vai além. Retoma a metáfora vetero-testamentária, testemunhada de modo particular em Oseias (2, 18-25), do vínculo matrimonial como definição da aliança de Deus com o seu povo. Em Cristo,
essa aliança se cumpriu e se aperfeiçoou. Assim, o vínculo entre homem e
mulher se torna símbolo concreto da aliança de Deus com os homens que
se cumpriu em Jesus Cristo. Aquela que, desde os inícios do mundo, era
uma realidade da boa criação de Deus, agora se torna um símbolo que
ilustra o mistério de Cristo e da Igreja (Ef 5, 32).
O Concílio de Trento, com base em um desenvolvimento
da história da teologia que se concluiu no século XII, identificava
nessa afirmação uma referência à sacramentalidade do matrimônio (DH
1799; cfr. DH 1327). A teologia recente busca aprofundar tal motivação
cristológica mediante uma visão trinitária e entende a família como
representação do mistério da comunhão trinitária.
Como sacramento, o matrimônio é tanto instrumento de cura para as
consequências do pecado, quanto instrumento da graça santificante.
Pode-se aplicar esse ensinamento à família e dizer: entrando na história
de uma família, Jesus curou e santificou a família. A ordem da salvação
abrange a ordem da criação. Não é hostil ao corpo e à sexualidade;
incluir sexo, eros e amizade humana, purificando-os e aperfeiçoando-os.
De modo semelhante à santidade da Igreja, a santidade da família também
não é uma grandeza estática. É constantemente ameaçada pela dureza do
coração. Deve continuar percorrendo o caminho da conversão, da renovação
e da maturação.
Assim como a Igreja está a caminho na via da conversão e da renovação
(LO 8), o matrimônio e a família também se encontram no caminho da cruz
e da ressurreição (FC 12 s.), sob a lei da gradualidade do continuar
crescendo de modo sempre novo e mais profundo no mistério de Cristo (PC
9. 34). Essa lei da gradualidade me parece ser uma coisa importantíssima
para a vida e para a pastoral matrimonial e familiar. Não significa
gradualidade da lei, mas sim gradualidade, isto é, crescimento na
compreensão e na realização da lei do Evangelho, que é uma lei da
liberdade (Tg 1, 25; 2, 12), que hoje, para tantos fiéis, se tornaram
tão difíceis. Precisam de tempo e de acompanhadores pacientes no seu
caminho.
O coração novo sempre exige uma nova formação do coração e pressupõe
uma cultura do coração. A vida familiar deve ser cultivada segundo as
três palavras-chave do Santo Padre: com licença, obrigado, desculpe. É
preciso ter tempo uns para os outros e festejar juntos o sabbat,
dar sempre prova de piedade, perdão e paciência; são necessários
contínuos sinais de benevolência, de apreciação, de afeto, de gratidão e
de amor. A oração comum, o sacramento da penitência e a celebração
comum da eucaristia são uma ajuda para continuar a solidificar novamente
o vínculo do matrimônio que Deus estreitou em torno dos cônjuges. É
sempre bonito encontrar casais mais idosos que, mesmo em idade avançada,
estão apaixonados de uma maneira que se tornou mais madura. Isso também
é sinal de uma humanidade redimida.
A Bíblia termina com a visão do matrimônio
escatológico do Cordeiro (Ap 19, 7-9). O matrimônio e a família se
tornam, assim, um símbolo escatológico. Com a celebração das núpcias
terrenas, antecipam-se as núpcias do Cordeiro, por isso devem ser
alegres, esplêndidas e solenes, uma alegria que deve irradiar por toda a
vida matrimonial e familiar.
Como antecipação escatológica, o matrimônio terreno é, ao mesmo tempo, relativizado. Jesus
mesmo viveu – algo insólito para um rabi – no celibato, pedindo, para
segui-lo, para estar disposto a deixar o matrimônio e a família (Mt 10,
37) e, àqueles aos quais é dado, viver no celibato por amor ao reino
celeste (Mt 19, 12). Para Paulo, o celibato em um mundo
cuja cena passa é o melhor caminho. Doa a liberdade de ser indivisível
pela causa do Senhor (1Cor 7, 25-38). Como o celibato livremente
escolhido se torna uma situação sociologicamente reconhecida em si
mesma, o matrimônio também, por causa dessa alternativa, não é mais uma
obrigação social, mas sim uma livre escolha. Sobretudo as mulheres não
casadas são agora reconhecidas mesmo sem um marido. Assim, o matrimônio e
o celibato se valorizam e se sustentam mutuamente, ou ambos juntos
entram em uma crise, como infelizmente estamos experimentando agora.
É essa a crise que estamos vivendo. O Evangelho do matrimônio e da
família, para muitos, não é mais compreensível, decaiu em uma crise
profunda. Muitos consideram que na sua situação ele não é vivível. O que
fazer? As belas palavras, sozinhas, de pouco servem. Jesus
nos indica um caminho mais realista. Ele nos diz que todo cristão,
casado ou não, abandonado pelo próprio parceiro ou tendo crescido desde
criança ou desde jovem sem contatos com a própria família, nunca está
sozinho ou perdido. É de casa em uma nova família de irmãos e irmãs (Mt
12, 48-50; 19, 27-29). O Evangelho da família se concretiza na Igreja
doméstica; nela, ele pode se tornar novamente vivível. Ela é novamente
atual.
4. A família como Igreja doméstica
A Igreja é, segundo o Novo Testamento, a casa de Deus (1Pd 2, 5; 4, 17; 1Tm 3, 15; Hb 10, 21). A liturgia muitas vezes define a Igreja como Familia Dei.
Deve ser casa para todos; nela todos devem poder se sentir em casa e em
família. Da casa, no mundo antigo, muitas vezes faziam parte, ao lado
do chefe da família, da mulher e dos filhos, também os parentes que
viviam em casa, os escravos e muitas vezes também amigos ou hóspedes. É
nesse contexto que devemos pensar quando nos é contado, sobre a
comunidade dos primórdios, que os primeiros cristãos se reuniam nas
casas (At 2, 26; 5, 42). Mais vezes se fala de conversão de casas
inteiras (At 11, 14; 16, 15; 31, 33).
Em Paulo, a Igreja era ordenada segundo casas, isto
é, Igrejas domésticas (Rm 16, 5; 1Cor 16, 19; Col 4, 15; Fm 2).
Constituam para ele um ponto de apoio e de partida nas suas viagens
missionárias, eram centro da fundação e pedra para a construção da
comunidade local, lugar de oração, de ensino catequético, de
fraternidade cristã e de hospitalidade com relação aos cristãos de
passagens. Antes da virada constantiniana, provavelmente também eram
lugar de encontro para a celebração da ceia do Senhor.
Também em seguida, na história da Igreja, as Igrejas domésticas
desempenharam um papel importante: é preciso lembrar, em particular, as
comunidades leigas ainda na Idade Média, as comunidades pietistas e as
Igrejas livres, das quais, desse ponto de vista, temos algo a aprender.
Nas famílias católicas, havia, e ainda há, pequenos altares domésticos
(cantos do crucifixo), junto dos quais era possível se reunir à noite ou
em momentos particulares (Advento, vigília do Natal, situações de
necessidade e de calamidade, e assim por diante) para rezar juntos. Vale
pensar também na bênção dos pais aos filhos, nos símbolos religiosos,
sobretudo a cruz na habitação, a água santa para lembrar a água batismal
e mais ainda. Esses belos costumes da piedade popular merecem ser
renovados.
O Concílio Vaticano II, reconectando-se com Crisóstomo,
retomou a ideia da Igreja doméstica (LO 11; AA 11). Aquelas que, nos
documentos do Concílio, são apenas breves referências, nos documentos
pós-conciliares se tornaram capítulos extensos. Sobretudo a carta
apostólica Evangelii nuntiandi (1975)
prosseguiu o impulso do Concílio no pós-Concílio. Definiu as comunidades
eclesiais de base como esperança para a Igreja universal (EN 58, 71).
Na América Latina, na África e na Ásia (Filipinas, Índia, Coreia e assim por diante), as Igrejas domésticas, sob a forma de comunidades de base (Basic Christian Communities) ou de pequenas comunidades cristãs (Small Christian Communities),
se tornaram uma receita pastoral de sucesso. Em particular, nas
situações de minoria, de diáspora e de perseguição, tornaram-se uma
questão de sobrevivência para a Igreja.
Enquanto isso, os impulsos provenientes da América Latina, da África e da Ásia
começam a dar bons frutos também na civilização ocidental. Aqui, as
antigas estruturas da Igreja popular demonstram-se cada vez menos
solidárias; as áreas pastorais tornaram-se cada vez maiores, e os
cristãos novamente se encontram muitas vezes na situação de minorias
cognitivas. A isso se soma que, enquanto isso, a família nuclear, tendo
se desenvolvido somente a partir do século XVIII a partir da grande
família do passado, acabou em uma crise estrutural. As condições de
trabalho e de habitação modernas levaram a uma separação entre
habitação, lugar de trabalho e lugares das atividades do tempo livre e
levam a uma desagregação da casa como unidade social. Por motivos
profissionais, os pais, muitas vezes, devem se afastar da família por
períodos prolongados; as mulheres também, por razões de trabalho, muitas
vezes estão presentes apenas em parte na família. Por causa das
condições da vida atual, hostis à família, a família nuclear moderna se
encontra em dificuldade. No anônimo ambiente metropolitano,
especialmente nas periferias muitas vezes desoladas das modernas
megalópoles, as pessoas que não vivem nas ruas também se tornaram sem
pátria e sem teto em um sentido mais profundo. Devemos construir para
elas novas casas no sentido literal e no sentido figurado.
As Igrejas domésticas podem ser uma resposta. Naturalmente, não
podemos simplesmente replicar as Igrejas domésticas da Igreja dos
primórdios. Precisamos de grandes família de um novo tipo. Para que as
famílias nucleares possam sobreviver, elas devem estar inseridas em uma
coesão familiar que atravessa as gerações, na qual sobretudo as avós e
os avôs desempenham um papel importante, em círculos interfamiliares de
vizinhos e amigos em que as crianças possam ter um refúgio na ausência
dos pais, e em que os idosos sozinhos, os divorciados e os pais sozinhos
possam encontrar uma espécie de casa. As comunidades espirituais
constituem muitas vezes o âmbito e o clima espiritual para as
comunidades familiares. Também são referências de Igreja doméstica os
grupos de oração, os grupos bíblicos, catequéticos, ecumênicos.
Como definir essas Igrejas domésticas? São uma ecclesiola in ecclesia,
uma Igreja pequena dentro da Igreja. Tornam a Igreja local presente na
vida concreta das pessoas. De fato, onde dois ou três se reúnem no nome
de Cristo, ele está no meio deles (Mt 18, 20). Em
virtude do batismo e da confirmação, as comunidades domésticas são povo
messiânico de Deus (LG 9). Participam da missão sacerdotal, profética e
real (1Pd 2, 8; Ap 1, 6; 5, 10; LG 10-12; 20-38). Por meio do Espírito
Santo, possuem o sensus fidei, o sentido da fé, um sentido
intuitivo da fé e da prática de vida conforme ao Evangelho. Não são
somente objeto, mas também sujeito da pastoral familiar. Sobretudo
através do seu exemplo, podem ajudar a Igreja a penetrar mais em
profundidade na palavra de Deus e a aplicá-la de maneira mais plena na
vida (LG 12; 35; EG 154 s.). Como o Espírito Santo é dado à Igreja no
seu conjunto, elas não devem se isolar de modo sectário da communio
mais ampla da Igreja. Esse "princípio católico" preserva a Igreja da
desagregação em Igrejas livres, autônomas e individuais. Através de tal
unidade na multiplicidade, a Igreja é igualmente sinal sacramental de
unidade no mundo (LG 1; 9).
As Igrejas domésticas se dedicam à partilha da Bíblia.
Da Palavra de Deus, obtêm luz e força para a sua vida cotidiana (DV 25;
EG 152 s.). Diante da ruptura da transmissão geracional da fé (EG 70),
têm a importante tarefa catequética de guiar rumo à alegria da fé. Rezam
juntas pelas próprias intenções e pelos problemas do mundo. A
eucaristia dominical deve ser celebrada por elas junto com a comunidade
inteira como fonte e cume de toda a vida cristã (LO 11). No âmbito
familiar, celebram o dia do Senhor como dia do repouso, da alegria e da
comunhão, assim como também os tempos do ano litúrgico, com os seus
ricos costumes (SC 102-111). São lugares de uma espiritualidade da
comunhão na qual nos aceitamos reciprocamente em espírito de amor, de
perdão e de reconciliação, e em que se compartilham alegrias e dores,
preocupações e tristezas, contentamento e felicidade na vida cotidiana,
no domingo e nos dias de festa. Através de tudo isso, edificam o corpo
da Igreja (LG 41).
A Igreja é, por sua natureza, missionária (AG 2); a evangelização é a
sua identidade mais profunda (EN 14; 59). As famílias, como Igrejas
domésticas, são chamadas de modo particular a transmitir a fé no seu
respectivo ambiente. Elas têm uma tarefa profética e missionária. O seu
testemunho é sobretudo o testemunho de vida, através do qual podem ser
fermento no mundo (Mt 13, 33; AA 2-8; EN 21; 41; 71; 76; EG 119-121).
Assim como Jesus veio para anunciar o Evangelho aos pobres (Lc 4, 18; Mt
11, 5) e chamou de bem-aventurados os aflitos, os pequenos e as
crianças (Mt 5, 3 s.; 11, 25; Lc 6, 20 s.), Jesus também mandou os seus
discípulos a anunciar o Evangelho aos pobres (Lc 7, 22). Por isso, as
Igrejas domésticas não podem ser comunidades elitistas exclusivas. Devem
se abrir aos sofredores de todos os tipos, às pessoas simples e aos
pequenos. Devem saber que o Reino de Deus pertence às crianças (Mc 10,
14; EG 197-201).
As famílias precisam da Igreja, e a Igreja precisa das famílias para
estar presente no centro da vida e nos modernos âmbitos de vida. Sem as
Igrejas domésticas, a Igreja é alheia à realidade concreta da vida. Só
através das famílias, ela pode ser de casa onde as pessoas são de casa. A
sua compreensão como Igreja doméstica, portanto, é fundamental para o
futuro da Igreja e para a nova evangelização. As famílias são as
primeiras e melhores mensageiras do Evangelho da família. São o caminho
da Igreja.
5. O problema dos divorciados em segunda união
Se pensarmos na importância das famílias para o futuro da Igreja, o
número em rápido crescimento das famílias desagregadas parece ser uma
tragédia ainda maior. Há muito sofrimento. Não basta considerar o
problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como
instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e
devemos – como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) – considerar a
situação também a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.
Todos sabem que a questões dos matrimônios de pessoas divorciadas em
segunda união é um problema complexo e espinhoso. Não se pode reduzi-lo à
questão da admissão à comunhão. Diz respeito a toda a pastoral
matrimonial e familiar. Inicia já desde a preparação ao matrimônio que
deve ser uma atenta catequese matrimonial e familiar. Continua depois
com o acompanhamento pastoral dos esposos e das famílias; torna-se atual
quando o matrimônio e a família entram em crise. Em tal situação, os
curadores de almas farão todo o possível para contribuir com a cura e a
reconciliação no matrimônio em crise. O seu cuidado não acaba depois de
um fracasso de um matrimônio; devem permanecer próximos dos divorciados e
convidá-los a participar da vida da Igreja.
Todos sabem também que existem situações em que toda tentativa
razoável de salvar o matrimônio resulta vã. O heroísmo dos cônjuges
abandonados que permanecem sozinhos e seguem em frente sozinhos merece a
nossa admiração e sustento. Mas muitos cônjuges abandonados dependem,
para o bem dos filhos, de uma nova relação e de um matrimônio civil, ao
qual não podem renunciar sem novas culpas. Muitas vezes, depois de
experiências amargas do passado, essas relações fazem com que eles
provem uma nova alegria; até mesmo às vezes são percebidas como dom do
céu.
O que a Igreja pode fazer em tais situações? Não pode propor uma
solução diferente ou contrária às palavras de Jesus. A indissolubilidade
de um matrimônio sacramental e a impossibilidade de novo matrimônio
durante a vida do outro parceiro faz parte da tradição de fé vinculante
da Igreja, que não pode ser abandonada ou dissolvida, remetendo-se a uma
compreensão superficial da misericórdia a baixo preço. A misericórdia
de Deus, em última análise, é a fidelidade de Deus a si mesmo e à sua
caridade. Como Deus é fiel, também é misericordioso e, na sua
misericordiosa, também é fiel, embora nós sejamos infiéis (2Tm 2, 13).
Misericórdia e fidelidade vão juntas. Por causa da fidelidade
misericordiosa de Deus, não existe situação humana que seja
absolutamente privada de esperança e de solução. Por mais baixo que o
homem possa cair, ele nunca poderá cair abaixo da misericórdia de Deus.
A pergunta, portanto, é como a Igreja pode corresponder a esse
binômio inseparável de fidelidade e misericórdia de Deus na sua ação
pastoral com relação aos divorciados em segunda união com rito civil. É
um problema relativamente recente, que não existia no passado, que
existe apenas desde a introdução do casamento civil mediante o Código Civil de Napoleão
(1804) e a sua introdução posterior nos diversos países. Ao responder a
tal situação nova, nas últimas décadas, a Igreja deu passos
importantes. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) de
1917 (cân. 2.356) trata os divorciados em segunda união com rito civil
ainda como bígamos que são, ipso facto, infames e, de acordo com a
gravidade da culpa, podem ser atingidos pela excomunhão ou pela
interdição pessoal. O CIC de 1984 (cân. 1.093) não prevê mais essas
punições graves; permaneceram apenas restrições menos graves. A Familiaris consortio (24) e a Sacramentum caritatis (29),
enquanto isso, falam de modo até amoroso sobre esses cristãos.
Asseguram-lhes que não são excomungados e fazem parte da Igreja e os
convidam a participar da sua vida. Eis um tom novo.
Hoje, encontramo-nos em uma situação semelhante à do último Concílio.
Também à época existiam, por exemplo, sobre a questão do ecumenismo e
da liberdade religiosa, encíclicas e decisões do Santo Ofício que
pareciam impedir outras vias. O Concílio, sem violar a tradição
dogmática vinculante, abriu portas. Podemos nos perguntar: não seria
possível, talvez, mais um desenvolvimento também na presente questão,
que não promova a abolição da tradição vinculante de fé, mas leve
adiante e aprofunde tradições mais recentes?
A resposta só pode ser diferenciada. As situações são muito
diferentes e devem ser distinguidas com cuidado. Uma solução geral para
todos os casos, portanto, não pode existir. Limito-me a duas situações,
para os quais, em alguns documentos oficiais, já são indicadas soluções.
Desejo apenas fazer perguntas, limitando-me a indicar a direção das
respostas possíveis. Porém, dar uma resposta será tarefa do Sínodo em
sintonia com o papa.
Primeira situação. A Familiaris consortio afirma
que alguns divorciados em segunda união estão convencidos, em
consciência, subjetivamente, que o seu matrimônio anterior
irremediavelmente despedaçado nunca foi válido (FC 84). De fato, muitos
curadores de almas estão convencidos de que muitos matrimônios
celebrados de forma religiosa não foram contraídos de maneira válida. De
fato, como sacramento da fé, o matrimônio pressupõe a fé e a aceitação
das características peculiares do matrimônio, ou seja, a unidade e a
indissolubilidade. Na situação atual, porém, podemos pressupor que os
esposos compartilham a fé no mistério definido pelo sacramento e que
compreendem e aceitam realmente as condições canônicas para a validade
do seu matrimônio? A praesumptio iuris, da qual parte o direito eclesiástico, não é talvez, muitas vezes, uma fictio iuris?
Como o matrimônio, como sacramento, tem caráter público, a decisão
sobre a sua validade não pode ser deixada inteiramente à avaliação
subjetiva da pessoa envolvida. Segundo o Direito Canônico, a avaliação é
tarefa dos tribunais eclesiásticos.
Como eles não são iure divino, mas se desenvolveram
historicamente, perguntamo-nos, às vezes, se a via judiciária deve ser a
única via para resolver o problema ou se não seriam possíveis outros
procedimentos mais pastorais e espirituais. Como alternativa, se poderia
pensar que o bispo possa confiar essa tarefa a um sacerdote com
experiência espiritual e pastoral como penitenciário ou vigário
episcopal.
Independentemente da resposta a ser dada a tal pergunta, vale lembrar o discurso do Papa Francisco dirigido no dia 24 de janeiro de 2014 aos oficiais do Tribunal da Rota Romana,
no qual afirma que dimensão jurídica e dimensão pastoral não estão em
contraposição. Ao contrário, a atividade judiciária eclesial tem uma
conotação profundamente pastoral. É preciso, portanto, se perguntar: o
que significa dimensão pastoral? Certamente, não uma atitude
complacente, o que seria uma concepção totalmente equivocada seja para a
pastoral, seja para a misericórdia. A misericórdia não exclui a justiça
e não deve ser entendida como graça barata e como uma promoção [svendita].
A pastoral e a misericórdia não se contrapõem à justiça, mas, por assim
dizer, são a justiça suprema, porque por trás de cada causa elas
avistam não só um caso a examinar na ótica de uma regra geral, mas sim
uma pessoa humana que, como tal, nunca pode representar um caso e sempre
tem uma dignidade única. Isso exige uma hermenêutica jurídica e
pastoral que, de um modo mais do que justo e com prudência e sabedoria,
aplique a uma situação concreta e muitas vezes complexa uma lei geral,
ou, como disse o Papa Francisco, uma hermenêutica animada pelo amor do
Bom Pastor, que vê por trás de cada prática, de cada posição, de cada
causa, pessoas que esperam justiça. Realmente é possível que se decida
pelo bem e pelo mal das pessoas em segunda e terceira instância somente
com base em atos, isto é, em papéis, mas sem conhecer a pessoa e a sua
situação?
Segunda situação. Seria errado buscar a solução do problema só em uma
generosa ampliação do procedimento de nulidade do matrimônio.
Criar-se-ia, assim, a perigosa impressão de que a Igreja procede de modo
desonesto para conceder aqueles que, na realidade, são divórcios.
Muitos divorciados não querem tal declaração de nulidade. Dizem: vivemos
juntos, tivemos filhos; essa era uma realidade que não se pode declarar
como nula, muitas vezes apenas por razão de falta de forma canônica do
primeiro matrimônio. Portanto, devemos levar em consideração também a
questão mais difícil da situação do matrimônio ratificado e consumado
entre batizados, em que a comunhão de vida matrimonial se despedaçou
irremediavelmente e um ou ambos os cônjuges contraíram um segundo
casamento civil.
Uma advertência nos foi dada pela Congregação para a Doutrina da Fé ainda em 1994, quando estabeleceu – e o Papa Bento XVI o reiterou durante o encontro internacional das famílias em Milão,
em 2012 – que os divorciados em segunda união não podem receber a
comunhão sacramental, mas podem receber a espiritual. Certamente, isso
não vale para todos os divorciados, mas para aqueles que estão
espiritualmente bem dispostos. Contudo, muitos ficarão agradecidos por
essa resposta, que é uma verdadeira abertura.
Porém, ela levanta diversas perguntas. De fato, quem recebe a comunhão espiritual é uma coisa só com Jesus Cristo;
como pode, portanto, estar em contradição com o mandamento de Cristo?
Por que, portanto, não pode receber também a comunhão sacramental? Se
excluímos dos sacramentos os cristãos divorciados em segunda união que
estão dispostos a se aproximar deles e os encaminhamos à vida de
salvação extrassacramental, talvez não colocamos em discussão a
estrutura fundamental sacramental da Igreja? Então, de que servem a
Igreja e os sacramentos? Não pagamos um preço alto demais com essa
resposta? Alguns defendem que justamente a não participação na comunhão é
um sinal da sacralidade do sacramento. A pergunta que se coloca em
resposta é: não seria talvez uma instrumentalização da pessoa que sofre e
pede ajuda se fazemos dela um sinal e uma advertência para os outros?
Deixamo-la sacramentalmente morrer de fome para que outros vivam?
A Igreja dos primórdios nos dá uma indicação que pode servir como via de saída do dilema, a qual o professor Joseph Ratzinger
já acenara em 1972. A Igreja experimentou muito cedo que, entre os
cristãos, existe até a apostasia. Durante as perseguições, houve
cristãos que, tendo se tornado fracos, negaram o próprio batismo. Por
esses lapsi, a Igreja desenvolvera a prática penitencial
canônica como segundo batismo, não com a água, mas com as lágrimas da
penitência. Depois do naufrágio do pecado, o náufrago não devia ter à
disposição um segundo navio, mas sim uma tábua de salvação.
De modo análogo, entre os cristãos também existiam a dureza de
coração (Mt 19, 8) e casos de adultério com consequentes segundos laços
quase-matrimoniais. A resposta dos Padres da Igreja não era unívoca. A
coisa certa, porém, é que, nas Igreja locais individuais, existia o
direito consuetudinário com base no qual os cristãos que, mesmo ainda
estando vivo o primeiro parceiro, viviam um segundo laço, depois de um
tempo de penitência, tinham à disposição não um segundo navio, não um
segundo matrimônio, mas sim, através da participação na comunhão, uma
tábua de salvação. Orígenes fala desse costume definindo-o como "não irrazoável". Basílio, o Grande, e Gregório Nazianzeno
– dois padres da Igreja ainda indivisa! – também fazem referência a tal
prática. O próprio Agostinho, caso contrário bastante severo sobre a
questão, ao menos em um ponto, parece não ter excluído toda solução
pastoral. Esses Padres queriam, por razões pastorais, a fim de "evitar o
pior", tolerar o que, por si só, é impossível aceitar. Portanto,
existia uma pastoral da tolerância, da clemência e da indulgência, e há
bons motivos para que essa prática contra o rigorismo dos novacianistas
tenha sido confirmada pelo Concílio de Niceia (325).
Como ocorre muitas vezes, nos detalhes históricos de questões
semelhantes, há controvérsias entre os especialistas. Nas suas decisões,
a Igreja não pode se fixar em uma ou outra posição. Todavia, de
princípio, é claro que a Igreja continuou buscando sempre uma via para
além do rigorismo e do laxismo, fazendo referência nisso à autoridade de
ligar e desligar (Mt 16, 19; 18, 18; Jo 20, 23) conferida pelo Senhor.
No Credo, professamos: credo in remissionem peccatorum. Isso
significa: para quem se converteu, o perdão sempre é possível. Se é para
o assassino, também é para o adúltero. Portanto, a penitência e o
sacramento da penitência eram o caminho para ligar esses dois aspectos: a
obrigação para com a Palavra do Senhor e a misericórdia infinita de
Deus. Nesse sentido, a misericórdia de Deus não era e não é uma graça
barata que dispensa da conversão. Inversamente, os sacramentos não são
um prêmio para quem se comporta bem e para uma elite, excluindo aqueles
que mais precisam deles (EG 47). A misericórdia corresponde à fidelidade
de Deus no seu amor aos pecadores, que somos todos nós, e do qual todos
nós também precisamos.
A pergunta é: essa via para além do rigorismo e do laxismo, a via da
conversão, que desemboca no sacramento da misericórdia, o sacramento da
penitência, é também o caminho que podemos percorrer na presente
questão? Um divorciado em segunda união: 1) se se arrepende do seu fracasso no primeiro matrimônio; 2) se esclareceu as obrigações do primeiro matrimônio, se definitivamente excluiu que volte atrás; 3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com o novo matrimônio civil; 4)
se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades o
segundo matrimônio a partir da fé e para educar os próprios filhos na
fé; 5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de
força na sua situação, devemos ou podemos negar-lhe, depois de um tempo
de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?
Essa possível via não seria uma solução geral. Não é a estrada larga
da grande massa, mas sim o estreito caminho da parte provavelmente menor
dos divorciados em segunda união, sinceramente interessada nos
sacramentos. Talvez, não é preciso evitar o pior justamente aqui? De
fato, quando os filhos dos divorciados em segunda união não veem os pais
se aproximarem dos sacramentos, frequentemente, eles também não
encontram a via rumo à confissão e à comunhão. Não levamos em conta que
perderemos também a próxima geração e talvez também a seguinte? A nossa
práxis comprovada não se demonstra contraproducente?
Um casamento civil como descrito com critérios claros deve ser
diferenciado de outras formas de convivência "irregular" como os
casamentos clandestinos, os casais de fato, sobretudo a fornicação e os
chamados casamentos selvagens. A vida não é só branco e preto; de fato,
há muitas nuances.
Da parte da Igreja, essa via pressupõe discretio, discernimento espiritual, sabedoria e sapiência pastoral. Para o pai do monaquismo, Bento, a discretio era mãe de todas as virtudes e virtude fundamental do abade. O mesmo vale para o bispo. Como o rei Salomão, ele precisa de "um coração dócil para que eu saiba (…) discernir entre o bem e o mal" (1Reis 3, 9). Essa discretio
não é um fácil compromisso entre os extremos entre rigorismo e laxismo,
mas sim, como toda virtude, uma perfeição para além desses extremos, o
caminho da saudável via do meio justificada e da justa medida. Nesse
sentido, podemos aprender com muitos e santos confessores, que sabiam
bem fazer esse discernimento espiritual (por exemplo, Santo Afonso de Ligório).
Desejo que, na via de tal discretio, ao longo do processo
sinodal, consigamos encontrar uma resposta comum para testemunhar de
modo crível a Palavra de Deus nas situações humanas difíceis, como
mensagem de fidelidade, mas também como mensagem de misericórdia, de
vida e de alegria.
Conclusão
Com isso, retorno ao tema "O Evangelho da família". Não podemos
limitar o debate à situação dos divorciados em segunda união e a muitas
outras situações pastorais difíceis que não foram mencionadas no
presente contexto. Devemos tomar um ponto de partida positivo e
redescobrir e anunciar o Evangelho da família em toda a sua beleza. A
verdade convence mediante a sua beleza. Devemos contribuir, com as
palavras e os fatos, para fazer com que as pessoas encontrem a
felicidade na família e, de tal modo, possam dar às outras famílias
testemunho dessa sua alegria. Devemos entender novamente a família como
Igreja doméstica, torná-la a via privilegiada da nova evangelização e da
renovação da Igreja, uma Igreja que está a caminho junto às pessoas e
com as pessoas.
Em família, as pessoas estão em casa, ou ao menos buscam uma casa na
família. Nas famílias, a Igreja encontra a realidade da vida. Por isso,
as famílias são banco de teste da pastoral e urgência da nova
evangelização. A família é o futuro. Também para a Igreja ela constitui a
via do futuro.
Apêndice 1: Fé implícita
A pedagogia de Deus é um tema constante dos Padres da Igreja (Clemente de Alexandria, Irineu de Lyon e assim por diante). A tradição escolástica desenvolveu a doutrina da fides implicita.
Ela toma impulso de Hb 11, 1.6: "A fé é fundamento das coisas que se
esperam", "de fato, quem se aproxima de Deus deve acreditar que ele
existe e que ele recompensa aqueles que o procuram".
Para Tomás de Aquino, o verdadeiro conteúdo da fé é a
fé em Deus. Segundo ele, a fé em Deus, como meta e felicidade última do
homem, e na providência histórica de Deus, contém implicitamente as
verdades de fé que dizem respeito aos instrumentos de redenção,
portanto, também a encarnação e a paixão de Cristo (S. th. II/II q.1
a.7). Mesmo que em outras passagens Tomás seja bastante discordante ao
elencar as verdades de fé necessárias à salvação (p.e. q. I a. 6 ad I), é
possível considerar essa sua afirmação como central sobre o tema da fé
implícita (cfr. o apêndice da Deutsche Thomasausgabe, vol. 15, Munique-Salzburgo 1950, 431-437).
Assim, a tese segundo a qual, para que o matrimônio seja válido, é
suficiente a intenção de contraí-lo, como fazem os cristãos, fica atrás
com relação a esse requisito mínimo. De fato, tal intenção implica, para
quem é cristão só por cultura, a mera intenção de contrair matrimônio
segundo o rito da Igreja, coisa que muitos não fazem por fé, mas pela
solenidade e pelo esplendor maiores do matrimônio religioso com relação
ao civil.
Para a eficácia do sacramento, é imprescindível acreditar no Deus
vivo, como meta e felicidade do homem e na Sua providência, que quer nos
guiar no nosso caminho de vida rumo à meta e à felicidade. A partir
dessa convicção de fé inicial, mas fundamental, como requisito mínimo
para a recepção eficaz do sacramento, a catequese para a preparação ao
matrimônio religioso deve ensinar como Deus nos indicou concretamente
essa meta e o caminho rumo a ela e rumo à felicidade em Jesus Cristo,
como o seu amor e a sua fidelidade se tornam ativamente presentes
através da Igreja no sacramento do matrimônio, para acompanhar os
esposos e os cônjuges, com os filhos que Deus lhes quiser dar, no seu
futuro caminho de vida comum, e conduzi-los à felicidade, à vida em e
com Deus e, enfim, à vida eterna. Desse modo, o mistério de Cristo e da
Igreja, que se concretiza no matrimônio, será descerrado passo a passo.
Apêndice 2: Prática da Igreja dos primórdios
Segundo o Novo Testamento, o adultério e a
fornicação são comportamentos em fundamental contraste com o ser
cristão. Assim, na Igreja antiga, ao lado da apostasia e do homicídio,
entre os pecados capitais, que excluíam da Igreja, havia também o
adultério. Como, segundo o pensamento vetero-testamentário judaico, a
fornicação de um cônjuge "contaminava" o outro cônjuge e toda a
comunidade (Lv 18, 25, 28; 19, 29; Dt 24, 4; Os 4, 2 s.; Jr 3, 1-3, 9),
com base nas cláusulas sobre o adultério de Mateus, que escrevia para os
judaico-cristãos (Mt 5, 32 e 19, 9), ao homem era permitido, e às vezes
até necessário, repudiar a mulher adúltera. A esse propósito, no
entanto, desde o início, os Padres atribuíram grande importância ao fato
de que, seja para o homem, seja para a mulher, valiam os mesmos
direitos e os mesmos deveres.
Porém, não é possível obter dos textos completa clareza sobre a
prática da Igreja antiga do repúdio por adultério. Esses textos, de
fato, nem sempre distinguem entre adultério e fornicação, bigamia
simultânea e consecutiva depois da morte do primeiro cônjuge (esta
última, em parte, também era debatida), separação por morte ou por
repúdio. Sobre as questões exegéticas e históricas relativas, existem
uma literatura ampla – entre a qual é quase impossível se orientar – e
interpretações diferentes. Pode-se citar, por exemplo, de um lado, O. Cereti, Divorzio, nuove nozze e penitenza nella Chiesa primitiva (Bolonha, 1977/2013,) e, de outro, H. Couzel, L’Eglise primitive face au divorce (Paris, 1971) e J. Ratzinger, Zur Frage der Unaufloslichkeit der Ehe. Bemerkungen zum dogmengeschichtilchen Befund und seiner gegenwärtigen Bedeutung, in F. Heinrich/V. Eid, Ehe und Ehescheidung (Munique, 1972, 35-56, simile no L'Osservatore Romano de novembro de 2011).
Não pode haver debate algum sobre o fato de que na Igreja dos
primórdios, em muitas Igrejas locais, por direito consuetudinário,
havia, depois de um tempo de arrependimento, a prática da tolerância
pastoral, da clemência e da indulgência. No pano de fundo de tal
prática, talvez devesse ser entendido também o cânone 8 do Concílio de Niceia (325), voltado contra o rigorismo de Novaciano. Esse direito consuetudinário é expressamente testemunhado por Orígenes, que o considera não irrazoável (Comentário ao Evangelho de Mateus XIV, 23). Basílio, o Grande (Carta 188, 4 e 199, 18), Gregório Nazianzeno (Oratio
37) e alguns outros também fazem referência a ele. Explicam o "não
irrazoável" com a intenção pastoral de "evitar o pior". Na Igreja
latina, por meio da autoridade de Agostinho, essa prática foi abandonada
em favor de uma prática mais severa. Agostinho também, porém, em uma passagem, fala de pecado venial (A fé e as obras 19,
35). Portanto, ele não parece ter excluído de partida toda solução
pastoral. Em seguida, a Igreja do Ocidente, nas situações difíceis, para
as decisões dos Sínodos e similares também sempre buscou, e também
encontrou, soluções concretas. O Concílio de Trento, segundo P. Fransen, Das Thema “Eheseheidung und Ehebruch”auf dem Konzil von Trient (1563), in: Concilium 6 (1970) 343-348, condenou a posição de Lutero, mas não a prática da Igreja do Oriente. H. Jedin substancialmente concordou com isso.
As Igrejas ortodoxas conservaram, conforme ao ponto de vista pastoral
da tradição da Igreja dos primórdios, o princípio para eles válido da oikonomia.
A partir do século VI, porém, fazendo referência ao direito imperial
bizantino, elas foram além da posição da tolerância pastoral, da
clemência e da indulgência, reconhecendo, junto com as cláusulas do
adultério, também outros motivos de divórcio, que partem da morte moral e
não só física do vínculo matrimonial. A Igreja do Ocidente
seguiu outro percurso. Ela exclui o dissolução do matrimônio
sacramental entre batizados ratificado e consumado (CIC, cân. 1.141),
mas conhece o divórcio pelo matrimônio não consumado (CIC, cân. 1.142),
assim como, pelo privilégio paulino e petrino, para os matrimônios não
sacramentais (CIC, cân. 1.143). Ao lado disso, há as declarações de
nulidade por vício de forma; a esse propósito poderíamos nos perguntar
se não são postos em primeiro lugar, de modo unilateral, pontos de vista
jurídicos historicamente muito tardios.
J. Ratzinger sugeriu que se retomasse de modo novo a posição de Basílio.
Pareceria ser uma solução apropriada, que também está na base destas
minhas reflexões. Não podemos fazer referência a uma ou outra
interpretação histórica, que continua sempre controversa, e nem mesmo
replicar simplesmente as soluções da Igreja dos primórdios na nossa
situação, que é completamente diversa. Na mudada situação atual, porém,
podemos retomar os conceitos de base e buscar realizá-los no presente,
na forma que é justa e oportuna à luz do Evangelho.