Seminário Liberdade de Expressão, Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Unicamp, 19/03/2015.
Claudio Willer - Márcio Seligmann Silva- Roberto Romano da Silva
Agradeço aos colegas o convite para integrar esta mesa com
acadêmicos prezados por mim, dos quais
leio análises com proveito. E sou grato pelo tema. Falar em liberdade de
expressão supõe, por óbvio, pensamentos a serem externados. Segundo Spinoza, pensar
é pensar diante dos outros sem impedimentos de ordem física ou moral. Deus ou
natureza é substância infinita, poder puro. Nela existem infinitos modos dos quais conhecemos
dois, porque nos formam: o pensamento e a extensão que não se confundem. O
pensamento é autônomo em relação ao espaço e vice-versa. Se alguém deseja impor
uma noção e usa o constrangimento físico,
fracassa porque não atinge a fonte do pensamento que é Deus ou natureza. Se também os corpos são dominados, trata-se de
algo temporário, porque a sua força
infinita vem de Deus ou natureza. Presos, os homens cedo ou tarde quebram cadeias.
Se os governantes
desrespeitam a força natural divina (pensamento e corpo), ultrapassam os limites do direito natural e arruinam o Estado. Quanto mais reprimem, mais
temor inspiram. O medo é tristeza (Ética, III/18-Escólio 2) que implica
em ódio contra quem tememos. Ele gera a indignação geral, as paixões que instauram
a sociedade política e pode causar o seu fim. (Tratado Político III/9 e
IV/4). Quando a maioria se indigna pelo
mal feito a alguns ou muitos, une-se contra o dirigente. “Quando se trata de
medida que provoque indignação geral, obedecendo a sua natureza os homens
unem-se contra ela devido ao medo comum ou desejo de vingança de algum
malefício. Como o direito da Cidade é definido pela potência da multidão, é
certo que força e direito da Cidade diminuem (com a revolta,RR), pois foram fornecidos
motivos para uma liga conspirativa. A Cidade enfrenta perigos e deve temê-los; como no estado
de natureza um homem que depende apenas de si mesmo mais razões tem de temer,
também a Cidade pertence menos a si mesma quanto mais tem a temer.”
A natureza humana não suporta ser
constrangida. Como diz Sêneca o Trágico : “ninguém exerceu muito tempo um poder
violento, o poder moderado perdura”. Se os homens agem por medo, fazem o mais contrário à sua
vontade e não consideram o útil e necessário da ação. Eles se preocupam em
salvar a cabeça e não se expor aos suplícios. Bem mais, é-lhes impossível não
sentir prazer com o mal e com o prejuízo do governante que tem poder sobre eles,
mesmo em seu detrimento, não lhe desejar malefícios ou fazer-lhe tanto mal
quanto possam. Nada é mais difícil enfim, do que arrancar dos homens uma
liberdade após tê-la concedido”.
O coletivo institui
um poder que pertence ao todo, para que
todos obedeçam a si mesmos. Se o poder pertence a alguns ou a um só, este
último deve ter algo superior à natureza humana, ou pelo menos deve
se esforçar para fazer com que o vulgo creia nisso. (Peço que seja
retida esta frase, estratégica quando se trata da retórica do poder). As leis
devem ser estabelecidas no Estado para que os homens sejam contidos menos pelo
medo do que pela esperança de algum bem particularmente querido. Assim, cada um
cumprirá seu mister com ardor. Como a obediência consiste no fato de cumprir ordens por submissão à autoridade do
chefe que comanda, ela não tem lugar numa sociedade onde o poder pertence a
todos e onde as leis são postas por consentimento comum. Numa sociedade assim,
ou em outra, as leis aumentem em número ou diminuam, o povo é livre igualmente
e não age por submissão à autoridade alheia, mas por seu próprio consenso.
Ocorre algo diverso quanto um só detem o poder absoluto. Então todos, sem
exceções, executam as ordens por submissão à sua autoridade. A
menos que os homens sejam amestrados desde o princípio a ficarem presos à
palavra do chefe que comanda, será muito difícil para ele, em caso de
necessidade, instituir leis novas e arrancar do povo uma liberdade concedida
certa vez”. (Peço que também esta passagem seja retida, dada a sua
importância). Urge sublinhar a diferença, para Spinoza, entre conhecimento real
e opinião. Ambos devem ser livres e expressos sem constrangimentos. Mas a
ciência assegura o seu objeto. A opinião e o imaginário não chegam à
estabilidade. Se os homens conhecessem de modo científico o útil e o necessário
no Estado, ninguém praticaria ou deixaria de detestar o dolo: “todos
observariam com rigor os pactos com a maior fidelidade, por desejo do bem
superior –a conservação da república– e guardaria a fé prometida acima de tudo,
pois esta é a muralha mais forte do Estado”.
Os homens não vivem sob a razão, seguem a paixão. Repousar
na boa fé dos outros é perigoso porque todos usam astúcia e dolo. Só é possível
assumir um pacto coletivo que instaure o Estado se a massa partilhar “a força
de alguma paixão comum : esperança, medo ou desejo de vingança por algum dano
sofrido em comum”. (Tratado Político, 6, 1). ([1])
O direito político equivale ao natural : “O direito do poder público é apenas o
direito natural definido pela potência não de cada um dos cidadãos, tomados um
a um, mas da massa conduzida por um mesmo pensamento (…) O homem, no plano
natural e no civil, age segundo as leis de sua natureza e vela por seus
interesses, pois em cada um destes estados é a esperança ou medo que o conduz a
fazer, ou não, isto e aquilo. A diferença entre os dois estados é que no civil
todos têm os mesmos temores e a segurança vem para todos das mesmas causas, a
mesma regra de vida comum, o que não suprime a faculdade de julgar,
própria a cada um. Quem decidiu obedecer as injunções da cidade, por
temer sua potência ou amar a tranquilidade, vela por sua própria segurança e
guarda seus interesses próprios”. (Tratado Político, 3,1-2). ([2])
“Os atos aos quais
ninguém pode ser determinado por promessas ou ameaças, não caem sob o direito
do Estado. Ninguém pode alienar a sua capacidade de juízo. Usando quais
recompensas, ou promessas, levaríeis um homem a acreditar que o todo não é
maior do que sua parte, ou que Deus não existe, ou que o corpo finito que ele
enxerga é o ser infinito, e geralmente a crer o contrário do que sente e pensa?
E por quais recompensas ou ameaças o decidiremos a amar o que odeia e odiar o
que ama? Digo o mesmo dos atos pelos quais a natureza humana sente repugnância
tão viva que os considera como os piores males, como prestar testemunho contra
si mesmo, torturar os parentes, não se esforçar contra a morte, e coisas contra
as quais nada podem ameaças ou recompensas. Se disséssemos que o Estado tem o
direito ou poder de comandar tais atos, só poderia ser no sentido igual ao que
usamos quando dizemos que alguém possui o direito de enlouquecer ou delirar. Um
direito que a ninguém obriga, não seria delírio? ”. ([3])
Entre os traços fundamentais do Capítulo 20 do Tratado
Teológico Político encontra-se a tese da liberdade para pensar, escrever,
agir. ([4])
Como garantir tais direitos se o Estado tem segredos para com os cidadãos e
segue a política dos arcana imperii ?
A razão de Estado incorpora o segredo para garantir o palácio, lugar onde não
são admitidos os homens comuns. ([5])
O secretário (o termo é marcado pela própria palavra do segredo) e o governante
ocultam o que for possível aos que não têm acesso aos gabinetes. E precisam descobrir o que estiver além das
fronteiras de seu Estado ou na mente dos dirigidos. O governante acumula
segredos e deseja que os súditos sejam expostos à luz perene. Vence a
heterogeneidade entre governados e dirigentes. Nos tempos modernos “a verdade
do Estado é mentira para o súdito; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes
de governar acompanham e ampliam um movimento político (…) que separa o
soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é
inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) que constitui o poder
moderno.” ([6])
Agora apresento um exemplo que resume o que enuncia Spinoza,
a liberdade de pensar e dizer e o segredo que perverte o direito natural e
civil e a república. Entre os dias 6 e 8 de agosto, ano da graça de 1945, os
Estados Unidos da América lançam sobre Hiroshima e Nagasaki duas bombas
atômicas, uma chamada “Garotinho”(Little
Boy) e a outra, “Homem gordo”(Fat Man). Sucumbiram cerca de 166 mil
pessoas em Hiroshima e 80 mil em Nagasaki. O segredo das experiências
preliminares do invento foi completo. Feita a matança, como justificá-la ao
mundo e aos cidadãos norte-americanos? A indústria da mentira, Holywood, é
convocada para servir à razão de Estado, justificar o injustificável. A partir
de 1945, centenas de filmes com temática nuclear foram apresentados ao público.
No começo, boa parte das películas, não fabricadas nos Estados Unidos,
apresentaram visões que convidavam ao pensamento crítico. É o caso de Akira
Kurosawa, “Rapsódia em Agosto”, de Shohei Imamura “Chuva Negra”, Alain Resnai,
“Hiroshima, meu amor”.
Para exorcizar as imagens do horror efetivo, Holywood
inventa horrores fantásticos, com narrativas fantasiosas de presentes ou
futuros ataques nucleares contra a Terra Santa, digo, Estados Unidos, calando
sistemáticamente o cometido no Japão pelos artefatos atômicos. O silêncio e a
distorção, é óbvio, foram programados industrialmente. Tomemos um só daqueles
filmes, cuja direção de fato ia dos estúdios de Holywood ao gabinete oval da
Casa Branca. O nome da obra de arte chama-se “O início do Fim”, da MGM. O ano
da graça é 1947. A tese ? A bomba foi necessária para acabar a guerra e salvar
vidas norte-americanas.
O roteiros iniciais sugeriam dúvidas sobre os atos do Estado
Santo, digo, Estados Unidos. Neles, Hiroshima aparecia como terrível chaga,
incluindo rostos de crianças queimadas. O tom era de apoio ao pacifismo de
alguns cientistas “arrependidos”. A censura logo chega e o roteiro muda
radicalmente. De obsceno ataque contra a humanidade, o ato norte-americano
passa a ser elogiado e as imagens recebem uma distorção anamorfótica: nenhuma
vítima aparece, só uma paisagem de fogo no horizonte sugere a façanha.
Cientistas são convencidos a cooperar com a nova empresa, a de vender terror
atômico como ato humanitário. Robert Oppenheimer visita os estúdios e recebe
garantias de que a película iria exibir humilde e benevolente “amor da
humanidade” pelos santos que dirigiam os EUA. Começa o processo de
holywoodização da bomba, no dizer de um analista de quem retiro estas
considerações.([7])
O filme justifica o genocídio nos menores detalhes. Até foi
inventada uma série de “perigos” nas peripécias vividas pelos heróicos
aviadores norte-americanos, na ida até Hiroshima, para aumentar a sensação, no
público norte-americano, de seu valor heróico. No centro do filme, a mensagem:
um belo e jovem cientista, Matt Cochran, impede que uma reação em cadeia mate
40 mil pessoas numa ilha do Pacífico. Ele se expõe à forca nuclear e morre. Ao
deixar este vale de lágrimas, o benemérito exclama sobre a nova arma letífera :
“Deus não nos mostrou um meio novo de nos destruir. A energia atômica é a mão
que ele nos estendeu para nos arrancar das ruínas da guerra e iluminar os
fardos da paz”.
Mas o melaço ainda não estava de boa espessura e tamanho
para agradar os lábios do público. Certos intelectuais cumprem perfeitamente a
tarefa de conduzir a massa popular, porque não acreditam em algo como opinião
pública e liberdade de exprimir idéias. Um exemplo é Walter Lippmann que
julga a "opinião pública" como se ela fosse apenas um fantasma. Este
caráter fantasmagórico viria, segundo ele, do seguinte fato: a opinião dos
cidadãos jamais atinge o estatuto de um verdadeiro juízo lógico, apenas
manifesta um ponto de vista privado e limitado sobre a realidade social e
política. Assim, diz ele, a democracia não tem como alvo garantir um espaço em
que se desenvolva a opinião pública. Tal opinião, ao contrário, é obstáculo a
ser vencido. É preciso que ela seja administrada por meio de procedimentos
calculados que forneçam a identidade de atos mentais do povo, ditados pelo
governo: "a fabricação dos consensos será o objeto de refinamentos
substanciais (...) graças aos meios de comunicação de massa", diz o mesmo
Lippmann em seu livro famoso, Public
opinion. Walter Lippmann, ao assistir as prévias do filme,
adverte o presidente Truman: ainda resta no roteiro “uma cena chocante”. Ela,
acrescenta, pode desgraçar a imagem dos Estados Unidos porque apresenta Truman
decidindo sobre o uso da bomba. Frase fatal dita pelo presidente : “penso mais
em nossos garotos americanos do que em todos os nossos inimigos”. Lippman sabe
que a frase de Truman é a mais pura verdade. Mas ela traz problemas à política
interna e externa de seu país no pós-guerra. O roteirista
apaga a cena e a substitui por outra na qual o bondoso presidente revela ser a
bomba um modo de encurtar a guerra e salvar vidas. Caso o lançamento fosse
adiado, algo em torno de 500 mil jovens vidas norte-americanas (the America’s
finest youth...) seriam perdidas nas batalhas. E o Chefe de Estado mente com
desfasçatez ao dizer que os alvos escolhidos o foram por seu valor militar. Os
referidos pontos foram assumidos por que seria possível, neles, demonstrar o
poder aterrizador do novo instrumento. O efetivo é que foram alvejados os
centros urbanos sem interesse militar.
Informado da mudança na cena, Lippmann narra aos
funcionários e cientistas presos à Casa Branca que “a crítica suficientemente
drástica causou seu efeito nos produtores do filme”. Mesmo assim outros cortes
foram feitos, como nas cenas em que alguns cientistas, santos ou hipócritas,
diziam ser prudente demonstrar o efeito da bomba ao governo japonês numa região
desabitada. Em correspondência com o ator que o representou na filme, Roman
Bohnen (que foi trocado por outro, devido às suas críticas ao filme e à
política estadunidense), o presidente Truman afirma: “não tenho nenhum problema
em relação ao que foi feito”.
A imprensa norte-americana, como recebe a película? A
revista Time aponta as enormes imbecilidades passadas ao público. Já o
periódico Variety elogia “sua aura de autenticidade e especial
significado histórico”... Harrison Brown, que trabalhou no projeto da bomba,
apresenta os erros grosseiros do filme no The Bulletin of Atomic Scientists. Ele
o chama de “a mais horrível falsificação da história”. The New York Times canta lôas ao
filme e o colunista Bosley Crowther fala sobre “credibilidade”, ao proclamar
que a película “não assume óbvios lados na polêmica atual sobre a energia
atômica”. O filme é assistido por norte-americanos aos milhares e milhares. E a
grande maioria sai das salas de projeção beatificada com o “destino
manifesto”de sua terra, pronta para assistir outros filmes de horror, como a
novela do macarthismo, algo que está na base das doutrinas de segurança
nacional que mais tarde informam a Lei Patriótica, texto legal que massacra a
liberdade de expressão, de pesquisa, de direitos nos Estados Unidos.
O exemplo dado, um filme
onde a opinião pública foi modelada com finos bisturis de censura, evidencia
que os regimes proclamados nem sempre, ou quase nunca, correspondem ao que dele
falam seus defensores. Mais, o que foi dito sobre a película ilustra o
pensamento de um teórico de extrema direita, Carl Schmitt, sobre a opinião
pública e a liberdade de expressão. Indico as idéias daquele nazista sobre o
controle da opinião pública e a fábrica de legitimidade a ser conseguida para o
poder. Citando Schmitt: "Atrás da fórmula do Estado total se esconde um conhecimento
exato: o Estado, hoje, possui novos meios de potência e possibilidades de uma
intensidade extraordinária, das quais pressentimos dificilmente a amplitude e
os efeitos últimos, porque nosso vocabulário e nossa imaginação ainda se
enraizam no século 19". Ao justificar a razão de Estado na era técnica o
jurista afirma que na direção da mente pública a imprensa estaria prestes a ser
destronada pelo audio-visual (rádio e cinema), técnicas mais eficazes de
influência sobre as massas. A midia não seria um espaço de liberdade de
expressão, mas de ameaça ao Estado, seria seu concorrente na tarefa de moldar o
pensamento coletivo. Assim, pensa Schmitt, o Estado deve responder às ameaças
por um controle, direto ou indireto das técnicas e instrumentos de propaganda.
"Não existe ainda", acrescenta Schmitt, "um Estado tão liberal
que não tenha reivindicado em seu proveito pelo menos a censura intensiva e o
controle sobre filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado deixa a um
adversário os novos meios técnicos de dominação das massas, sugestão das massas
e formação da opinião pública". O Estado total, adianta Schmitt, controla
os meios de comunicação : "os novos meios técnicos pertencem
exclusivamente ao Estado e servem para o aumento de sua potência". O
Estado total, arremata, "não deixa surgir em seu interior forças inimigas
que o desagreguem. Ele não permite que inimigos disponham de meios técnicos
para sapar sua potência por um slogan qualquer como ‘Estado de direito’, ‘liberalismo’ etc. Ele sabe distinguir entre
amigo e inimigo. Neste sentido ele, como se diz, é um Estado total. Sempre foi
assim e a novidade só reside nos meios técnicos, cuja importância política deve
ser levada em conta".
Na era da internet e
da espionagem de governos, como o norte-americano sob a chancela de leis como a
Patriótica, a relação entre pensamento, slogans plantados nas mentes, e puro
estupro das massas ainda mostra que estamos longe de pensar livremente em
termos coletivos. Ainda leio com proveito o clássico de Serge Tchakhotine, “O
Estupro das massas pela propaganda política”. Este livro tem mesmo um pequeno
sabor brasileiro. Durante a nossa última ditadura, Miguel Arraes o traduziu
para a Editora Civilização Brasileira. O título precisou ser modificado para
receber autorização da censura : “A mistificação das massas pela propganda
política”. Nele, Tchakhotine já usa saberes como a cibernética, de Wiener, e
outros elementos científicos ainda úteis. Poupo os senhores do desprazer, não
irei apresentar todas as idéias do autor. Mas um dado alarmante até hoje
preocupa. Segundo ele, de cem pessoas submetidas à uma prolongada propaganda
intensiva, no máximo dez conseguem pensar de modo autônomo e livre. ([8])
Como é inevitável, os fundamentos teóricos da obra, a psicologia de Pavlov,
precisaria ser atualizada. Mas a riqueza de informações sobre a manipulação das
massas pelo marketing político, religioso, econômico, ideológico é imensa.
Pensar, hoje, é
permanecer no mesmo isolamento em que viveram os renascentistas ameaçados pela
Inquisição, os subversivos do século XX, ameaçados pelas Comissões como a
liderada por Macarthy, os intelectuais e cidadãos arianos que, a exemplo de
Bonhoeffer foram encerrados nos campos de concentração por negar ao Estado o
direito de decidir sobre a vida e a morte. Liberdade de expressão é flor rara,
cuja vista e perfume surgem apenas em regimes e sociedades livres. E de tal
realidade estamos muito longe. Lutar por elas é o sentido da humanidade em nós.
Não esqueçamos o ensino de Spinoza: o direito, natural ou político, é o direito
do peixe grande devorar os pequenos. Donde a consequência, para quem deseja
vencer os graúdos: a unidade popular democrática que faça dos miúdos reunidos
uma força que leve os grandes a temer. Se tal coisa não ocorre, falar em
liberdade de expressão é tecer fio imaginários de conceitos.
No início, disse
que antes de falarmos em liberdade de expressão, devemos reconhecer o óbvio,
que para exprimir pensamentos é preciso pensar. Mas que outra coisa é a cultura
moderna e atual, sob a ferula do Estado que protege lucros ( a cada instante
mais privados) e se baseia em mitos (Holywood, novelas sul americanas e
brasileiras) que nutrem cérebros e corações em escala cósmica? Em meu livro Conservadorismo
Romântico, termino citando o raciocínio ensandecido de um defensor do
capitalismo que julga a bomba de hidrogênio fantástica (recordemos Stanley
Kubrick) porque nela está a segurança absoluta da propriedade privada. Como advertem certos autores, hoje out of fashion, a propria percepção
mental das massas, na sociedade técnica de hoje, é préfabricada. O cinema, o
rádio e as revistas, dizem Horkheimer e Adorno, “constituem um sistema”. Além
do mais, “os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o
momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à
qual servia”. A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis.
Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel
de sujeitos. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes,
para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outrso, das
diferentes estações. Não se estabeleceu nenhum dispositivo de réplica e as
emissões privadas são submetidas ao controle”. Tais linhas encontram-se no
capítulo sobre a indústria cultura, do clássico A Dialética das Luzes. ([9]).
Em Kant se afirma a
percepção transcendental que ordena a experiência. Pensamos numa rede de
intuições (tempo/espaço) e conceitos a priori. Adiantam Horkheimer e Adorno: no
lazer, as pessoas devem se orientar por esse esquematismo a priori. “O esquematismo kantiano ainda atribuia ao sujeito o ato
de referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais. Tal
função foi tomada pela indústria, “o esquematismo é o primeiro serviço prestado
por ela ao cliente. Na alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a
preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura”.
Mas hoje, “para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido
antecipado no esquematismo da produção. A arte sem sonho destinada ao povo
realiza aquele idealismo sonhador que ia longe demais para o idealismo crítico.
Tudo vem da consciência, em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na
arte para as massas, da consciência terrena das equipes de produção. Não apenas
as canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como
invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio
derivado deles e só varia na aparência”. “O catálogo explícito e implícito,
esotérico e exotérico, do proibido ou tolerado estende-se a tal ponto que ele
não só circunscreve a margem de liberdade, mas também a domina completamente.
Os menores detalhes são modelados de acordo com ele”. Finalmente: “ultrapassando de longe o teatro
de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores
nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no
quadro da obra filmica permanecendo, no
entanto, livres do controle de seus dados exatos, é assim precisamente que o
filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com
a realidade”.
O Brasil é adestrado
pelo rádio e filme propaganda desde Vargas. Na ditadura de 64, a televisão
assume o papel de esquematismo transcendental, incorpora novelas, programas de
calouros, entrevistas etc segundo modelos a
priori, ordenados pelo sujeito ativo, a equipe de programação em nome dos
proprietários, com grande ajuda do Estado. Hoje, como fruto, um apresentador
assume o papel da divina providência e ordena destinos das marionetes do Big
Brother, que suscita os piores sentimentos em milhões. O próprio nome banaliza
o controle de paixões, pensamentos e atos, numa caricatura entre ridícula e
trágica do fato autoritário exposto por Orwell. As pessoas se acostumam, são
adestradas para achar normal o infame. Lucros, como esperado, alimentam tal
indústria do não pensar. A imprensa escrita amplia da lesão no cérebro,
elevando as marionetes ao status de estrelas por um dia, aptas para exibir suas
vergonhas físicas e morais aos milhões de curiosos. Karl Kraus teria muito a
acrescentar ao seu texto sobre a “imprensa como prostituta” neste ítem. [10]Indivíduos
se atacam e destroem uns aos outros via Face
Book e twitter, geram lucros
inauditos para seus proprietários e manipuladores que vendem ações na Bolsa. O
telefone deixa de ser liberal, comento a frase de Adorno, por incorporar o
rádio, a TV, o cinema numa só maquininha. As páginas de revistas, jornais,
blogues eletrônicos, destinadas aos “comentários”dos leitores, é um perene
abatedouro onde não existe argumento, fato, análise. Naquelas sentinas impera o
slogan, os ataques préfabricados aos adversários, rebaixados ao status de
inimigos. Blogueiros são pormovidos a divindades de cuja boca brota todo
verdadeiro, belo, bom. Ai dos que não dobram a cerviz aos milhões de leitores
do profeta eletrônico ! Assim, temos
dúvida sobre o paradeiro do pensamento na sociedade atual. Claro, instrumentos
do pensar existem na internet, como é o caso de páginas como o Projeto Perseus
e outros. Mas para o uso com propriedade de tais mecanismos, é preciso, antes,
pensar. Como querer liberdade de expressão, se o que é expresso, o pensamento,
em grande parte é fabricado e imposto às massas, reiteradamente, pela
indústria, partidos, poderes, religiões?
Como diz Montaigne, pioneiro da liberdade
anímica, "o juízo tem, em mim, uma sede magistral". A metáfora da
mente como tarefa de juiz é determinante no mundo noético. Atitude crítica
exige pesagem de palavras. Não por acaso o símbolo assumido pela filosofia na
modernidade, a balança, é o mesmo da justiça. O cuidado para não aceitar
verdades impostas exige que os termos sejam ensaiados antes de sua circulação
no mercado político e social. Os Ensaios receberam o nome de
"conatus", esforço na ação física ou intelectual. Em Montaigne e na
filosofia moderna o "eu liberta-se, pensando, e pensa, marchando"([11])
A filosofia está sempre em movimento, nunca parada, dogmática. ([12])
A liberdade, diz um comentador do filósofo, "não é um estado de repouso,
mas um ato ou função, um aspirar, um esforçar-se".
Ensaio. Tal palavra deriva do latim exagium. Ela era usada na avaliação das
moedas em seu toque, título, quilate. Ensaiar é examinar : monetam inspicere. Na
Casa da Moeda um ensaiador as examina com a balança. É preciso, confidencia Montaigne, ensaiar (exagiare) as idéias, pesá-las, descobrir o metal
precioso nelas posto ou a escória tida pela maioria como preciosidade. Na
pesagem das palavras está suposta outra noção. O vocábulo "pensar"
liga-se ao ato de pesar. Pensar vem de pensare, ponderare. Um pensador pesa
juízos, como o ensaiador as moedas. "Eu não conto meus empréstimos, eu os
peso".
No mercado comercial, político, religioso,
diz Montaigne, "não se olha mais o que as moedas pesam e valem, mas cada
um as recebe segundo o preço que a aprovação comum e a cotação lhe dá". A
propriedade das idéias é de todos os homens. Mas nem todos são alertas para
pesar o seu valor e se elas servem para as operações para quais são
movidas. Não raro idéias pouco valiosas
compram decisões governamentais, magistrais, religiosas. Montaigne evoca o
envenenamento noético. Doutrinas falsas mostram-se letíferas e perigosas. Contra o dogmatismo
sectário que tende a encarar as suas próprias teses como absolutas, é preciso a
relativização, a crítica. Todo o ideário de Montaigne se resume na figura da
balança: "Que sei eu? Como eu coloco numa balança". Veneno. Palavra
para designar fanatismos fantasiados de ciências e técnicas moderna. Para o
nosso exame da liberdade de expressão, julgo que Spinoza, Montaigne e outros
menores mas estratégicos como Herbert Marcuse têm muito a sugerir, se quisermos
entender o modo de dominação na sociedade tirânica. E conceitos como
reificação, alienação, condenados pela voga estruturalista liderada por Louis
Althusser, precisam ser revisitados. Se me permitem, para discutir a liberdade
de expressão, seria bom caminho investigar o que se pensa nos vários estratos e
classes do Brasil. O conservadorismo, aqui, vem sendo inculcado desde a
Colônia. Nos Impérios e Regências, ele foi imposto pelos canhões de Caxias. No
século 20, ele foi ensinado, com muita tortura e violência. A parte física se
reforçou com as redes de comunicação de massas. Hoje, programas fascistas
intitulados “policiais”, doutrinam contra a própria noção de direito. E são
aplaudidos por milhões. Liberdade de Expressão? Talvez um caminho para entender
tais fatos seria retomar, como novos instrumentos de pesquisa, a investigação
liderada por Theodor Adorno, no Brasil, sobre a personalidade autoritária. Após
o susto com os resultados, teríamos alguma idéia de como proceder para que os
peixes pequenos se unam contra os grandes e não suicidem nos linchamentos e
violências que marcam o nosso cotidiano. Obrigado
[1] “Quia homines, uti diximus, magis
affectu, quam ratione ducuntur, sequitur multitudinem non ex rationis ductu,
sed ex communi aliquo affectu naturaliter convenire et una veluti mente duci
velle, nempe (ut art. 9. cap. 3. diximus) vel ex
communi spe, vel metu, vel desiderio commune aliquod damnum ulciscendi. Cum
autem solitudinis metus omnibus hominibus insit, quia nemo in solitudine vires
habet, ut sese defendere, et quae ad vitam necessaria sunt, comparare possit,
sequitur statum civilem homines natura appetere, nec fieri posse, ut homines
eundem unquam penitus dissolvant”.
[2] “Imperii cuiuscumque status dicitur civilis; imperii autem integrum corpus civitas appellatur, et communia imperii
negotia, quae ab eius, qui imperium tenet, directione pendent, respublica. Deinde homines, quatenus ex
iure civili omnibus civitatis commodis gaudent, cives appellamus, et subditos,
quatenus civitatis institutis seu legibus parere tenentur. Denique status
civilis tria dari genera, nempe democraticum,
aristocraticum et monarchicum, in art. 17. cap. praeced. diximus. Iam antequam de unoquoque seorsim agere
incipiam, illa prius demonstrabo, quae ad statum civilem in genere pertinent;
quorum ante omnia considerandum venit
s u m m u m
c i v i t a t i s
s e u s u m m a r u m
p o t e s t a t u m
i u s . Ex art. 15. praeced. cap. patet, imperii seu summarum potestatum ius nihil esse
praeter ipsum naturae ius, quod potentia, non quidem uniuscuiusque, sed
multitudinis, quae una veluti mente ducitur, determinatur, hoc est, quod sicuti
unusquisque in statu naturali, sic etiam totius imperii corpus et mens tantum
iuris habet, quantum potentia valet. Atque adeo unusquisque civis seu subditus
tanto minus iuris habet, quanto ipsa civitas ipso potentior est (vid. art. 16. praeced. cap.), et consequenter unusquisque civis nihil iure agit,
nec habet praeter id, quod communi civitatis decreto defendere potest”.
[3] Tratado Político, 3, 8: “Secundo venit etiam
considerandum, quod subditi eatenus non sui, sed civitatis iuris sint, quatenus
eius potentiam seu minas metuunt, vel quatenus statum civilem amant (per art. 10. praeced. cap.). Ex quo sequitur,
quod ea omnia, ad quae agenda nemo praemiis aut minis induci potest, ad iura
civitatis non pertineant. Ex. gr. iudicandi facultate nemo cedere potest.
Quibus enim praemiis aut minis induci potest homo, ut credat, totum non esse
sua parte maius, aut quod Deus non existat, aut quod corpus, quod videt
finitum, ens infinitum esse credat, et absolute ut aliquid contra id, quod
sentit vel cogitat, credat? Sic etiam quibus praemiis aut minis induci potest
homo, ut amet, quem odit, vel ut odio habeat, quem amat? Atque huc etiam illa
referenda sunt, a quibus humana natura ita abhorret, ut ipsa omni malo peiora
habeat, ut quod homo testem contra se agat, ut se cruciet, ut parentes
interficiat suos, ut mortem vitare non conetur et similia, ad quae nemo
praemiis nec minis induci potest. Quod si tamen dicere velimus, civitatem ius
sive potestatem habere talia imperandi, id nullo alio sensu poterimus
concipere, nisi quo quis diceret, hominem iure posse insanire et delirare. Quid
enim aliud nisi delirium ius illud esset, cui nemo adstrictus esse potest?”
[4] “I- Impossibile esse
libertatem hominibus dicendi ea, quae sentiunt, adimere. II- hanc libertatem,
salvo jure & authoritate summarum potestatum, unicuique concedi, &
eandem ununquemque servare posse, salvo eodem jure, si nullam inde licentiam
sumat, ad aliquid in Rempublicam tanquam jus introducendum, vel aliquid contra
receptas leges agendum III- hanc eandem libertatem ununquenque habere posse,
servata reipublicae pace, & nulla ex eadem incommoda oriri, quase favile
coërceri non possint IV eandem salva etiam pietate unumquemque habere posse V-
leges quae de rebus speculativis conduntur inutiles omnino esse VI – Denique
ostendimus, hanc libertatem non tantum servata Reipublicae pace, pietate, &
summarum potestatum jure posse, sed ad haec omnia conservandum, etiam debere
concedi”.
[5] Um texto
luminoso de Norberto Bobbio analisa os elos entre palácio e praça na sociedade.
Sem concessões ao populismo, o jurista italiano mostra o quanto importa, no
Estado democrático, o diálogo entre os dois lugares de poder e legitimidade.
“Il Palazzo e la Piazza”in L ‘Utopia Capovolta (Torino, La
Stampa, 1990), p. 75 e seguintes.
[6] Cf. Jean-Pierre
Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique:
Le
pouvoir de la raison d´état . Paris, PUF, 1992, p. 137.
[7] Mitchell,
Greg : When Walter Lippman Helped Truman 'Censor' Hollywood's First 'Atomic
Bomb' Movie.”in Editor & Publisher, 2009.
[8] Serge
Tchakhotine, Le viol des foules para la propagande politique, nouvelle édition revue
et augmentée (Paris, Gallimard, 1952). Tradução de Miguel Arraes: A mistificação das massas pela propaganda
política (Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1967).
[10] Cito na
edição italiana: “La stampa come mezzana” in Karl Kraus, Morale e criminalità
(Milano, Rizzoli,1976), p.71 e seguintes.
[11] Cf. Silvio Lima : A
Essência do Ensaio (Lisboa, Livraria Académica, Colecção Studium, 1946),
página 57. Cf. também Tournon, André: “Route par ailleurs”, Le ‘nouveau
langage’des Essais (Paris, Honoré Champion, 2006).