Uma proposta de estarrecer
29 de abril de 2012 | 3h 06
O Estado de S.Paulo
Está em curso na Câmara dos Deputados uma tentativa de
golpe contra o Judiciário. Na quarta-feira, a Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Casa acolheu por unanimidade um projeto de emenda
constitucional que autoriza o Congresso a "sustar os atos normativos dos
outros Poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da
delegação legislativa". A Constituição já lhe assegura esse direito em
relação a atos do gênero praticados pelo Executivo.
A iniciativa invoca o artigo 49 da Carta que inclui, entre as
atribuições exclusivas do Parlamento, a de "zelar pela preservação de
sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros
Poderes". Poderia parecer, portanto, que a proposta pretende apenas
afirmar a plenitude de uma prerrogativa legítima do Congresso, adequada
ao princípio republicano do equilíbrio entre os Três Poderes, uma das
bases do regime democrático. Antes fosse.
O alvo do projeto apresentado em fevereiro do ano passado pelo
deputado Nazareno Fonteles, do PT piauiense, é o Supremo Tribunal
Federal (STF), ao qual compete se pronunciar sobre a constitucionalidade
das leis e a eventual infringência dos direitos constitucionais da
pessoa. Alega o relator da proposta na CCJ, Nelson Marchezan, do PSDB
gaúcho, que ela não alcança as decisões de natureza "estritamente
jurisdicional" da Corte, mas o que ele considera a sua "atividade
atípica".
O termo impróprio se refere às decisões judiciais que, por sua
própria natureza, adquirem força de lei, como devem ser efetivamente
aquelas que dirimem em última instância dúvidas sobre a
constitucionalidade dos textos legais ou eliminam omissões que, ao
persistir, representam uma distorção ou supressão de direitos. O
Judiciário não ultrapassa as suas funções ao estabelecer novos marcos
normativos, seja porque os existentes são inconstitucionais, seja para
suprir lacunas resultantes da inoperância do Congresso.
De mais a mais, a Justiça não toma tais iniciativas, ou outras. Ela
só se manifesta quando provocada por terceiros - no caso do Supremo, sob
a forma de ações diretas de inconstitucionalidade e arguições de
descumprimento de preceito fundamental. Fica claro assim que a emenda
Nazareno carrega dois intentos. No geral, bloquear a vigência de normas
que o estamento político possa considerar contrárias ao seus interesses,
a exemplo de determinadas regras do jogo eleitoral.
No particular - e muito mais importante -, o que se quer é mudar
decisões do STF coerentes com o caráter laico do Estado brasileiro. Em
maio do ano passado, julgando ações impetradas pela Procuradoria-Geral
da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, a Corte
reconheceu a união estável de casais do mesmo sexo. Há duas semanas,
diante de ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Saúde, autorizou o aborto de fetos anencéfalos.
À época da primeira decisão, as bancadas religiosas da Câmara,
notadamente a Frente Parlamentar Evangélica, presidida pelo deputado
João Campos, do PSDB goiano, não conseguiram incluir na pauta da CCJ o
projeto de Nazareno. Agora, a pressão funcionou. Em tempo recorde, a
proposta entrou na agenda, foi votada e aprovada. Tem um longo caminho
pela frente: precisa passar por uma comissão especial e por dois turnos
de votação na Câmara e no Senado, dependendo, a cada vez, do apoio de
3/5 dos parlamentares.
Mas a vitória na CCJ - uma desforra contra o Supremo - chama a
atenção para a influência dos representantes políticos daqueles setores
que gostariam que todos os brasileiros fossem submetidos a normas que
espelhassem as suas crenças particulares, como nos países islâmicos
regidos pelas leis da sharia, baseada no Corão. Não é uma peculiaridade
brasileira. Pelo menos desde 1973, quando a Corte Suprema dos Estados
Unidos legalizou o aborto, a direita religiosa do país deplora o seu
"ativismo".
A diferença é que, ali, nenhum parlamentar, por mais fundamentalista
que seja, ousaria propor a enormidade de dar ao Congresso o direito de
invalidar uma decisão da mais alta instância do Judiciário. Seria um
escândalo nacional.