As taxas de analfabetismo no Brasil, normalmente tratadas
dentro do universo de números e metas, deveriam, segundo especialistas em
educação, ser também analisadas dentro da área de política social e econômica,
já que a população considerada analfabeta é a
mesma que sofre de outros problemas que afligem o país. “Se você fizer o mapa
do analfabetismo no Brasil, ele vai coincidir com o mapa da fome, com o do
desemprego, e da alienação. Não raro esse analfabeto é o que fica doente, o que
passa fome, o que vive de subemprego”, afirma a pedagoga Silvia Colello,
pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Os últimos dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) sobre analfabetismo configuram um mapa de
desigualdades que Alceu Ferraro, da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atribui à concentração de terra, de renda
e de oportunidades. Segundo Ferraro, que já foi membro do Comitê de Pesquisa do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), “o
país continua pagando o preço de dois fatores conjugados. Primeiro, do descaso
secular do Estado, e, segundo, de um conjunto de fatores responsáveis pela
enorme desigualdade social que tem, desde sempre, marcado a sociedade
brasileira”.
Somos 14 milhões de analfabetos, segundo o IBGE. Desses, a
maior parte se encontra na região Nordeste, em municípios com até 50 mil habitantes,
na população com mais de 15 anos, entre negros e pardos e na zona rural, ou
seja, encontra-se na população historicamente marginalizada. O censo relativo
ao ano de 2010 revela uma redução de 29% em relação aos números apresentados em
2000, mas ainda insatisfatória, especialmente, quando considerados os critérios
utilizados pelo IBGE. Hoje, é considerada alfabetizada a pessoa capaz de ler e
escrever um bilhete simples. “Esse é um conceito muito discutível. Se
utilizarmos um critério um pouco mais exigente, esses índices mudam e essa é
uma das razões pelas quais o IBGE não muda esses conceitos, porque o que está
jogo é a própria imagem do país”, diz Sérgio da Silva Leite, diretor da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e líder do
Grupo de Pesquisa ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita.
Desigualdades regionais. Analfabetismo no Nordeste chega a 28% na população de
15 anos ou mais de municípios com até 50 mil habitantes, onde a proporção de
idosos não alfabetizados é de aproximadamente 60%.
Para o psicólogo, o IBGE trabalha no limite de uma concepção
de domínio do código, um domínio mecânico da língua. Segundo Leite, é preciso
que simultaneamente à alfabetização, a pessoa se envolva com as práticas
sociais de leitura e escrita, ou seja, passando pelo processo de letramento. O
termo, que começou a ser utilizado no Brasil na década de 80, surgiu para
diferenciar-se do conceito de alfabetização. Silvia Colello, da USP, explica que
o surgimento do conceito de letramento faz jus a um novo momento da sociedade
brasileira, que já não mais aceita que o indivíduo saiba apenas desenhar o
próprio nome. A professora comenta a dificuldade de traduzir a palavra alfabetizado
para o inglês, já que no idioma há apenas o termo littered significando o conceito amplo de alfabetização. “Nos
países de primeiro mundo, em que a difusão dos bens culturais é mais bem
resolvida que no Brasil, ser alfabetizado é também ser letrado. As crianças
aprendem a ler e escrever e automaticamente já se tornam usuárias da língua, é
o mesmo processo”.
Embora o número de analfabetos absolutos esteja diminuindo,
como aponta o IBGE, outros índices, como o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) indicam que aumenta o número de pessoas que não
conseguem utilizar o conhecimento da língua para se inserir nas práticas
sociais de uso da leitura e da escrita. Segundo a pedagoga, “os 14 milhões de
analfabetos não são nada perto dessa imensa margem da população”.
Educação de jovens
e adultos
Para Colello, a concepção do que é ser ou não alfabetizado
depende do contexto e da realidade do país. Ela cita o exemplo do Movimento
Brasileiro de Alfabetização (Mobral), programa criado na década de 1970 para
erradicação do analfabetismo, mas cuja proposta pedagógica preocupava-se apenas
com o uso funcional da língua. Para o sociólogo da educação Marcos de Castro Peres,
da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), programas como esse acabam contribuindo
para estigmatizar ainda mais os analfabetos. Peres lembra que o Mobral acabou
se tornando sinônimo de pessoa ignorante, atrasada e que o Brasil Alfabetizado,
atual programa do governo federal para alfabetização, também tende ao fracasso.
“Toda uma vida foi construída pela pessoa sem o uso da leitura e da escrita e
não é nada fácil mudar isso. Para os indivíduos que são analfabetos até os 15
anos ou mais, definitivamente não é hábito ler e escrever e é impossível se
mudar o hábito de vida de alguém somente com oito meses de curso de
alfabetização”, defende.
Dados de
analfabetismo por faixa etária. Taxa na população com mais de 15 anos caiu de
13,6% em 2000 para 9,6% em 2010, somando quase 14 milhões de pessoas.
Além da interrupção brusca, Peres aponta outros problemas
nos programas de alfabetização de jovens, ligados à condição de miséria social
dessa parcela da população e que dificultam sua entrada e permanência em tais
programas, como a falta de estrutura de transporte coletivo, falta de escolas
no campo, necessidade de trabalhar etc. A formação dos professores também é um
fator que preocupa. “Não são utilizados profissionais de educação para atuar
como alfabetizadores nesses programas, basta ter o ensino médio completo para
tal. Essa precarização acaba afetando o processo, comprometendo os resultados
esperados ou as metas pretendidas com sua implantação”, afirma Peres.
Sérgio Leite, da Unicamp, ressalta também o
descaso nos cursos de magistério. “São
poucos os que têm em seus currículos a área de educação de adultos, que exige uma
postura pedagógica diferente, de profundo respeito”. Leite tem pesquisado
casos de professores que estão obtendo sucesso no trabalho com jovens e adultos
e destaca como fator comum entre eles a afetividade na relação na sala de aula,
a prática pedagógica preocupada com o sucesso do aluno e que busca se adequar à
sua condição e ainda a união da alfabetização com o processo de letramento.
Fim
do analfabetismo
Para
Silvia Colello, da USP, erradicar o analfabetismo é uma meta válida, mas que
traz consigo outro fantasma maior ainda, o da exclusão social, ligado a
aspectos como a democratização dos bens culturais, o acesso à cultura, justiça,
moradia e trabalho. Reduzir os índices de analfabetismo até sua erradicação
total é um compromisso assumido pelo Brasil em diversas ocasiões e documentos. O
“fim” do analfabetismo em números, no entanto, pode não significar, em termos
reais, uma mudança efetiva. “O Brasil pode até cumprir essas metas de
alfabetização, mas esses números nunca vão representar a real situação da
exclusão educacional e do analfabetismo no país. Sempre por trás dos números
estão ocultas as atrocidades praticadas com a educação em relação aos seus
aspectos qualitativos”, pontua Marcos Peres, da UESC. “O qualitativo é
sacrificado em prol do quantitativo para se cumprir metas, para mostrar números
aos organismos internacionais que fornecem recursos para a melhoria da educação
em países subdesenvolvidos como o Brasil”, completa o sociólogo.
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