Aos 90 anos, morre a dama da música caipira
Julio Maria - O Estado de S. Paulo
08 Março 2015 | 23h 14
Apresentadora estava internada desde o dia 19 de fevereiro no Hospital Sírio-Libanês; artista era uma das maiores referências da cultura de raiz
A viola emudeceu. Aos 90 anos, morreu na noite de ontem a cantora e
apresentadora de TV Inezita Barroso. Ela estava internada desde o dia
19 de fevereiro no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.
Inezita viu tudo. Era um livro de história viva, daqueles com notas
de rodapé e trilha sonora. A última testemunha ocular a ter caminhado
sobre a própria linha do tempo da música sertaneja. Soube o que queria
ser bem cedo, com 7 anos. Ou antes. O fato é que, enquanto saía do
ventre de sua mãe, em pleno domingo de carnaval, na casa da Rua
Conselheiro Brotero, na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, passava em
frente o Cordão Carnavalesco Camisa Verde, futura escola de samba com o
mesmo nome.
As seis cordas não agradaram a mãe, que preferia ver a filha casada com um advogado ou farmacêutico, mas a música não parava de chamá-la. Quando ia passar férias em uma das fazendas da família, deixava as primas na casa grande, pulava a janela e ia ver os colonos tocando viola. No dia em que um violão caiu em suas mãos, ela atacou de Boi Amarelinho. E teve caboclo marmanjo chorando baixinho.
Viagem. Quando chegou a década de 1960, Inezita já tinha ímpetos de pesquisadora. O mundo sertanejo era maior que o interior de São Paulo. Sertanejo não, ela não suportava essa nomenclatura por uma questão geográfica. “Sertanejo existe onde tem sertão. Aqui em São Paulo é música caipira. Por acaso, você já foi ao sertão de Jundiaí?” Decidida a desbravar as profundezas do Brasil, conseguiu um Jipe e dirigiu até a Paraíba, onde iria gravar um filme sobre a Guerra do Paraguai.
Foram dois meses de viagem, anotando literalmente todas as notas musicais que encontrava pelo caminho. Como não tinha gravador, escrevia uma a uma do que ouvia das culturas locais em folhas com pentagramas musicais. Sua aventura rendeu história. Quando chegou a Salvador, testou as trações nas quatro rodas subindo de Jipe as escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim.
Mais à frente, no interior da Bahia, ficou encantada por um cantador e passou a anotar rapidamente o que ele cantava, até que um caminhoneiro parou a seu lado ouvindo em alto volume a Rádio Nacional.
“Não consegui ouvir mais nada. Perdi o que aquele homem cantava.” Em outra cidade, resolveu testar sua mira. Apontou a espingarda que levava consigo para um objeto voador e atirou: “Caiu um urubu do meu lado, que horrível aquilo. Nunca mais dei um tiro”.
Violão quebrado. Sua derrota, uma das poucas da trajetória, se daria na volta. Inezita queria que alguma emissora de rádio ou de TV exibisse sua pesquisa.
Depois de levar o oitavo não, ela quebrou o violão, fez uma fogueira e jogou nas chamas todo o material recolhido pelo Brasil. Um jogo perdido dentre vitórias inquestionáveis, como os seus mais de 80 discos lançados, quase dez filmes e a conquista de uma autonomia artística em um programa de televisão na Cultura, com 35 anos de duração, mostrando apenas a legítima música do Brasil.
Pensando bem, aquela fogueira não queimou nada. Tudo o que Inezita Barroso viu pelo País afora ficou bem guardado, fortalecendo a maior defensora das tradições culturais que o Brasil já teve.