Terça, 11 de março de 2014
Elite econômica que deu golpe no Brasil tinha braços internacionais, diz historiadora
Martina Spohr, coordenadora do CPDOC/FGV, dá detalhes sobre a atuação do alto empresariado na deposição de Jango: “trabalho com a existência de uma elite orgânica transnacional e anticomunista”
A reportagem foi publicada por Opera Mundi, 02-03-2014.
Além de atuar no movimento civil-militar que conspirou e depôs o
presidente João Goulart em 1964, a elite empresarial brasileira também
manteve, ao longo de todos os anos sessenta, estreito vínculo com o
capital estrangeiro, numa “relação íntima” com os interesses dos
executivos norte-americanos.
A afirmação é da historiadora Martina Spohr, coordenadora da área de Documentação do CPDOC da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e estudiosa do regime ditatorial que vigorou no Brasil até 1985.
Como muitos pesquisadores que se debruçam sobre o período, Martina concebe o 31 de março como um golpe classista e empresarial-militar. No mestrado, "Páginas golpistas: anticomunismo e democracia no projeto editorial do IPES (1961-1964)", concluído em 2010 pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Martina
esmiuçou o projeto editorial do Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais, organização fundada com o objetivo público de defender a "livre
iniciativa" e a "economia de mercado", mas que funcionou, na prática,
como um ponto de encontro de acadêmicos conservadores, empresários e
militares empenhados em desestabilizar o governo de João Goulart (1961-1964).
No doutorado, em andamento na UFRJ (com uma bolsa-sanduíche na Brown University, nos EUA), Martina
aprofundou a pesquisa sobre os civis que fizeram o regime militar. Por
conta de seu trabalho na chefia do setor de Documentação do CPDOC/FGV,
começou a colecionar indícios de que muitos dos empresários brasileiros
que atuaram com destaque na conspiração pré-64 também buscavam criar
uma espécie de rede empresarial anticomunista com fortes laços em todo o
continente.
Um desses homens de negócios era o paulista, empresário da indústria
farmacêutica. Seu acervo particular — que reúne cartas, recortes de
jornal, papéis importantes e cópias de grande parte da documentação do
extinto Ipês-SP — foi doado, pelos herdeiros, ao CPDOC/FGV,
que tradicionalmente trabalha com a organização e a preservação de
arquivos particulares da elite brasileira. Esse material, tratado por Martina, faz parte do rol de fontes primárias que compõem a pesquisa provisoriamente intitulada “Elite orgânica transnacional: a rede de relações político-empresarial anticomunista entre Brasil e Estados Unidos (1961-1968)”.
“Trabalho com a existência de uma elite orgânica transnacional, que não estava só no Brasil
e tinha seus braços internacionais. Personagens importantes do
empresariado latino-americano estavam de alguma maneira envolvidos com
norte-americanos”, afirma Martina, explicando que foi a partir de Paulo Ayres Filho, anticomunista ferrenho e um dos fundadores do Ipês, que pôde começar a mapear essa rede.
Prendeu em particular a atenção da pesquisadora uma série de
correspondências “de cunho bastante pessoal, chegando mesmo a ser
íntimo”, entre Ayres Filho e David Rockefeller, multimilionário e magnata do petróleo. David e seu irmão Nelson (vice-presidente dos EUA de 1974 a 1977) eram dois dos maiores entusiastas da Aliança para o Progresso, projeto político que sintetizava os interesses dessa “elite orgânica transnacional”: um programa anticomunista de integração regional levado a cabo pelos EUA no auge da Guerra Fria para lutar contra o que seus defensores chamavam de “cubanização” do continente.
Paulo Ayres Filho teve atuação destacada em um
importante episódio que evidenciava o elo entre os altos capitalistas do
continente. Em 1963, evento sediado em Nova York proporcionou um encontro informal de empresários das Américas
congregando 67 homens de negócios de 11 países do continente. Na
ocasião, cinco executivos brasileiros — quase todos importantes
lideranças do Ipês — puderam estabelecer contato com os altos escalões da política e da economia dos Estados Unidos. Paulo Ayres Filho
foi um deles. E o principal, diga-se: foi escolhido porta-voz do grupo
de latino-americanos para encontrar pessoalmente o presidente John F. Kennedy.
Não por acaso, um dos temas preferidos pelos norte-americanos no encontro foi justamente a discussão da Aliança para o Progresso. Na documentação analisada, Martina Spohr pôde constatar que os empresários dos EUA
tinham grande interesse em tornar o projeto conhecido (de maneira
positiva, obviamente) no Brasil. Por outro lado, os brasileiros
aproveitaram o ensejo para criticar certos aspectos da política externa
econômica dos Estados Unidos que prejudicavam seus interesses comerciais.
Além disso, em entrevistas concedidas a jornais após a volta para o Brasil, também é possível perceber “uma certa militância política dos empresários brasileiros”. Uma tentativa, conforme explica Martina,
de “conscientizar” a elite econômica brasileira, que se sentia
“ameaçada” pelo contexto político do país. “Eles estavam chamando o
empresariado a participar do processo. E os norte-americanos
incentivavam esse tipo de discurso”, afirma a historiadora.
A pesquisa desenvolvida por Martina, entretanto, não fica restrita à atuação dos empresários brasileiros na conspiração que culminou com a derrubada de João Goulart. Até 1968 — ano que marca a radicalização da ditadura brasileira com a edição do AI-5, a chegada da linha dura ao poder e o consequente afastamento de muitos dos setores liberais que haviam apoiado o golpe —, Paulo Ayres Filho
recorrentemente viajaria aos EUA para palestrar nas principais
universidades do país, “com o objetivo de trazer algum tipo de
legitimidade para o novo governo do Brasil”.
Apesar do apoio norte-americano, parcelas do establishment
internacional estavam questionando o regime brasileiro pelo rompimento
institucional e inconstitucional que representou o golpe de 64 e a
tomada do poder pela força. “Havia uma busca desse empresariado para
tentar justificar a ‘revolução’. E não só nos EUA; eles também foram para países como Alemanha e França”, assinala Martina Spohr.