A autocracia palaciana do século XXI e a crise do Estado Democrático
De acordo com Roberto Romano, os políticos tornaram-se marionetes a serviço do poder econômico
Por: Andriolli Costa e Ricardo Machado
As semelhanças entre o Palácio do Planalto e os palácios da
modernidade não se restringem à nomenclatura. As práticas políticas, em
ambos os casos, ainda que separados por séculos, são ainda evidentes na
atual política nacional, como sugere Roberto Romano. “O núcleo duro (do
governo) é a miragem criada pela mídia para explicar o inexplicável. Em
vez de falar de cortesãos e palacianos, surge uma figura retórica que
não descreve de fato o exercício governamental”, critica Roberto Romano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“Quanto ao povo, embora nominalmente soberano, nada pode dizer na
condução das políticas públicas. Os proprietários do Estado no
Executivo, Legislativo, Judiciário exercem um regime que não é o
democrático, pois todos agem como autocratas”, sustenta.
Ao analisar a crise vivida pelo Partido dos Trabalhadores, Romano
mostra que há razões internas e externas que explicam a atual
conjuntura. “As segundas têm origem na crise mundial do Estado, que leva
à quase falência da política como atividade legítima de representação
popular. As primeiras residem no crescimento abrupto da agremiação em
poucos anos. Como ela não tinha unidade sólida em termos programáticos e
doutrinários, a sua chegada ao governo federal a levou, também por
carência de quadros, à perene coalizão na qual o Executivo é refém de
oligarquias que controlam o Congresso”, esclarece.
Além desses desafios, no sentido mais amplo, vivemos um momento de
fragilização e extinção das lideranças, resultado de um processo
histórico mais longo. “Na crise de governabilidade enfrentada pelo nosso
país, faltam lideranças. Durante bom tempo, após os regimes
totalitários que dominaram a Europa no século XX, houve uma grande
resistência às lideranças, sobretudo as carismáticas. Era o temor de ver
repetido o espetáculo genocida de massas lideradas por Egocratas”,
destaca o entrevistado. Em meio a este cenário, complexo e difícil,
Romano considera que até mesmo a esquerda parece ter perdido o rumo. “A
opção preferencial da esquerda, hoje, é o Estado, não a sociedade. Se
pelo menos houvesse da sua parte um equilíbrio entre compromissos de
poder oficial e formas de lutas sociais, ela teria mais gente ao seu
lado. Resulta que a direita assume lugares de mando, no Congresso e nos
executivos (no Judiciário ela é importante). E a esquerda pouco tem a
dizer para as grandes massas”, pondera.
Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes
Études en Sciences Sociales - EHESS, França, e é professor de Filosofia
na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Escreveu, entre outros,
os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São
Paulo: Kairós, 1979), Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009) e
Razão de Estado e outros Estados da razão - Coleção Debates – Filosofia
(São Paulo: São Paulo: Perspectiva,)
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as razões e raízes centrais da crise vivida pelo PT atualmente?
Roberto Romano - Antes de mencionar a crise do
Partido dos Trabalhadores, importa aclarar o próprio conceito de partido
político. Este último é a reunião de um número ponderável de pessoas
que propõem à sociedade mais ampla certo projeto de Estado e de
organização coletiva. Assim, um agrupamento conservador que considere as
instituições sociais, políticas e jurídicas desprovidas de controle e
disciplina, avança ideias moldadas em projetos de ordem e atenuação das
liberdades. Uma reunião progressista que julgue certa sociedade
excessivamente centrada nos privilégios de setores econômicos, propõe
que o Estado acentue os direitos coletivos, atenue ao máximo as
vantagens de alguns cartéis, classes, dirigentes do Estado. Tais
exemplos, muito abstratos, evidenciam, no entanto, a profundidade
exigida para chegar à fundação de um partido. Os integrantes do novo
organismo fazem um diagnóstico da vida societária, pesam as vantagens e
as desvantagens do sistema atual e propõem novas estruturas de produção,
economia, cultura, até mesmo de religião. O programa partidário é o
projeto, uma espécie de maquete do novo Estado e da nova sociedade. Se o
partido se limita a agir dentro do Estado e da ordem existente, ele
pode ser dito defensor de reformas. Caso ele julgue que todas as
estruturas sociais e de Estado devem ser substituídas, ele será dito
revolucionário. Pode ocorrer que um partido reformista faça eclodir
revoluções. Mas também pode ocorrer que partidos revolucionários no
início passem ao reformismo, ou mesmo reacionarismo. Não é preciso
rígida coerência lógica no programa, mas é tarefa inútil dele apresentar
um amálgama desconexo em termos políticos, jurídicos, econômicos,
sociais, etc.
Há um limite para a bricolagem de conceitos, ideologias, formulações
sociais, etc. Quanto mais setores de pensamento e de origem diversa
possui um partido, mais difícil é seu trato interno, mais árduo o seu
convívio no plano externo. Explicar para a sociedade um programa
socialista, liberal, conservador, reacionário é mais claro do que expor
um programa sincrético, onde elementos diversos são unidos mais pela
tática conjuntural do que pela estratégia de longo prazo.
A crise vivida pelo Partido dos Trabalhadores tem raízes endógenas e
externas. As segundas têm origem na crise mundial do Estado, que leva à
quase falência da política como atividade legítima de representação
popular. As primeiras residem no crescimento abrupto da agremiação em
poucos anos. Como ela não tinha unidade sólida em termos programáticos e
doutrinários, a sua chegada ao governo federal a levou, também por
carência de quadros, à perene coalizão na qual o Executivo é refém de
oligarquias que controlam o Congresso.
Na origem do partido encontram-se três formações diversas e, não
raro, conflitantes. A católica imaginava conseguir com o PT o seu
partido nacional. Nunca houve, na plenitude, um partido católico no
Brasil, apenas ensaios naquele sentido. O Partido Democrata Cristão, por
exemplo, integrado por pessoas retas como Plínio de Arruda Sampaio ,
foi pouco relevante. A Ação Popular (AP) foi outra esperança dos
católicos de esquerda. O movimento tinha fundamentos socialistas e se
nutria de noções hauridas em Teilhard de Chardin e nos conceitos
hegelianos que marcaram o labor intelectual do Padre Henrique Cláudio
de Lima Vaz, SJ . Com a repressão que sucedeu o golpe de 1964 e a virada
de parte da Ação Popular para o marxismo ateu, os católicos perderam
de novo a oportunidade de contar com um partido. O PT, fundado no
Colégio Sion de São Paulo, representou uma esperança para os religiosos
de esquerda.
No setor irreligioso, lideranças trotskistas sem massas entraram para
o PT e serviram como contraponto aos setores católicos e aos oriundos
da esquerda tradicional, como os egressos do Partido Comunista,
acostumados ao realismo político. Algumas alas trotskistas foram
alijadas do trato interno partidário, dele saíram ou foram levadas a
sair. Outras alas da mesma linha conviveram bem com a corrente
hegemônica do partido, comandado por Luiz Inácio da Silva. Vários de
seus integrantes ocuparam cargos importantes nos governos do PT.
Finalmente, eram importantes os grupos sindicais que tinham grandes
massas atrás de si, organizados em termos hierárquicos e burocráticos, o
que garantia os seus núcleos dirigentes. Boa parte destes últimos
ocupou ministérios no primeiro governo federal petista.
Querela das duas camisas
Um episódio hoje pouco recordado, mas significativo, é a querela das
“duas camisas” logo nos primeiros tempos do PT. Setores sindicais
católicos acusavam os movimentos da esquerda irreligiosa de possuírem
duas camisas, a de sua organização real e a do PT. A réplica que
receberam foi que também os religiosos tinham duas camisas, a do PT e a
da Igreja. Tal fato, embora superado e pequeno, mostra que a acomodação
interna sempre foi tensa. Em momentos graves, quando o PT foi acusado de
corrupção, como nos inícios da Ação 470 chamada de processo do
mensalão, o mal-estar das hostes religiosas era grande.
Intelectuais
Um setor relevante que integrou o partido é o formado por
intelectuais. De modo geral, eles representam várias posições
filosóficas, ideológicas, religiosas ou laicas. O nascimento do PT
coincide quase integralmente com a dissolução da URSS e de seus Estados.
Assim, o ideal programático do socialismo não podia seguir formas
ortodoxas, enleadas nos erros daquelas instituições. O conceito de
socialismo, no programa original do partido é bastante fluido e sua
diferença face ao marxismo criticado geralmente, residiu no adjetivo
“democrático” que lhe foi aposto. Os intelectuais foram de pouca valia
no aclaramento e solidificação lógica do programa. Eles ajudaram mais a
racionalizar atos dos dirigentes ou tendências, do que apresentar novos
rumos teóricos ao debate. Claro, em todo agrupamento social existem
exceções. Mas elas não foram suficientes para abrir novas sendas no
terreno do pensamento inovador. Muito foi dito sobre o PT ser “o novo na
política”. Pouco foi proposto para chegar a tal realidade. O fascínio
da agremiação entre universitários foi grande, sobretudo entre os jovens
estudantes. Não havia, nem há, pensamento hegemônico neste campo.
Acadêmicos católicos, protestantes, ateus, unem-se na defesa de uma
visão pouco homogênea de esquerda, com bases em teorias marxistas ou
heterodoxas em relação ao marxismo (como é o caso de Antonio Gramsci ,
G. Lukács , Michel Foucault , teologia da libertação , em variadas
versões, todas ameaçadas pela Cúria de João Paulo II e José Ratzinger ,
Claude Lefort e outros).
Líder
O líder inconteste de todas essas correntes é Luiz Inácio da Silva.
Formado na escola sindical, com prática de negociação entre patrões e
peões, aquele político conhece os segredos da diplomacia no trato
interno e com outros partidos. Sabe quando ceder e quando impor linhas
de ação. A elasticidade de sua prática extra corporis que incluiu
alianças com tradicionais inimigos da esquerda e do PT, como é o caso de
Antonio Carlos Magalhães , José Sarney e Paulo Maluf , para falar
apenas dos mais proeminentes, é reforçada por sua maestria interna,
sempre à busca da coesão das alas, até que a ruptura seja inevitável. A
sua liderança é uma espécie de cimento que permite a instável unidade do
partido. Ele é a única liderança nacional, não apenas do PT mas de todo
o país. Dentro da agremiação se destacam líderes regionais: Jacques
Wagner na Bahia, Tarso Genro no Rio Grande do Sul, Tião e Jorge Viana
no Acre, Fernando Pimentel em Minas e uma poeira de pequenas
lideranças em São Paulo. Não existe possibilidade de reverter tal status
e deixar o ex-presidente fora do comando nacional.
A carência de lideranças políticas nacionais não é um problema apenas
do PT, mas de todos os partidos que merecem o nome. Há uma grande
quantidade de siglas nanicas sem lideranças, submetidas a proprietários
que vendem acordos e apoios nos Parlamentos. Tais lojinhas de compra e
venda de votos não são partidos, pois lhes falta visão e programa de
sociedade e de Estado.
Oligarquização
A oligarquização dos partidos nacionais e do petismo segue a lógica
já enunciada por Max Weber e Robert Michels : o controle do partido
pelas cúpulas burocratizadas, sem real participação dos militantes nas
decisões vitais. O fenômeno também ocorre no PSDB e no PMDB. A cada dia a
juventude se afasta dos partidos, o que concorre para o estancamento
das lideranças nacionais. O movimento estudantil, que servia como
celeiro de lideranças, hoje é refém de algumas organizações partidárias
de esquerda ou extrema esquerda que disputam as máquinas sem vida dos
centros acadêmicos, diretórios, União Nacional dos Estudantes - UNE. Ele
não forma novos líderes, mas cumpridores de ordens partidárias. Antes
da ditadura existiam movimentos nacionais e internacionais que
preparavam lideranças, como é o caso da Jec , da Juc e da Joc entre
católicos e Juventude Comunista, além dos jovens quadros trotskistas. Um
erro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB foi coonestar a
repressão contra a Ação Católica juvenil, o que levou a Juc e a Jec a
se autodissolverem. Vozes heroicas como a de Dom Cândido Padim , que de
interventor se fez defensor daquela juventude, foram poucas na
Hierarquia. Com o fim daqueles movimentos, católicos ou laicistas, não
temos entre nós formadores coletivos de lideranças, o que se reflete nos
partidos. Quando vejo retratos da juventude deste ou daquele partido
nos jornais e revistas, vem-me aos lábios um sorriso melancólico. Muitos
“jovens” mostrados nas fotos têm os cabelos mais brancos do que os
meus.
Crise de governabilidade
Na crise de governabilidade enfrentada pelo nosso país, faltam
lideranças. Durante bom tempo, após os regimes totalitários que
dominaram a Europa no século XX, houve uma grande resistência às
lideranças, sobretudo as carismáticas. Era o temor de ver repetido o
espetáculo genocida de massas lideradas por Egocratas. Este termo foi
usado por Claude Lefort em seu livro Un homme en trop (Paris: Seuil,
1986) sobre Soljenitsine e o Gulag. Ele define bem o culto da
personalidade com Hitler , Stalin , Mussolini e depois com os arremedos
de tirania como na Coreia do Norte. O desastre motivou a preferência
pela direção política colegiada. No entanto, semelhante técnica sofre
críticas, dado que as lideranças colegiadas são frágeis e facilitam o
surgimento de lideranças contrárias à democracia, com o reforço de
movimentos ligados à extrema direita xenófoba. Seria importante refletir
sobre o papel dos líderes democráticos nos partidos políticos ou na
sociedade. O caso Luiz Inácio da Silva evidencia a carência de
lideranças nacionais, o que precisa suscitar pesquisas, análises,
sugestões para além da crise atual. Embora não concorde com tudo o que
ele diz, recomendo o livro bem urdido de Jean-Claude Monod : Qu’est-ce
qu’un chef en démocratie? (Paris, Seuil Ed.). Ali, o autor analisa as
noções de liderança, carisma, fenômenos totalitários e crises dos
partidos políticos. Ele põe os leitores diante de escolhas: democracias
falidas que não garantem conquistas populares, ou democracias nas quais
lideranças respondem de fato e de direito aos seus eleitores? O caso de
governos de esquerda que, ao chegar aos palácios aderem às teses
neoliberais e contrárias aos direitos dos trabalhadores é conhecido
devido à sua frequência e constância. Se a liderança de Luiz Inácio da
Silva não for considerada como a mais a correta, a verdade é que não
temos no Brasil muitas outras opções à esquerda ou à direita.
IHU On-Line - A figura de Lula ainda exerce centralidade na
ideia de refundação do partido? O que significa falar em “crise do
lulismo”? A “crise do lulismo” reflete no governo Dilma? De que modo?
Roberto Romano - Luiz Inácio da Silva tem papel
único no Partido dos Trabalhadores e na política nacional, sobretudo no
Palácio do Planalto. Pode haver uma refundação do partido. Desde a Carta
aos Brasileiros , sugiro aos poucos amigos que me restaram no PT um
congresso nacional para rever o programa do partido, pesar o que pode e
deve ser mantido e o que precisa ser atualizado, com presença hegemônica
da militância de base como instância decisória suprema. Não existiu tal
ação, as alianças, as candidaturas, enfim, as ações do PT passaram
gradativamente a ser ditadas pelas cúpulas e assumidas por Luiz Inácio
da Silva, que arcou sempre com o bônus e o ônus das candidaturas,
sobretudo as majoritárias. Ele garantiu a aprovação dessa política junto
às diversas bases militantes. O ritmo eleitoral sobrepujou ações para
encaminhar problemas sociais. Prejuízos grandes foram causados em campos
explosivos, como o dos direitos humanos. A situação indígena, insisto, é
um exemplo gritante de semelhante perda. Sou bastante cético diante da
possível refundação do PT, também porque os portadores de mando, na
agremiação petista, estão presos a compromissos vários de ordem
econômica, política, governamental, as famosas alianças, e não podem
aventurar uma empreitada que romperia tais laços. Políticos que ocupam
postos no Legislativo e Executivo dificilmente aceitarão o desafio. Se
as bases do petismo ainda tiverem força para obter tal façanha, o setor
liderado por Luiz Inácio da Silva será estratégico. Não creio que exista
uma “crise do lulismo”. Como enunciei acima, a crise é do Estado
democrático e dos partidos. O que se convencionou chamar de lulismo é
apenas um dos problemas que integra a incógnita mais complexa e de árdua
resolução.
Os procedimentos e formas de falar e agir do chamado lulismo podem
capitanear um novo governo? A questão, hoje, me parece imprudente. A
pergunta a ser feita é a seguinte: caso a economia desande, a inflação
volte aos números do período Sarney/Collor, os movimentos sociais não se
conformem com as receitas neoliberais em favor do capital financeiro, a
repressão policial siga o modus operandi aplicado nas manifestações de
2013 e da Copa, problemas gravíssimos como a questão indígena chegarem
ao genocídio (sinais precursores se apresentam, na pouco santa aliança
de ruralismo e Palácio do Planalto), haverá governo petista ou de
esquerda estável?
IHU On-Line - Em nome de uma Realpolitk, o governo abre mão
de princípios para buscar a governabilidade por meio de coalizões e
parcerias. Como você encara estas relações do ponto de vista da ética na
política?
Roberto Romano - O realismo é uma forma oportunista
de política abjeta. No caso dos realistas, temos o belo e pungente
artigo de Jean-Paul Sartre , “O que é um colaborador?”. Os que ajudaram
os nazistas na Europa e na França eram bons calculadores. Eles fizeram
suas contas e ajuizaram que servir aos fortes do momento seria mais
lucrativo porque salvaria suas vidas, as de suas famílias, manteria
empregos, cargos, etc. Mas o seu cálculo era imperfeito. Não entrou nele
o poderio militar norte-americano, a força bélica e ideológica dos
soviéticos, a resistência de setores importantes da população à tirania.
Eles ganharam migalhas do poder e perderam no todo da guerra. O mesmo
ocorre com os realistas. Eles calculam ganhar dinheiro de empresas,
bancos, ruralistas e usam como moeda de troca os direitos da população.
Eles ganham, mas seu cálculo é imperfeito. A indignação que atravessa o
Brasil, hoje, prenuncia o fim dos calculadores canhestros. José Genoino ,
no início do primeiro governo Luiz Inácio da Silva disse algo
verdadeiro: “chegamos ao governo, mas não ao poder”. O poder, hoje, é
representado pelo Ministro da Fazenda que promete cortes orçamentários
nas políticas públicas, incluindo aí o âmbito social e, mesmo, o
Ministério de Ciência e Tecnologia. Devido às contradições entre
partidos e interesses oligárquicos, o governo não consegue executar as
ordens do poder verdadeiro, emanadas do Financial Times e outros
porta-vozes da violência contra os trabalhadores.
IHU On-Line - Qual é o núcleo duro do governo hoje? O que ele representa?
Roberto Romano - O governo está sem planos e ação
tática ou estratégica seguras. O núcleo duro é a miragem criada pela
mídia para explicar o inexplicável. Em vez de falar de cortesãos e
palacianos, surge uma figura retórica que não descreve de fato o
exercício governamental. Os políticos (poucos) que cercam a Presidência
da República não têm nada de duro e pouco significam na política de
massas. São arrogantes marionetes nas mãos de interesses econômicos,
políticos ou supostamente religiosos. Todos os realistas compareceram ao
ato que inaugurou o “templo de Salomão”, máquina de arrecadar dinheiro
para os donos da Igreja que é, ao mesmo tempo, raiz de um partido
político. Eles se acostumaram a dizer “sim” ao ocupante da cadeira
presidencial e a ele apresentar um relato róseo da realidade. Nada que
não seja conhecido na imensa literatura sobre a bajulação que instrui o
mundo ocidental, de Plutarco a Erasmo de Rotterdam . O livro mais
necessário, para quem assume governos no Brasil é o clássico de
Plutarco: Quomodo adulator ab amico internoscatur (Como distinguir o
amigo do bajulador). Infelizmente o volume não está posto na cabeceira
dos nossos mandatários.
IHU On-Line - Como se estabelecem as relações de poder entre
um Estado desenvolvimentista, a burguesia progressista e o povo no novo
governo?
Roberto Romano - Os elos entre Estado
desenvolvimentista e burguesia nacional foram expostos num programa
veiculado pela CEPAL nos anos 60 do século passado. O governo Dilma
apostou em parte naquele programa. Mas esqueceu que o patrimonialismo
rege a prática de número significativo de nossos empresários. Aqui,
empresas abrem falência, mas seus proprietários perdem muito pouco. Se
tivéssemos de fato uma política desenvolvimentista — com todos os
prejuízos que ela traz para a vida social, ecológica, etc. —, haveria
uma aplicação estratégica em Ciência e Tecnologia. Os dados sobre o
ministério encarregado do assunto são eloquentes. Como primeiro passo
dos cortes orçamentários em operação, as universidades federais têm
recursos retidos. É uma resposta aos reitores realistas que, contra a
lei, assinaram manifestos em prol da candidatura Dilma. A resposta é
dura, merecida pelos gabinetes de suas Magnificências, mas lesiva aos
interesses nacionais. Luiz Inácio da Silva prometeu, no início de seu
primeiro mandato, que ao final de quatro anos cerca de 4% do PIB seria
aplicado em Ciência e Tecnologia. A consulta aos dados mostra uma
promessa não cumprida.
Fala-se muito em inovação tecnológica, mas o único programa coerente,
no campo, é o dirigido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo - Fapesp. A FINEP, que possui quadros de comprovada excelência
na sua direção atual, anuncia grandes inversões no programa de
inovação. Com os cortes, cuja radicalidade ainda é desconhecida, tais
anúncios podem girar no vazio.
Não temos uma política desenvolvimentista plena, nem uma política
neoliberal plena, nem uma política econômica plena: temos retalhos de
política sem coerência, com empresários e administradores a quem falta
visão do país e do mundo. Na costumeira postura de nossos proprietários,
eles querem lucros imediatos sem inversão de capital próprio, mas do
governo.
Este último, por sua vez, não proporciona estabilidade jurídica, muda
regras de instante a instante, ajudado pelas autoridades judiciais.
Quais são os frutos jurídicos dos assaltos aos bolsos dos cidadãos,
gerados pelos planos Cruzado, Collor, etc.? Procrastinação dos
tribunais, para não prejudicar bancos, eis o que é efetivo. Quanto ao
povo, embora nominalmente soberano, nada pode dizer na condução das
políticas públicas. Os proprietários do Estado no Executivo,
Legislativo, Judiciário exercem um regime que não é o democrático, pois
todos agem como autocratas.
IHU On-Line - Frente a este cenário, qual o lugar dos ideais de esquerda hoje no Brasil?
Roberto Romano - A esquerda sofre uma série de
mazelas, umas curáveis, outras não. A primeira já mencionei acima.
Trata-se da confusão entre planos pessoais ou grupais de poder e de
escalada social, que atinge parte considerável dos partidos e rompe
programas alardeados. Na praça, como diz Norberto Bobbio , a esquerda
promete liberdade, igualdade, fraternidade. No palácio, a liberdade é
concedida ao capital financeiro e suas “lições de casa”, a igualdade se
limita aos poderosos do mercado e da política, a fraternidade é com os
milhões de moedas que garantem vitória em processos eleitorais. A
crônica não é apenas brasileira, ela se repete na França dos
“socialistas”, na Itália, em Portugal, na Alemanha, etc.
Uma lição pode ser haurida na imprensa de esquerda. Anos atrás o
jornal Libération fez uma pesquisa no chamado “cinturão vermelho” de
Paris, onde moram líderes operários de esquerda. Chamou minha atenção a
entrevista de antiga líder socialista que lutou na Resistência e sempre
se manteve firme no apoio à esquerda. O espantoso é que ela iria
votar... em Jean-Marie Le Pen . O jornalista, assustado, perguntou as
razões da anomalia. A resposta deve servir como advertência para todos
os que se dizem de esquerda: “nós lutamos por eles (os socialistas no
poder). Eles, no governo, se uniram aos empresários e banqueiros.
Tiraram nossos salários e nossos empregos. Pedimos para falar com eles.
Nunca fomos recebidos. Fizemos greve. Eles mandaram a polícia nos
reprimir. Eles aplicam uma política de direita, se dizendo de esquerda.
Mentem e batem. Como, diga, podemos dar-lhes novamente confiança? Le Pen
promete salvar empregos franceses. É ruim, mas é bem mais do que os
ditos socialistas fazem”. Raciocínio similar foi feito por muitos
operários alemães diante do enrijecimento burocrático e autocrático da
Social Democracia. À repressão patrocinada por ela, a única resposta dos
desempregados e antigos aderentes da esquerda foi votar nas extremas
direitas, a nazista entre outras. A confiança e o apoio da população é a
única arma da esquerda. Quando, por “realismo”, ela abraça líderes de
direita, adota planos de “estabilidade” que prejudicam a população, tal
arma se torna inexistente. Em entrevista ao excelente programa Faixa
Livre, ao ser perguntado por Paulo Passarinho sobre o novo perfil
conservador do Congresso, respondi: “Quem semeia ACM, Sarney, Barbalho,
Maluf, colhe Bolsonaro”. Na crise, os donos do mercado não apoiam seus
parceiros de esquerda, preferem condutores de direita para o governo e a
economia.
Além do realismo, outra mazela da esquerda encontra-se nos ideários
obsoletos. Num país onde índios são mortos como mosquitos por capangas
de fazendeiros, onde mulheres são mortas e batidas, onde crianças são
violentadas, onde os direitos dos trabalhadores sofrem graves cortes,
onde a violência policial destrói vidas e esperanças, os programas de
esquerda são focados na obtenção de lugares nos parlamentos, nos
executivos, etc. A opção preferencial da esquerda, hoje, é o Estado, não
a sociedade. Se pelo menos houvesse da sua parte um equilíbrio entre
compromissos de poder oficial e formas de lutas sociais, ela teria mais
gente ao seu lado. Resulta que a direita assume lugares de mando, no
Congresso e nos executivos (no Judiciário ela é importante). E a
esquerda pouco tem a dizer para as grandes massas.
Os movimentos de 2013, no Brasil, não tiveram continuidade justamente
porque os setores de esquerda, adoecidos de estatismo, foram percebidos
como integrantes dos palácios e recusados pelos manifestantes. Mas sem
organização partidária as massas seguem para a violência e se perdem no
cotidiano. Um alvo estratégico seria unir os manifestantes brasileiros
aos que, no mundo (o Podemos é um deles apenas) se levantam contra a
política tradicional. Na falta do elo entre esquerdas e movimentos, a
propaganda oficial, a repressão bruta, o doutrinamento pelas novelas e
programas como o Big Brother, anestesiam a opinião pública. A grande
esquerda e a centro-esquerda (situadas no PT, no PSDB, no PDT) têm
massas eleitorais, mas não massas de luta diária pelos direitos. A
esquerda mais radical (o PSOL, o PCB e outros) não tem massas,
simplesmente. Discorri sobre o problema em longa entrevista à Rádio e
Televisão da Unicamp, vídeo que pode ser acessado no seguinte endereço:
rtv.unicamp.br, programa Palavras Cruzadas, “O Brasil em perspectiva,
depois dos indignados de junho de 2013”.
IHU On-Line - Estamos vivendo uma crise ética generalizada
nas instituições de Estado? De que forma isso incide na vida da
população?
Roberto Romano - Os nossos parlamentares,
executivos, magistrados, representam um Estado anacrônico que ainda hoje
é símbolo da Contrarrevolução do século XIX. Nela, a soberania popular
foi afastada ao máximo. E foram estabelecidos prerrogativas e
privilégios dos agentes estatais contrários à república e à democracia.
Estamos em regime pior do que o Absolutismo. Nele, o rei comprava o
apoio dos nobres e do clero com privilégios. Mas nunca existiu o
seguinte fato: o Estado manter as carruagens dos duques e cardeais.
Estes últimos deveriam arcar com aquelas despesas. Aqui, do vereador ao
senador, passando por ministros, secretários, juízes, todos têm sua
carruagem paga pelo “povo soberano”. Além disso, enquanto não for
normatizado o lobbie, nossos políticos nada mais são do que lobistas na
pele de representantes populares. Quando se ouve dizer em “bancada X ou
Y”, sabe-se de antemão que se trata de lobbies destinados a defender
acima de tudo interesses econômicos, políticos, religiosos. O costume de
legislar em causa própria já se transformou em hábito (ética...) dos
que ocupam cargos no Estado. Temos muito a mudar para chegarmos ao
direito de nos definir como república federativa democrática. Se
quisermos democracia no Poder Judiciário, devemos lutar para que os
juízes e promotores sejam eleitos pelo povo soberano.
Os erros e as qualidades das eleições para os cargos de juiz podem
ser analisados com a experiência de outros países, como os EUA.
Insuportável é a existência de uma corporação que despreza “os leigos” e
se julga acima dos “cidadãos comuns”. Insuportável é o modo pelo qual
hoje são escolhidos os integrantes do STF. A sabatina no Senado é menos
do que pro forma. É um insulto dirigido aos cidadãos. Todos se recordam
do exame senatorial em que uma juíza foi elogiada... por sua elegância
no vestir e não pelo que tinha no cérebro. Há um site norte-americano
que examina com profundidade as eleições para juízes. Antes de avançar
juízos temerários de valor do seguinte calado: “se os juízes forem
eleitos, haverá interferência política na escolha”, é preciso bem
analisar os fatos que definem os elos entre nossos poderes. As atuais
maneiras de indicar magistrados têm muito a ver com a política, a mais
eivada de autocratismo e antidemocrática.
IHU On-Line - Tendo em vista nossa conjuntura, que Brasil teremos nos próximos quatro anos?
Roberto Romano - Haverá alguma estabilidade nos
próximos quatros anos? No futuro, dizia um teórico importante, todos
estaremos mortos. Que Deus nos proteja.
Leia mais...
- O direito à igualdade como o direito à felicidade. Entrevista com Roberto Romano, publicada na edição 449 da IHU On-Line, 04-08-2014;
- Roberto Romano, uma vida atravessada pela história. Perfil de Roberto Romano, publicado na edição 435 da IHU On-Line, 16-12-2013;
- A gênese golpista da Constituição. Entrevista com Roberto Romano, publicada na edição 428 da IHU On-Line, 30-09-2013;
- “Somos absolutistas anacrônicos. Vivemos sempre sob o regime do favor, dos privilégios, da não república”. Entrevista com Roberto Romano, publicada na edição 398 da IHU On-Line, de 13-08-2012;
- Filosofia não é, necessariamente, sistema. Entrevista com Roberto Romano, publicada na edição 379 da IHU On-Line, 07-11-2011;
- Niilismo e mercadejo ético brasileiro. Entrevista com Roberto Romano, publicada na edição 354 da IHU On-Line, 20-12-2010;
- De ditadores a imperadores com pés de barro. Entrevista com Roberto Romano, publicada na edição 269 da IHU On-Line, 18-08-2008;
- O governo do Brasil retoma a ética conservadora e contrária à democracia, o que exige da Igreja o papel vicário. Entrevista especial com Roberto Romano, publicada no sítio do IHU em 14-01-2008.