Sexta, 14 de março de 2014
Dilma não vai aceitar celebrações militares
Após 50 anos, o golpe militar de 31 de março de 1964 é uma lembrança a cada dia mais tênue na memória nacional, mas também uma história sem ponto final que ainda hoje contamina com rancor e ódio o ambiente político. O conflito é particularmente visível na relação do atual governo com as Forças Armadas, sobretudo com militares da reserva, e na Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011 para investigar e esclarecer o que ocorreu com 153 militantes de esquerda desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985).
Antecipando-se a eventuais celebrações, o governo tomou providências
para evitar uma nova crise com o meio militar, como se deu em 2012 e
2013 por ocasião do aniversário de 31 de março. Por orientação da
presidente Dilma Rousseff, uma ex-combatente da luta armada contra o regime dos generais, o ministro da Defesa, Celso Amorim,
chamou os comandantes militares e passou o recado: o governo não vai
tolerar manifestações do pessoal da ativa. As punições podem ir da
simples advertência à prisão e exclusão das Forças Armadas.
A reportagem é de Raymundo Costa, publicada no jornal Valor, 14-03-2014.
Amorim recebeu a garantia dos chefes militares de
que não haverá nada de iniciativa do pessoal da ativa. A rigor, desde o
governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o 31
de março foi banido do calendário de comemorações militares, o que nem
sempre impediu um ou outro oficial de levantar a voz para fazer a
apologia da "Redentora" - o apelido da "Revolução de 31 de março de
1964", como se referiam ao golpe os militares e civis que apoiaram a
deposição do ex-presidente João Belchior Marques Goulart (1961-1964). Atualmente, os bolsões que combatem o governo do PT falam em "contrarrevolução".
O Palácio do Planalto também autorizou "conversas do alto escalão"
das Forças Armadas com o pessoal da reserva reunido em torno dos clubes
militares. O mais importante deles é o do Exército, chamado de Clube Militar - a Casa da República.
Há um "entendimento" para que a "Casa" evite se manifestar.
Realisticamente, no entanto, na avaliação do Ministério da Defesa o
simbolismo da data - os 50 anos - é muito forte: o pessoal da ativa e
até o Clube Militar, eventualmente, podem ser mantidos sob rédea curta.
Mas dificilmente o grupo mais radical - ligado aos porões da repressão -
deixará de celebrar o 31 de março.
No que se refere ao pessoal da ativa, o governo aplicará as punições
previstas nos regulamentos das Forças Armadas. Em relação aos grupos
mais radicais da reserva, especialmente aqueles ligados ao esquema de
repressão do regime, o governo avalia que não tem muito o que fazer. A
decisão de punir dependerá do tom da comemoração. Afinal, a mesma
Constituição contra a qual se puseram os militares da linha-dura lhes
garante hoje o direito de expressão.
O que o Palácio do Planalto não pretende deixar passar é a quebra da
hierarquia, como ocorreu em 2012, ano em que foi instalada a Comissão da
Verdade. O Ministério da Defesa tem pareceres jurídicos segundo os
quais os comandantes têm poderes para punir também o pessoal da reserva.
Os vários grupos que convocaram a reedição da Marcha da Família com Deus, em Defesa da Liberdade
- movimento civil que foi uma espécie de escalão precursor do golpe de
1964 - devem receber o mesmo tratamento dado aos manifestantes que vêm
ocupando as ruas do país desde junho. Algumas dessas convocações, porém,
têm um componente explosivo: estão marcadas para sair da porta dos
quartéis.
Também receberão o tratamento dado aos manifestantes comuns, se ficarem da porta para fora da caserna.
A presidente Dilma Rousseff estava do lado que
perdeu em 1964. Integrante de grupos armados de combate ao regime, foi
presa e torturada nos porões da ditadura. Em seu discurso de posse na
Presidência, fez um gesto de conciliação: "Não carrego, hoje, nenhum
ressentimento nem nenhuma espécie de rancor", disse. "A minha geração
veio para a política em busca da liberdade, num tempo de escuridão e
medo.
Pagamos o preço da nossa ousadia, ajudando, entre outros, o país a
chegar até aqui. Aos companheiros meus que tombaram nessa caminhada,
minha comovida homenagem e minha eterna lembrança".
Entre as demandas não resolvidas do governo Lula, a presidente encontrou, ao assumir, a criação da Comissão da Verdade.
Duas posições se destacaram ao longo dos oito primeiros anos do PT: uma
previa a revisão da lei da anistia para permitir a punição dos
torturadores, militares ou civis; outra defendia uma comissão nos moldes
da que foi criada na África do Sul, na saída do apartheid: o depoente
que contasse a verdade seria isentado de punição, aquele que mentisse
sairia da comissão processado.
O ex-presidente Lula logo percebeu que o tema era um
vespeiro, empurrou o assunto com a barriga e deixou o governo sem criar
a Comissão da Verdade. Dilma entrou e aproveitou o momento de força de
uma presidente recém-saída da eleição para criá-la. O grupo começou a
trabalhar a partir de maio de 2012, mas já às vésperas do 31 de março
daquele ano o Clube Militar divulgou um manifesto com duras críticas.
Dizia que seus integrantes estavam "limitando sua atividade à
investigação apenas de atos praticados pelos agentes do Estado, varrendo
para debaixo do tapete os crimes hediondos praticados pelos militantes
da sua própria ideologia".
Dilma chamou Amorim e pediu
providências. Por meio dos comandantes das três forças - Exército,
Marinha e Aeronáutica -, o ministro da Defesa conseguiu que o texto do
manifesto fosse retirado do sítio da "Casa da República" na internet.
Mas um grupo que abriga acusados notórios da prática de tortura publicou
outro manifesto, intitulado "Alerta à Nação - Eles Que Venham, aqui não Passarão", repudiando a intervenção de Amorim.
O texto ultrapassa a risca de giz de Dilma: questiona a "autoridade
ou legitimidade" do ministro e afirma que a criação da Comissão da
Verdade "foi um ato inconsequente, de revanchismo explícito e de afronta
à lei de anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo". O
documento teve a adesão de cerca de 400 militares da reserva. Dilma mandou Amorim
jogar duro. As íntegras dos textos praticamente sumiram da internet,
mas não se tem notícia de nenhuma advertência ou prisão. Como de
costume, os comandantes acomodaram a situação - uma característica da
relação que mantêm com a presidente.
Bom exemplo dessa relação se deu quando o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general José Elito Siqueira,
responsável pela área de inteligência do governo, deu declarações
públicas sobre o 31 de março na contramão do governo. "Nós temos que ver
o 31 de março de 1964 como dado histórico de Nação, seja com prós e
contras." Ou seja, o golpe é um assunto da história. Ponto. Dilma,
como em outros episódios envolvendo o general - outro exemplo é o
episódio da espionagem da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no
Porto de Suape (PE) -, resolveu o problema com uma conversa de pé de
ouvido com Elito.
Há registro de outras desfeitas dos militares com Dilma Rousseff.
Todas explicadas pelos militares com base nos regulamentos e decretos
vigentes. Em sua primeira solenidade de promoção de oficiais das Forças
Armadas, os militares não bateram continência à presidente, e Dilma
limitou-se a apertar as mãos dos oficiais. A explicação: o aperto de
mão é uma das formas de "respeito e apreço a seus superiores" prevista
nos rituais militares. Um decreto de meados dos anos 1970 já havia
banido a exigência da continência.
Em dezembro, o Congresso fez a devolução simbólica do mandato do ex-presidente João Goulart.
O pano de fundo da devolução era declaradamente retirar qualquer ar de
legalidade do golpe de 31 de março de 1964. Presentes - assim como Dilma
- os comandantes das três Forças Armadas não bateram palmas no momento
em que o diploma foi entregue a João Vicente, filho de
Jango. O Ministério da Defesa não entendeu o gesto como um protesto dos
militares porque eles nem sequer estavam obrigados a ir à cerimônia -
foram convidados informalmente por Celso Amorim e resolveram comparecer. Os três.
O Ministério da Defesa também foi encarregado por Dilma para providenciar o traslado do corpo de Jango
do Rio Grande do Sul para Brasília, no curso de uma investigação sobre a
morte do ex-presidente - a suspeita é que ele foi assassinado pelo
serviço secreto em 1976. A presidente exigiu honras de chefe de Estado.
Um problema, pois não havia precedentes na história.
Os manuais militares também não preveem a recepção de restos mortais.
O cerimonial da Defesa improvisou e fez uma adaptação da recepção a
chefes de Estado (guarda de honra, o hino dos dois países e a
apresentação de armas) com a prestação de honras fúnebres (guarda, salva
de tiros e apresentação de armas): os despojos foram recepcionados na
base aérea de Brasília com a guarda e a apresentação de armas por três
pelotões (Exército, Marinha e Aeronáutica).
O eixo atual das divergências é a Comissão da Verdade, mas os atritos
vêm de longe. Em abril de 2010, Lula ainda era presidente, e o site do
Comando do Exército dizia que o golpe de 64 fora uma "opção pela
democracia". A solução foi pioneira: tirou-se o texto do ar. Lula, na
realidade, sempre driblou o assunto: em seu primeiro ano de mandato a
Justiça Federal determinou que o governo indicasse a localização dos
corpos dos desaparecidos da guerrilha do Araguaia. Um grupo do PT
pressionou o presidente a não recorrer da decisão. Mas Lula, alegando "razões de Estado", determinou que a Advocacia-Geral da União (AGU) providenciasse o recurso.
Ao final de seu trabalho, a Comissão da Verdade deve publicar um
livro sobre o que apurou. É provável que não passe de uma versão
melhorada do projeto Brasil Nunca Mais, publicado nos anos 1980. A
narrativa à esquerda dos acontecimentos dos 21 anos de ditadura militar
pode ser encontrada em três arquivos básicos. O primeiro são os
processos nas auditorias militares. O segundo é dos presos políticos de
São Paulo, chamado de "Bagulhão", com a identificação de 233
torturadores. O terceiro - e um dos mais importantes -, também dos
presos de São Paulo, chama-se "História da Repressão Policial Militar no
Brasil".
O documento fala do regime militar até 1975, os instrumentos, métodos
e lugares de tortura e das pessoas que foram torturadas. Na esquerda, é
considerado uma análise insuperável sobre o regime militar. Trata dos
antecedentes do golpe, seu estrato ideológico e a repressão nas artes,
na cultura, nos sindicatos, nos partidos políticos, no parlamento, no
movimento estudantil e a pequenos agricultores. Os manuscritos foram
redigidos nas masmorras e contrabandeados para fora dos presídios
enrolados dentro de garrafas térmicas. Os cinco volumes de "Brasil Nunca
Mais" são um compêndio desses três arquivos.
As Forças Armadas sempre são bem avaliadas nas pesquisas sobre a
percepção que a população tem das instituições. Também sempre tiveram
protagonismo na história do Brasil. E não reconhecem que a tortura foi
uma política de Estado. Segundo seus comandantes, os documentos
referentes ao período foram reduzidos a cinzas, nos termos da legislação
à época. Atualmente, há dois pedidos da Comissão da Verdade aos
quartéis: o primeiro pede os autos lavrados quando os documentos foram
supostamente incinerados; o segundo, a apuração do "uso das instalações
militares para fins diversos para os quais foram construídos". Menciona
especificamente cinco áreas onde funcionaram centros de tortura.
Curiosamente, foram os governos do PT que retomaram o investimento
nas Forças Armadas e recuperaram o poder aquisitivo dos salários de seu
pessoal (ver o gráfico). O Orçamento da Defesa é o quarto maior (R$ 72
bilhões, incluindo-se a folha de pessoal) da Esplanada dos Ministérios,
perdendo apenas para Previdência, Saúde e Educação. Excluído o pessoal
(a tropa), tem a sétima maior fatia do orçamento. Em média, os gastos
militares vêm sendo mantidos em 1,5% do Produto Interno Bruto. Os
salários foram reajustados em 30% por Dilma, bem acima do resto do
funcionalismo. O salário básico do posto mais alto da carreira militar,
hoje, é de R$ 21.048,08.
A relação das Forças Armadas com o governo Dilma é a
evidência de um passado ainda presente, uma história mal resolvida,
depois de meio século. Bem ou mal, ressentimentos do passado não têm
atropelado assuntos de Estado, mas requerem um desfecho para que todos,
famílias, militares e a própria sociedade brasileira possam seguir em
frente.