Por que chamar a polícia de milícia?
Indagação foi ponto de partida de linguista para tese que originou livro publicado pela Editora da Unicamp
Em
2006, em meio à atuação das forças de segurança pública nas áreas de
favela do Rio de Janeiro com o objetivo de combater o narcotráfico,
começou a circular na mídia um novo nome para se referir à polícia:
milícia. O termo, define o dicionário, diz respeito à vida ou à força
militar; à força militar de um país ou a qualquer corporação sujeita à
organização e disciplina militares.
No entanto, a atribuição dessa
denominação à polícia naquele contexto remete a uma contradição,
relacionada às práticas adotadas por alguns policiais da corporação:
invés de efetuar procedimentos legais cabíveis (executar mandados
judiciais e prisões), alguns policiais incorporaram práticas ilegais -
como a expulsão e até execução sumária daqueles considerados inimigos -,
com o objetivo de se estabelecer o domínio nesse espaço.
Mais do
que isso, vencido o combate, a polícia, então denominada milícia,
passava a controlar ilegalmente as relações comerciais e sociais das
áreas de favelas, em nome do enfrentamento da criminalidade.
Esse
foi o cenário que levou a linguista Greciely Cristina da Costa a se
perguntar: por que chamar a polícia de milícia? A pergunta foi o ponto
de partida para uma pesquisa que resultou em sua tese de doutorado
defendido no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e, posteriormente,
no livro “Sentidos de Milícia – Entre a Lei e o Crime”, lançado pela
Editora da Unicamp.
“Meu objetivo não era investigar um discurso
da e sobre a criminalidade. Queria compreender o funcionamento da
contradição na sociedade a partir de discursos, cujos efeitos de sentido
derivam de certas condições de produção e significação”, explica
Greciely, que foi orientada pela professora e pesquisadora na área de
linguística Eni Puccinelli Orlandi.
Dubiedade em evidência
A
contradição, no caso, se manifesta nas fronteiras dúbias entre o legal e
o ilegal, caracterizadas nos modos de atuação policial, ao assumir o
controle das áreas favelizadas. “Diante dessa conjuntura social,
histórica, política e ideológica, o limite entre aquele sujeito
considerado bandido e o outro considerado criminoso é extrapolado a
ponto de seus sentidos tornarem-se indistintos”, aprofunda a
pesquisadora.
Assim, os sentidos de paz, proteção, ordem,
segurança, crime, lei etc. são os mais diferentes e apontam para uma
contradição. Ou para a existência de “dois mundos em um só”, nos termos
de Michel Pêcheux, filósofo francês, fundador da Análise de Discurso,
perspectiva teórica que norteia a pesquisa de Greciely.
Para
Pêcheux, uma palavra ou expressão não tem sentido intrínseco a ela.
Diferentemente, seu sentido se constitui nas relações que mantém com
outras palavras. O autor considera ainda que o sentido é determinado
pelas posições ideológicas. Estas, por sua vez, se constituem na relação
com a exterioridade, numa dada conjuntura sócio-histórica.
“Dentre
as múltiplas práticas de violência que temos acompanhado no Brasil e no
mundo, Greciely analisa algumas bastante sensíveis do ponto de vista
social, histórico e simbólico, justamente porque tratam de nossa
segurança”, analisa Eni Orlandi.
Em seu trabalho, complementa a
orientadora, a pesquisadora põe em cena a tensão entre o legítimo, o
legal e o ilegal. “É um trabalho que fala de sentidos que saem do lugar
quando o enquadramento do espaço é a favela, e o imaginário da segurança
e da criminalidade fazem funcionar o discurso da milícia”, conclui Eni.
Para
construir a pesquisa, Greciely se valeu de um conjunto diversificado de
fontes. Inicialmente, a pesquisadora se deteve sobre a compreensão do
modo como milícia era definida em diferentes discursos – o da mídia, o
de pesquisadores e o de moradores do Rio de Janeiro.
Depois,
incorporou à análise o discurso jurídico, enfocando algumas proposições
e leis aprovadas relacionadas à tipificação da formação e atuação de
milícias e investigou a forma pela qual a milícia era significada por
imagens na internet, além de definições em dicionários e enciclopédias
virtuais, como a Wikipedia.
Por fim, analisou entrevistas
realizadas com moradores das favelas e áreas controladas por milícias e
notícias publicadas nos jornais “O Globo” e “O Dia” que mencionavam a
palavra milícia, publicadas entre janeiro de 2005 e setembro de 2007.
As
entrevistas haviam sido realizadas por pesquisadores do Laboratório de
Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ). Tanto as entrevistas quanto as matérias jornalísticas foram
cedidas a Greciely pelo pesquisador Ignacio Cano, que integra o
laboratório, e havia usado esse material em seus estudos.
Uma dupla violência
Os
discursos dos moradores foram importantes para o delineamento da
pesquisa, assinala Greciely. Ela tomou contato com os discursos dos
moradores das favelas num artigo publicado por Ignacio Cano e Carolina
Ioot numa coletânea sobre o tema.
“Em um dos fragmentos
apresentados, o entrevistado relata que no meio dos policiais havia
milicianos, e que a comunidade ficava muito confusa, pois não sabia se
eles cumpriam o papel de polícia ou de milícia”, conta ela. Ou seja, a
confusão residia na dificuldade de distinguir como um mesmo sujeito
podia ocupar a posição de policial e miliciano, caracterizando uma
contradição.
Esse tipo de percepção, enunciada no discurso do
morador da favela, remete ao lugar difuso e ambíguo ocupado pelos
milicianos. Existem os policiais que, além de milicianos, são moradores
da favela – ou seja, são de “de dentro”, muitas vezes significados como
“protetor”, chamados pelos entrevistados de “polícia-morador”, que “toma
conta da comunidade”. Em contrapartida, há aqueles que vêm de fora,
denominado miliciano e significados como “invasor”, aquele que “toma a
comunidade”.
Outro entrevistado enfatiza a dificuldade de
distinguir polícia e milícia, enunciando repetidamente, segundo
Greciely, que “ninguém sabe dizer” o que é milícia e o que é polícia. Ao
final, ele conclui que os próprios milicianos são policiais.
Para
Greciely, este discurso remete ao que ela caracteriza como “lugar de
indistinção” ocupado pelo miliciano, pois ele é dois no espaço de um,
conforme analisa Eni Orlandi no livro “Interpretação: Autoria, leitura e
efeitos do trabalho simbólico”. A indistinção, que na fala aparece como
“ninguém sabe dizer”, estaria relacionada ao próprio funcionamento
ambíguo da milícia, podendo ser parafraseada por “ninguém pode dizer”.
Ou
seja, ninguém pode dizer que a milícia é formada por policiais,
constituída por agentes da Lei, do Estado. “Grosso modo é possível
afirmar que a milícia ocupa um lugar habitado pela duplicidade da
presença-ausência do Estado”, defende a pesquisadora.
Segundo
Eni Orlandi, a milícia assume, na análise da autora, “o lugar da
autoridade”, que pode significar a presença da segurança e, também é
“lugar do crime”, já que este deixa de ser considerado como o lugar do
criminoso, pois se aloja no lugar da autoridade.
“A criminalização do espaço da favela é correlata, desse modo, à imagem da milícia como prática de segurança”, ressalta Eni.
Essa
duplicidade caracteriza uma dupla violência contra os moradores das
favelas: a ausência e a presença do Estado. Novamente, é o discurso de
um entrevistado que aporta essa percepção.
“O lugar do morador é
marcado pela exposição à violência, pela dupla violência engendrada pela
presença-ausência do Estado, pela negação de direitos, pela imposição
de dispositivos normativos específicos que derivam da própria Lei, pelo
espaço de negações, cujos sentidos são atualizados por certos dizeres
sobre a favela face a um imaginário estereotipado, sustentado por uma
imagem marginalizante”, aprofunda Greciely.
Embora esteja no meio –
ao lado da impunidade e da violência, entre os sentidos embaralhados de
lei e de crime – o morador é um sujeito capaz de inventar, resistir e
de se deslocar conforme novos sentidos lhe são possíveis. A resistência
por parte do morador se configura quando ele procura escapar desses
sentidos, não significando seu espaço como favela, uma vez que dizer
favela é atribuir certos sentidos negativos a esse espaço.
Isso
acontece também quando a favela passa a ser chamada de “comunidade”, ou
“aglomerados subnormais” (para o IBGE), ou “bolsões de pobreza” (para os
especialistas). A troca de nomes, porém, não acarreta a mudança das
práticas. “A repressão é o que é oferecido ao morador, seja em que nome
ele se envelope”, afirma Eni.
Sentidos tênues e tensionados
A
partir da análise dos discursos, à luz das teorias e perspectivas
propostas por Michel Pêcheux e Eni Orlandi, a pesquisadora observou que a
milícia é interpretada como domínio -, ao passo que o termo controle é
associado à policia, e comando é vinculado ao narcotráfico.
Segundo
ela, a interpretação da milícia como domínio aparece tanto no discurso
dos moradores das favelas, quanto nos outros tipos de documento
analisados. Greciely explica que domínio dá sentido à milícia a partir
de duas instâncias: domínio arbitrário, imposto, forçado, violento, sem
possibilidade de oposição; e domínio instaurado como autoridade, gestor,
poder legítimo.
“Essas duas instâncias de significação em
confronto me permitiram compreender o quão difícil é suportar o fato de
que a milícia não se configura como um poder paralelo como é o do
narcotráfico. Ao contrário, é um desdobramento da polícia, que se forma e
atua à sombra do Estado”, analisa.
E como a milícia assume essa
configuração num espaço marginalizado como a favela, ela impõe seu
domínio, tornando-se invisível. “Ou melhor, tornando indizível essa sua
configuração, a sua real existência”. A decorrência dessa configuração
(de invisibilidade) é a dificuldade de puni-la, condená-la e bani-la, já
que é como se ela não existisse na realidade.
Trechos
Entrevistador:
Não sabe se os milicianos estão ali para cumprir seu papel de polícia
ou se estão ali para entrar. Depois que a milícia saiu, vê se meu
raciocínio está correto, o tráfico retornou.
Entrevistado: Retomou.
Entrevistador: E agora a polícia está fazendo essas incursões periódicas e tem esse posto lá.
Entrevistado:
Isso. Lá. Só que tem milicianos que frequentam no meio desses policiais
[sic]. Então a comunidade fica muito confusa. Você está me entendendo?
Fica muito confusa. Se ele está cumprindo o papel dele de polícia [sic]
ou de milícia.
*
Entrevistado:
Lá existe a milícia... o poder paralelo expulsou, né?... eu atuava na
comunidade, e lá cerca de quatro anos atrás a milícia expulsou esse
poder paralelo. Prontamente algumas pessoas morreram, e hoje eles fazem a
segurança do local.
*
Entrevistado:
[A milícia] É a mesma coisa; mesma coisa, só que pior porque o tráfico
não cobra e eles são piores que eles cobram, eles têm o império deles
lá.
*
Entrevistado:
Já colocaram eles como autoridade, tem essa referência – vou falar com
os meninos -, então a gente fica até assim, porque eu sou uma pessoa que
ainda acredita na instituição da polícia, entendeu? E nós somos muito
assim... sentimos muito a falta de autoridade dentro das comunidades,
entendeu? Em nossos bairros, em nossos municípios, eu acho que o que
está faltando é isso, essa autoridade, mas eu posso te dizer que a maior
ausência do Estado está na corrupção porque nós, na época que eu morava
lá, que o tráfico ainda existia, nós víamos contêiner entrando lá pra
dentro e muitas das vezes víamos viatura acompanhando, né? Infelizmente
essas coisas acontecem.
*
Entrevistado:
Continua em sem se ver [a polícia], só nessa forma de milícia. Você
sabe que são policiais militares, mas que não têm identificação nenhuma
de policiais militares e a polícia propriamente não aparece.
*
Entrevistado: [...] parece que você é vigiada 24 horas, você é monitorada.
Entrevistador: Por que você tem essa sensação?
Entrevistada: Porque eles vigiam muito as pessoas...
Entrevistador: Eles quem?
Entrevistada: Os milicianos (muda o tom, fica mais baixo).
Entrevistador: Mas eles se apresentaram pra você?
Entrevistada:
Eles se apresentaram porque eu tinha um trailer lá, tinha um negócio lá
e eles se apresentaram pra receber semanalmente o meu dinheiro. Na
época eles me pediram trinta reais por semana.
[...]
Entrevistador: Você fechou a sua barraquinha especificamente por causa disso?
Entrevistada: Por causa disso. Eu não aceito dar dinheiro a eles. Se você trabalha, você precisa receber, não pagar.
[...]
Entrevistador: Como é que eles resolvem essas coisas?
Entrevistada:
Quando tem alguma morte, eles matam alguém, alguma coisa, fica tudo...
você não vê nada, não sai nada na imprensa, as pessoas só sabem que
foram eles que mataram, mas fica tudo por isso mesmo...
[...]
Entrevistada: É uma máfia, um quartel a bem da verdade.
Sinopse:
Este livro se fundamenta teoricamente na Análise de Discurso e busca compreender o funcionamento da denominação milícia
em diferentes discursos tendo em vista o processo de produção de
efeitos de evidência posto em movimento pela ideologia. Ao longo da
compreensão empreendida, considerando a denominação enquanto mecanismo
ideológico, quatro pontos principais são observados: 1) em certa
instância, a denominação milícia recobre a violência policial
ao dar outro nome à polícia, desvinculando a milícia da instituição
policial; 2) por outro lado, é o lugar de policial que configura e
sustenta o sentido de milícia enquanto protetora; 3) todavia, ela tem
sua prática associada a grupos criminosos, por isso é então significada
como criminosa, um desdobramento da polícia; 4) e, por fim, a existência
da milícia estaria ligada a um espaço material político-simbólico
determinado: a favela, pois é nesse espaço que ela se impõe.
Autora:
Greciely Cristina da Costa é doutora em Linguística pelo Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Fez estágio
doutoral na Université de Paris 13. Tem publicado artigos e capítulos de
livros na área de Análise de Discurso. Organizou com Débora Massmann a
coletânea Linguagem e Historicidade, publicada pela RG Editores, e traduziu o livro Os pré-discursos: Sentido, memória, cognição, de Marie-Anne Paveau, pela Editora Pontes, também em parceria com Débora Massmann.