quinta-feira, 27 de março de 2014

Gazeta do Povo

Republicanismo em xeque

Depois dos táxis, bancas de jornais também podem virar bens hereditários

Senado analisa projeto de lei que garante aos concessionários dos quiosques o direito de passar a seus herdeiros a propriedade da licença, que é pública
Publicado em 23/03/2014 |
O Senado pode ampliar nos próximos dias uma nova categoria de leis: as que garantem a particulares a propriedade hereditária de bens públicos. No ano passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou uma proposta do gênero, garantindo a taxistas o direito de passar a propriedade da licença para seus herdeiros. A presidente assinou a lei depois de muita relutância: havia vetado projetos do gênero em duas ocasiões. Agora, poderá ter de decidir sobre a hereditariedade de quiosques e bancas de jornais – outros bens concedidos pelo poder público para a exploração particular. A proposta deve ser votada em breve na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e, se passar, segue direto para a Câmara dos Deputados.

As duas propostas são de autoria do mesmo senador, Gim Argello (PTB-DF), que aproveitou uma brecha para apressar a votação dos projetos. Relator de uma medida provisória, o senador aproveitou para incluir no corpo da MP os dois projetos, que “pegaram carona” na tramitação. Especialistas, porém, criticam duramente a tendência, afirmando que se trata de uma afronta aos princípios da República.
Justificativa
É preciso amparar os familiares no caso de morte, afirma senador

O senador Gim Argello (PTB-DF) argumenta que a necessidade de transformar as concessões públicas em patrimônio hereditário se deve à garantia que o Estado precisa dar aos permissionários de que suas famílias não ficarão desamparadas no caso da morte dos concessionários. Na justificativa do projeto relativo aos quiosques e bancas de jornais, o senador afirma que os responsáveis por eles “são constantemente supliciados com a inexistência de uma garantia legal de que, com sua morte ou sua incapacitação, seus dependentes (...) não ficarão ao desamparo”.
A reportagem tentou contato com o senador Gim Argello para que ele respondesse às críticas feitas a suas propostas, mas não conseguiu respostas até o fechamento desta edição.

Venda de placas

O ex-senador Expedito Júnior (PSDB-RO), autor do projeto de transmissão de licenças de táxis, que já é lei, justificou à época que era necessário fazer uma regulamentação para impedir o comércio ilegal de placas. Segundo texto disponível no site do Senado, ele argumentou que a ausência de regulamentação estimularia o comércio ilegal da concessão de táxis.

Absolutismo
“Isso é uma prática que vem do absolutismo: o rei vende um cargo a alguém e garante sua transmissão ao longo do tempo para uma mesma família. Esse privilégio, no entanto, não pode subsistir em um governo republicano”, afirma Roberto Romano, professor de Ética e de Ciência Política da Unicamp. 

Para ele, os projetos de lei caem nos moldes do cartorialismo brasileiro. Durante séculos, os titulares de cartórios tiveram o direito de repassar aos filhos o seu “patrimônio”, embora ele fosse na verdade um bem estatal. A Constituição de 1988 estabeleceu a necessidade de concurso para a atividade cartorial. Mas em muitos casos eles ainda não foram feitos e continuam com as mesmas famílias.

Outro exemplo de como os políticos brasileiros “mantêm práticas absolutistas, enganando a República”, segundo Romano, é a ausência de licitações em outras áreas em que a Constituição exige a concorrência pública para determinar quem deve prestar o serviço. O caso típico seria o do transporte público. Muitas cidades jamais realizaram licitações e deixam o serviço nas mãos das mesmas empresas. A prefeitura de Curitiba, por exemplo, só fez a licitação há quatro anos, mas manteve as concessões com os mesmos grupos que já operavam o sistema. Na região metropolitana da capital, ainda não foram licitadas as linhas de ônibus. O mesmo ocorre no transporte de passageiros intermunicipal e interestadual.

“A Constituição é clara ao definir os princípios de moralidade e de impessoalidade. As concessões de bens públicos são personalíssimas. Mas, quando se transformam em bens hereditários, viram patrimônio pessoal”, afirma Caio Márcio Ávila, doutor em Direito do Estado pela USP. “O que está em jogo é o interesse público”, diz Luiz Edson Fachin, professor de Direito Civil da UFPR. “Numa República, a transmissão pela voz do sangue não pode falar mais alto do que o interesse da sociedade. Aquilo que é público pode ser concedido, mas a transitoriedade da concessão é obrigatória”, afirma Fachin. 

Estado garante privilégios e não a igualdade, diz especialista

A professora de Direito Público Misabel Derzi, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que, além dos problemas jurídicos, as propostas de transmissão de concessões públicas têm uma inconveniência econômica: são uma forma de concentração de poder e de riqueza. Segundo ela, o Estado brasileiro deveria estar se esforçando em sentido contrário, fazendo com que houvesse maior igualdade de oportunidades, e não garantindo privilégios.

“Essas propostas são inconcebíveis. O Estado brasileiro tributa mal a herança de bens particulares e agora vai permitir a transmissão gratuita de bens públicos”, afirma. Segundo ela, o caminho a ser tomado seria o de cobrar impostos maiores de quem transmite o patrimônio pessoal a seus filhos. A tributação sobre heranças tem porcentuais altos em vários países, diz ela.

Segundo a professora, as propostas também abrem precedente para que outros tipos de concessão mais valiosos também sejam tornados propriedade de famílias. “Se vale para quiosques, por que não pode valer para concessões de estradas, por exemplo?”, indaga.