domingo, 29 de março de 2015

É bom ser reduzido à condição de solitário numa sociedade dividida entre fanatismos de todas as ordens. Estar sozinho significa não ter aceito os dogmas das seitas em guerra perene. É um atestado de que se pensa com os próprios neurônios, sem precisar de aprovações dos proprietários de grupos e tendências. Uma prova de semelhante situação vem da coerência teórica. Nem sempre coerência é bom sinal. Os ideologizados de esquerda ou direita são coerentes com seus modos éticos, não raro genocidas. Os nazistas foram coerentes com o que leram em Minha Luta, os estalinistas com que leram do "Paizinho dos Povos". Me refiro à uma outra coerência: aquela que se liga à defesa das instituições democráticas, nas quais existe lugar para todas as visões de mundo. Me refiro à tolerância, tão abusada pelos "tolerantes de sua própria grei". Certa feita fui convidado por um colega a integrar um debate sobre desarmamento. Disse ao companheiro que eu era contra a lei de desarmamento, visto que ela retirava do cidadão um instrumento que ajudou a instaurar a democracia: a formação de milicias para lutar contra governos tirânicos. É fato: as primeiras medidas dos governos ditatoriais que sucederam a Revoluçòa Francêsa, a norte-americana e a inglêsa foi desarmar os cidadãos, colocando-os à mercê da força estatal. Na hora fui acusado de tudo pelo colega. Ao perguntar sobre a composição da mesa, ele me disse que todos eram favoráveis ao desarmamento. E me deu uma lição de ética, estranhando minha posição. Só perguntei sobre um item óbvio. Se TODOS os convidados eram favoráveis ao governo, não era um debate, mas um convescote de sectários. O telefone foi batido na minha cara. De "querido colega", no início da comunicação telefônica, fui transformado em apologeta da violência, da bomba atômica, etc. Depois, vários desconvites se sucederam, sempre com a mão co colega "democrático". O artigo abaixo segue uma linha de raciocínio que empreendo desde longa data. Antes dele, no post abaixo, segue o link de uma longa entrevista dada à Revista do Legislativo de Minas Gerais, há muito tempo atrás. Ela também fala sobre a ruína trazida à sociedade pela inflação. Como estamos no rumo de uma nova inflação (inclusive da falta de rubor na face), talvez valha a pena ler a entrevista. Roberto Romano




Inflação e corrupções

ROBERTO ROMANO - O ESTADO DE S.PAULO
29 Março 2015 | 02h 03
"A corrupção é senhora idosa que age em toda parte." A frase é verdadeira, mas incompleta. A provecta ladrona não age sozinha. Ela foi superada por trêfegas meninas que renovam as técnicas de assalto. Se a avozinha subtraía milhões, as netas embolsam bilhões. Ocorre com a rapinagem algo análogo à inflação. Elias Canetti, em Massa e Poder (Inflação e massa), mostra a ruína ética trazida pela moeda apodrecida. As peças metálicas, nas mãos dos trabalhadores, davam um sentimento dignificador. Se o corpo é gratificado, a alma sente segurança. Na confiabilidade da moeda reside a sua marca principal.
As notas impressas diminuem o peso do dinheiro. A inflação humilha quem vive de salário. Com ela "nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; mas em virtude da inflação o homem diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada". Milhões não compram pão, empregos somem, o ressentimento exaspera. Conclusão de Canetti: os nazistas agiram contra os judeus como num processo inflacionário. "Primeiro eles (os judeus) foram atacados como maus e perigosos, inimigos; depois foram cada vez mais desvalorizados; como já não se tinha judeus em número suficiente, eles foram coletados nos países vencidos; e, no final, eles eram vistos literalmente como insetos que podiam ser exterminados aos milhões." Os fanáticos de Goebbels "dificilmente poderiam ter chegado tão longe, se poucos anos antes não tivessem passado por uma inflação na qual o marco valia um bilionésimo do valor original. E foi esta inflação como fenômeno de massa que eles descarregaram sobre os judeus".
A nossa política está em via de unir dois sistemas inflacionários. O primeiro é a degradação da moeda. Quem tem mais de 30 anos recorda os anos Sarney e Collor. O Brasil namorou o fascismo, persistente em suas entranhas históricas. Recordo os "fiscais do Sarney" que invadiam supermercados com bandeiras do País, prendiam gerentes, ameaçavam funcionários. Tais linchamentos surgiram com o descontrole monetário. Agora vem a inflação do mercado corrupto. Muitos líderes políticos estão unidos aos assaltos, antes cifrados em milhões. Atingimos o patamar dos bilhões. Humilhação e desespero, trazidos pela crise da moeda, surgem em plano profundo. O ressentimento contra as instituições representativas e democráticas, a desvalorização experimentada pela cidadania ante os corruptos, conduz a massa aos primitivos desejos de um ditador que salve a Pátria, um benefactor.
Milhões de pessoas, no golpe de 1964, apoiaram o veto à subversão e à corrupção. Os pretensos subversivos foram torturados, mortos, exilados, cassados. Mas retornaram à sociedade. Os corruptos continuam nas instituições de Estado porque garantem o acesso dos governos às regiões dominadas. Oligarcas que garantiram os donos do poder continuam no regime civil. Eles dominam a Nova República com José Sarney, visto ao lado da presidente Rousseff quando ela recordava aos manifestantes do 15 de Março sua luta contra a ditadura. Só faltou à chefe de Estado dirigir o dedo indicador rumo ao fidalgo (Lula o considera um "homem incomum") que, na cadeira próxima, tudo ouvia sorrindo. Ele presidiu a Arena, "o maior partido do Ocidente", segundo Francelino Pereira.
Mas não somos campeões mundiais de corrupção. Já na França do século 19, diz um autor hoje pouco lido, a pilhagem do Estado se dava em grande e pequena escala. "As relações entre a Câmara dos Deputados e o governo eram multiplicadas sob os tratos entre diferentes administrações e diferentes empresários. (…) A Câmara coloca nas costas do Estado os gastos maiores e garante às aristocracias especuladoras e financeiras o maná de ouro. Todos recordam os escândalos na Câmara dos Deputados quando se descobriu, por acaso, que todos os membros da maioria, inclusive uma parte dos ministros, eram acionistas das empresas, a quem eles conferiam a seguir, como legisladores, a execução das estradas de ferro, tudo por conta do Estado". De te fabula narratur… Mas ainda não atingimos o ponto descrito por Marx em As Lutas de Classes na França.
A reforma política, uma quimera, tem como pressupostos a lei do lobby e a democratização dos partidos. Sem a primeira parlamentares encobrem, com a autoridade do cargo, atos em defesa de anônimos interesses econômicos, sociais, culturais, religiosos. E sem democracia interna nos partidos os corruptos continuam intocados. Na atual forma partidária, dirigentes ficam nos cargos por décadas. Dominam alianças, candidaturas e, last but not least, os cofres. Roberto Macedo escreveu neste espaço, e muito bem, sobre as emendas parlamentares que sugam os cofres públicos. S. Exas. aumentaram de modo pantagruélico o Fundo Partidário. Sem renovação dos dirigentes e controle dos partidos pelos afiliados, sem eleições primárias, a dinheirama oficial reforça a ditadura partidária dos oligarcas.
Quais são as diferenças entre tiranos e bons governantes? A pergunta é de Jean Bodin em Os Seis Livros da República. "Um busca manter os governados em paz e união; outro os divide para os arruinar e engordar os confiscos. Um aprecia ser visto às vezes e ouvido pelos dirigidos; outro deles se esconde, como inimigos. Um prefere o amor dos governados; outro, o medo. Um só teme pelos liderados; outro tem medo deles. Um pede impostos na quantia mínima e para a necessidade pública; outro chupa o sangue, rói os ossos, suga o tutano dos governados para os enfraquecer. Um procura as melhores pessoas de bem para empregar nos cargos públicos; outro só emprega no governo os piores ladrões, para deles se servir como esponjas."
Pelos critérios clássicos da ética e do direito, não vivemos em democracia plena, mas no tirânico regime em que o poder é benéfico para os que legislam em causa própria. Falei das inflações monetárias e da corrupção. Convenhamos, temos no Brasil a deflação da vergonha na cara.
*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'Razão de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva) 

Inflation and corruption

ROBERTO ROMANO - THE ESTADO DE S. PAULO
March 29, 2015 | 02h 03
"Corruption is an old lady who acts everywhere." The statement is true, but incomplete. The ripe old ladrona does not act alone. She was overcome by naughty girls that renew the assault techniques. If the grandmother subtracted million, granddaughters pocket billion. Occurs with rapine something analogous to inflation. E. Canetti, Mass and Power (Inflation and mass), shows the ethical ruin brought by rotting currency. The metal parts in the hands of workers, gave one dignificador feeling. If the body is gratified, the soul feels safe. In the currency of reliability lies its main brand.
Printed notes decrease the weight of money. Inflation humiliates who live paycheck. With her "nothing is safe, nothing remains in the same place for an hour, but due to inflation decreases the man himself, or what he was, is nothing;. The million, he always wanted, is also nothing . All have it. But every man is nothing. " Millions do not buy bread, jobs disappear, resentment exasperated.Completion Canetti: the Nazis against the Jews acted as an inflationary process."First they (the Jews) were attacked as evil and dangerous enemies, then were increasingly devalued, as I have not had enough of the Jews, they were collected in the defeated countries, and in the end, they were seen as literally insects that could be exterminated by the millions. " The fanatics of Goebbels "could hardly have come so far, is a few years earlier had not experienced an inflation in which the mark was worth a billionth of the original value. And it was this inflation as a mass phenomenon they unloaded on the Jews."
Our policy is about to join two inflation systems. The first is the degradation of the coin. Those over 30 years recalls the Sarney and Collor years. The Brazil dated fascism, persistent in its historical bowels. Remember the "tax the Sarney" invading supermarkets with country flags, bound managers, threatened employees. Such lynchings emerged with monetary control. Now comes the inflation of the corrupt market. Many political leaders are united to the assaults before encrypted million. Reached the level of the billions. Humiliation and despair, brought about by the currency crisis, appear in deep plane. Resentment against the representative and democratic institutions, the devaluation experienced by citizens against the corrupt, leads to mass the primitive desires of a dictator to save the Fatherland, one benefactor.
Millions of people in the 1964 coup, supported the veto to subversion and corruption. The alleged subversives were tortured, killed, exiled, deposed. But returned to society. The corrupt remaining in state institutions because they guarantee the access of governments to dominated regions. Oligarchs who assured those in power continue to civilian rule. They dominate the New Republic with José Sarney, as part of the President Rousseff when she reminded the protesters of March 15 their struggle against the dictatorship. Just missed the head of State to send the index finger towards the gentleman (Lula considers him a "uncommon man") that in the next chair, all listened smiling. He chaired the Arena, "the West of the largest party," according Francelino Pereira.
But we are not world champions of corruption. In France the 19th century, says an author little read today, the looting of the state was in large and small scale."Relations between the House of Representatives and the government were multiplied in the treatment between different administrations and different entrepreneurs. (...) The Board puts the state back higher expenses and ensures the speculators and financial aristocracies the golden manna. All remember the scandals in the House when it was discovered, by chance, that all members of the majority, including some of the ministers, were shareholders of the companies, whom they conferred following, as legislators, the implementation of the railways, all for State account. " Of fable narratur you ... But not yet reached the point described by Marx in The Class Struggles in France.
Political reform, a chimera, is the law of assumptions lobby and the democratization of the parties. Without the first parliamentary cloak, with the position's authority, acts in defense of anonymous economic, social, cultural, religious. And no internal democracy in the corrupt parties remain untouched. In the current partisan way, leaders are in office for decades. Dominate alliances, applications and, last but not least, the coffers. Roberto Macedo wrote in this space, and very well on the parliamentary amendments that suck the public coffers. S. exas. increased from the gargantuan party fund mode. No renewal of leadership and control of the parties by affiliates without primary elections, the official dinheirama reinforces the party dictatorship of the oligarchs.
What are the differences between tyrants and good government? The question is Jean Bodin in the Six Books of the Republic. "A search keep the governed in peace and unity;. Other divides to ruin and fatten the confiscations One enjoys being sometimes seen and heard by directed; another of them hides, as enemies A prefers the love of the governed. Other, A fear only fear led by;.. the other is afraid of them asks a tax on the minimum amount and the public need; the other sucks the blood, gnawing the bones, sucks the marrow of the governed to weaken A search of the best people. well for use in public offices, other government employs only the worst thieves, for them to serve as sponges. "
The classical criteria of ethics and law, we do not live in full democracy, but in the tyrannical regime in which power is beneficial for those who legislate for its own sake. I spoke of monetary inflation and corruption. Admittedly, we have in Brazil deflation of shame in the face.
* Roberto Romano is Unicamp professor and author of 'Reason of State and other states of reason' (Perspective)