Quinta, 13 de março de 2014
Comício da Central do Brasil: a proposta era modificar as estruturas sociais e econômicas do país. Entrevista especial com João Vicente Goulart
“O grande debate que se
impõe ao país é saber por que aconteceu o golpe. Não foi um golpe contra
o presidente João Goulart, e sim contra o povo brasileiro, que queria
reformas econômicas, as quais são necessárias até hoje”, diz filho do
ex-presidente Jango.
Foto: Carta Maior |
“O comício do dia 13-03-1964 foi o ponto do início e do fim do governo João Goulart”, avalia o filho do ex-presidente, ao relembrar o Comício realizado em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro,
há 50 anos, dias antes da deflagração do golpe militar no país. Cerca
de 150 mil pessoas estiveram presentes para ouvir as propostas das
chamadas Reformas de Bases do então presidente Jango. “O comício do dia 13 foi uma decisão política do governo João Goulart para propor as Reformas de Base, que consistia num programa de reformas para, sem dúvida alguma, modificar as estruturas sociais e econômicas do país”, afirma.
Para João Vicente Goulart,
“o maior comício que se fez em prol das mudanças sociais” no país foi
uma das ações que acelerou o golpe militar, que já vinha sendo
orquestrado desde 1954, mas foi adiado por conta do suicídio do
presidente Getúlio Vargas. “O comício foi um dos itens
dentro dessa programação. (...) Havia uma programação de vários comícios
em todo o país, para mostrar ao povo brasileiro qual era o teor das Reformas de Base, para que elas não fossem boicotadas pelo Congresso Nacional”, relata.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, João Vicente esclarece que Jango
não tinha relações com os comunistas, conforme as acusações da época, e
que sua reforma era capitalista. “A reforma agrária, um dos grandes
pontos de embasamento da nova estrutura econômica brasileira à época,
queria dar dez milhões de novos títulos de propriedades rurais, e isso
desenvolveria uma economia de dez milhões de tratores, dez milhões de
novas geladeiras, fogões, etc. Jango queria dar um título de propriedade
a dez milhões de novos proprietários. Qual é o marxismo de tudo isso?
Não existe marxismo nisso. Trata-se de uma reforma capitalista”.
Na avaliação dele, as reformas sugeridas
ainda são fundamentais para garantir o desenvolvimento do país e
assegurar melhorias sociais. “Temos de pensar um conjunto de reformas
para o país avançar, porque senão vamos, lamentavelmente, independente
de governo de ‘direita’ ou de ‘esquerda’, atingir um gargalo profundo de estancamento do desenvolvimento”, afirma.
João Vicente Goulart é diretor presidente do Instituto Presidente João Goulart.
Foto: Junka Fotos |
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que o comício realizado em 13-03-1964
na Praça da República, em frente à Central do Brasil, é relevante para
entendermos o golpe civil-militar de 1964? Qual o significado histórico e
político desse comício?
João Vicente Goulart – O comício do dia 13 foi uma decisão política do governo João Goulart para propor as Reformas de Base,
que consistiam num programa de reformas para, sem dúvida alguma,
modificar as estruturas sociais e econômicas do país. Esse seria o
primeiro de uma série de comícios a serem realizados ao longo de sua
gestão.
O governo João Goulart
se caracterizou por ter a maior agenda de propostas que esse país já
teve até hoje na história republicana. As reformas propostas pelo governo Jango
queriam libertar a economia brasileira da dependência externa, e isso,
evidentemente, feria os privilégios das elites brasileiras que existem
na nossa sociedade desde o período monárquico. As regalias que ainda
hoje detectamos em todos os setores e instituições da sociedade
brasileira, tanto na área jurídica quanto na área econômica, seriam
eliminadas por meio das Reformas de Base.
"O Brasil não tem mais para onde avançar se não mexer nas suas estruturas econômica, financeira e política" |
Com o comício do dia 13, Jango queria, junto e ao lado do povo, fazer as
reformas, porque alguns setores resistiam a isso, e havia, portanto, a
necessidade de fazer uma mudança constitucional. Mas o Congresso Nacional,
à época, já estava profundamente dividido. Parte das elites, pensando
nas eleições de 1965, não queria aprovar as mudanças constitucionais
necessárias para implantar as reformas. Jango,
então, parte junto e ao lado do povo, como ele diz no comício, “na
praça que é do povo”, para iniciar as reformas e pressionar o Congresso Nacional a aprovar as mudanças constitucionais necessárias. Assim, o comício do dia 13 foi o ponto do início e do fim do governo João Goulart, porque as elites já vinham se organizando no país, através da “compra” das redações de pequenos jornais, produzindo filmes anticomunistas, dizendo que Jango tinha relação com eles. Jango
nunca foi comunista, mas se criou uma ideia de que os comunistas iam
ocupar o país, quando, na verdade, quem estava conspirando contra a
pátria e a Constituição eram os militares e a elite arraigada na nossa
sociedade. Esse é o ponto principal do comício do dia 13. É o maior
comício que se fez em prol das mudanças sociais neste país.
IHU On-Line – Qual foi a
repercussão do discurso realizado no comício à época? Esse comício foi
fundamental para a deflagração do golpe?
João Vicente Goulart – O golpe já vinha sendo orquestrado desde 1954. Os militares não deram o golpe contra o presidente Getúlio Vargas,
porque, com o suicídio, ele conseguiu manter a democracia no nosso país
por mais dez anos. O golpe vinha sendo orquestrado contra o
trabalhismo. Quando Jango, como Ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas,
aumentou o salário mínimo em 100%, teve de pedir sua saída de forma
irredutível, porque ele sentiu que, se não saísse do ministério, o
manifesto dos coronéis, que depois vieram a ser os generais de 1964,
derrubaria o presidente Vargas. Mas, por meio do
trabalhismo, Vargas conseguiu aumentar o salário mínimo. Posteriormente,
Jango, em seu governo, já havia demonstrado que não tinha se afastado
dos trabalhadores brasileiros.
Quando ele aprovou o 13º salário, o jornal O Globo
disse que seria o fim da economia brasileira, numa manchete em primeira
página. Isso demonstra que o golpe já vinha sendo planejado contra o
trabalhismo e contra as obtenções das lutas trabalhistas e sociais no
país.
O comício se deu no momento político da Guerra Fria, quando Jango
decidiu partir junto com o povo. E os militares, que hoje chamam de
subversivos os que lutaram pela pátria — como vários documentos
demonstram —, foram os verdadeiros subversivos, pois subverteram a
Constituição brasileira e deram o golpe, derrubando um governo legítimo.
O comício foi um dos itens dentro dessa programação. Inclusive já
existem declarações de que o segundo comício das reformas seria
realizado em 21 de abril, em Belo Horizonte — essa informação está no livro de José Maria Rabelo,
lançado recentemente —, e hoje se sabe que também estava programado o
assassinato de todos aqueles que estariam no palanque nesse dia.
Havia uma programação de vários comícios em todo o país, para mostrar ao povo brasileiro qual era o teor das Reformas de Base,
para que elas não fossem boicotadas pelo Congresso Nacional. Nesse
sentido, o comício foi mais um dos fatores que acelerou a queda do
governo João Goulart.
Foto: CNTM |
IHU On-Line – Quais eram e o que
significavam as Reformas de Base anunciadas por Jango? Qual o objetivo
dele com essas reformas? Quais eram as mais urgentes?
João Vicente Goulart –
As principais reformas são institucionais, comerciais e políticas, as
quais são necessárias até hoje. Este país teve um atraso de 21 anos por
conta da ditadura: fecharam o Congresso Nacional, perseguiram homens, lutadores que batalharam pela liberdade. Jango,
naquele momento, queria reformar as estruturas sociais do país: fazer
as reformas agrária, tributária, urbana e educacional, a lei de remessas
de lucros, a encampação das refinarias e das riquezas do subsolo
nacional, ou seja, todas as reformas que mexeriam nas estruturas do
país.
Reforma capitalista
A reforma agrária, um
dos grandes pontos de embasamento da nova estrutura econômica brasileira
à época, queria dar dez milhões de novos títulos de propriedades
rurais, e isso desenvolveria uma economia de dez milhões de tratores,
dez milhões de novas geladeiras, fogões, etc. Jango queria dar um título
de propriedade a dez milhões de novos proprietários. Qual é o marxismo
de tudo isso? Não existe marxismo nisso. Trata-se de uma reforma
capitalista.
Mas as elites não queriam perder seus
privilégios e não queriam uma reforma bancária que melhor distribuísse o
crédito. Ainda hoje a reforma bancária é necessária. Os três maiores
bancos do nosso país tiveram, de 2007 a 2012, lucros líquidos de 56
bilhões de reais e sem a obrigação de financiar um centavo para a
agricultura familiar, para a habitação popular, para a educação. Tudo
isso fica por conta do Tesouro Nacional. Então, as Reformas de Base do
governo João Goulart estão atualíssimas.
Na edição de domingo do jornal O Globo,
na área de economia, estava estampada a remessa de lucros que as Teles,
privatizadas criminalmente, enviaram para suas matrizes.
Enquanto aqui ficamos falando com uma
gravação telefônica e não conseguimos falar com ninguém para fazer uma
reclamação, as Teles remeteram para as suas matrizes, em quatro anos,
quase 40 bilhões de reais. A reforma educacional, quando Jango
assinou a lei de diretrizes orçamentárias, destinava 12% do
investimento previsto da nação para a educação. Nunca neste país foi
proposto algo parecido.
Foto: Blog O Sarrafo |
Reflexão
A importância desses 50 anos do golpe
e desses 50 anos do comício é a passagem para a reflexão. Temos de
fazer uma reflexão profunda na academia. O grande debate que se impõe ao
país é saber por que aconteceu o golpe. Não foi um golpe contra o presidente João Goulart,
e sim contra o povo brasileiro, que, por meio do seu governo, queria
reformas econômicas, as quais são necessárias até hoje. O Brasil não tem
mais para onde avançar se não mexer nas suas estruturas econômica,
financeira e política.
Para pensar o Brasil, temos de entender por que o governo João Goulart
caiu. Se em 1964 era difícil fazer uma reforma agrária, quando 75% da
população morava no campo, hoje, que se inverteu esse valor, como fazer
uma reforma agrária e trazer as pessoas para a produção agrícola?
Não adianta mudarmos o pensamento, se não mudarmos a estrutura. Não adianta colocar no comando um governo de “esquerda” ou de “direita”, se não houver mudanças na estrutura econômica, social e financeira do país.
IHU On-Line - Como as Reformas
de Base foram recebidas no Congresso Nacional? Algumas das medidas
chegaram a ser implementadas? Quais?
João Vicente Goulart – Jango assinou a lei de remessas de lucros, que estava entre as medidas que poderia assinar como presidente da República; mas outras, não, como a lei da reforma agrária que, de acordo com a Constituição de 1946,
precisava que as áreas desapropriadas fossem pagas em dinheiro vivo e à
vista. Ele queria pagar em títulos públicos, mas naquela época isso não
era possível. Tanto que na mensagem que enviou ao Congresso Nacional em 20 de março de 1964 perguntou quais mudanças constitucionais eram necessárias para implementar as reformas.
"Não adianta colocar no comando um governo de 'esquerda' ou de 'direita', se não houver mudanças na estrutura econômica, social e financeira do país" |
João Vicente Goulart – Não foi só Brizola que o acompanhou. Estiveram presentes todos os líderes de esquerda que acompanhavam as reformas, como Darci Ribeiro, que era chefe da Casa Civil, o sindicalismo, os partidos de esquerda, como o PTB. A UDN e o PSD não participaram, porque já eram partidos pró-golpe.
IHU On-Line – O Brasil tinha condições de implementar as medidas sugeridas por Jango?
João Vicente Goulart –
Claro que sim, tanto que as propostas foram detectadas e eram uma
necessidade, como são hoje, para não continuarmos excluindo parte da
população. Mas nosso país tem uma elite privilegiada que vive como se
estivesse na Suécia, enquanto existem estados com índices de desenvolvimento humano comparados a Serra Leoa.
Para dividir as oportunidades das riquezas brasileiras entre todos os
seus filhos, é preciso pensar numa mudança que atinja a base da
pirâmide, e não somente os mais favorecidos.
IHU On-Line - A rebelião de marinheiros
ocorrida no Rio de Janeiro no dia 25-03-1964, a qual reivindicava o
direito de associação, melhores refeições nos quartéis e navios e
alteração do regulamento disciplinar da Marinha, demonstra uma cisão do
meio militar entre aqueles que apoiavam o presidente João Goulart e
grupos conservadores contrários às mudanças?
João Vicente Goulart – O problema militar no Brasil foi provocado. Temos de ver que existiam agentes da CIA infiltrados dentro do movimento dos marinheiros, como o cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos).
Temos de saber que existia um movimento dos cabos e dos marinheiros que
era legítimo, mas outros eram financiados pelas ações acobertadas do
departamento do Estado. Não tivemos, no Brasil, apenas um golpe dado pelos militares brasileiros. Eles foram financiados, como disse o embaixador Abraham Lincoln Gordon
em 2002, quando veio lançar, no nosso território, a sua autobiografia,
com o uso de cinco milhões de dólares de verbas secretas da CIA para “comprar” militares e políticos brasileiros. Ou seja, essa declaração demonstra o intervencionismo calhorda dos EUA na Constituição de outros países — e eles continuam fazendo isso.
Então, após um ano e alguns meses de
governo presidencialista, e da produção de vídeos contra o governo, é
evidente que havia infiltrações no meio militar e civil e mentiras que
foram escondidas. Recentemente foi publicada uma pesquisa do Ibope
— que estava “dormindo” em uma universidade paulista — informando que
30 dias antes do golpe havia sido feita uma pesquisa que demonstrava que
o presidente Jango tinha 89% de aprovação da opinião
pública. Se houvesse uma eleição, ele ganharia. Então, foi tudo uma
farsa e uma mentira da grande mídia. Como ainda se faz hoje. A mídia
brasileira é dividida — sete famílias controlam 90% da mídia no Brasil.
Trata-se de um subgoverno dentro do governo.
"A reforma do Estado brasileiro se faz tão necessária quanto há 50 anos" |
João Vicente Goulart – É evidente. E a sua popularidade não era somente entre os janguistas. Jango
representava, no momento da reabertura política, o rei caído. Ele
representava a queda da democracia brasileira. Foi contra ele que o golpe foi efetuado em 64.
O retorno à vida democrática passava pela revisão da sua queda. Ele
seria, sem dúvida alguma, o rei caído que estava do outro lado da
fronteira. Temos de ver que tudo isso nos leva a crer que a perseguição
em cima de Jango no exílio e o monitoramento através de
agentes de segurança foi uma resposta ao medo que o regime ditatorial
tinha da figura do presidente João Goulart.
IHU On-Line – Como avalia as políticas públicas
que vêm sendo implementadas no país ao longo dos anos, sem optar por
reformas estruturais, como previa o ex-presidente João Goulart?
João Vicente Goulart – O
processo da ditadura foi desastroso. Aquela política de vamos primeiro
fazer o bolo crescer para depois dividir, foi uma política criminosa de
achatamento salarial, baseada em um desenvolvimento fictício, porque foi
um desenvolvimento de 1969 a 73, feito em cima de empréstimos
internacionais. Quando Jango caiu, o país devia 980
milhões de dólares e, com mais alguns empréstimos, chegaria ao fim do
ano com um bilhão e cem milhões de dólares. Quando a ditadura entregou o
país novamente aos civis, em 1989, o Brasil devia 150 bilhões de dólares. Então, o desenvolvimento foi “o resto a pagar” que a sociedade brasileira teve de dar aos fundos internacionais. Isso atrasou o país.
Temos tido, nos últimos 12 anos, um
avanço na distribuição de renda, na incorporação de novos setores da
sociedade brasileira que estavam na camada mais baixa do orçamento
nacional. Obviamente, falta muita coisa a fazer para dar oportunidade
idêntica a todos os brasileiros. Acho que se fez muito; temos caminhado
bastante nesse sentido de integralização, de oferecer bolsas de estudos.
O sistema de cotas à universidade tem trazido camadas da população que
antes não frequentavam esse espaço. Apesar disso, a reforma do Estado
brasileiro se faz tão necessária quanto há 50 anos. É dever da academia
pensar no que foi proposto e em como sairemos de alguns gargalos, como a
reforma da previdência, que é uma necessidade neste país. A população
está cada vez vivendo mais, e vai chegar um momento em que o fundo
previdenciário não atenderá a todos. Então, temos de pensar um conjunto
de reformas para o país avançar, porque senão vamos, lamentavelmente,
independente de governo de “direita” ou de “esquerda”, atingir um gargalo profundo de estancamento do desenvolvimento.
(Por Luciano Gallas e Patricia Fachin)