domingo, 15 de abril de 2012

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Demóstenes

08 de abril de 2012 | 3h 05
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
Hérmias foi um político afortunado, mas caído em desgraça por trair o rei da Pérsia em favor de Felipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno. Demóstenes, inimigo de Felipe e do soberano persa, aproveitou a deixa e, no parlamento de Atenas, denunciou as vilanias de Hérmias. Escutemos o discurso do bravo Demóstenes: "O agente e cúmplice de Filipe (...), durante a ação que Filipe prepara contra o Grande Rei (persa), foi finalmente preso. Assim, o Grande Rei virá a conhecer toda a trama e não através de nossas acusações, que poderiam parecer geradas pelos nossos interesses particulares, mas diretamente através do principal artífice executor" (Demóstenes, Quarta Filípica, 10).

A prisão de Hérmias ocorreu na luta pelo controle de Bizâncio. Ele foi torturado segundo as técnicas habituais. Impressiona, no discurso do insigne Demóstenes, o silêncio sobre o jeito como o soberano persa encontrou a "verdade". Como diz Luciano Canfora, o retor grego "tinha plena consciência dos 'métodos' com que o rei da Pérsia arrancava a verdade de suas vítimas". Demóstenes sabia ser valente nas bravatas, pisoteando a desgraça de um adversário fraco (Um Ofício Perigoso, Editora Perspectiva).

O mais vil em Demóstenes não é a sua bravata. Ele sabia de antemão, como indica ainda Luciano Canfora, o conteúdo das confissões que seriam arrancadas de Hérmias, pois tinha espiões entre os inimigos. O pior fato, calado pelo político na sua arenga aos parlamentares, é que ele mesmo, o bravo perseguidor de corruptos, era um corrompido: seu nome estava no livro-caixa do "Grande Rei". O fato foi descoberto quando Alexandre, sucessor de Felipe, abriu os arquivos persas após sua vitória. Canfora indica o passo de Plutarco (Vida de Demóstenes, 20), mas não cita o que diz o filósofo sobre o nosso herói de reputação ilibada.

Escutemos: "Demóstenes era homem em quem não se poderia muito confiar no campo das armas, nem era ele muito prevenido contra a corrupção dos presentes e doações; pois, embora fosse impossível que Felipe o conquistasse, ele, no entanto, se deixava comprar a preço do ouro e da prata que vinham de Susa e de Ectabane. Disposto a louvar os belos e gloriosos feitos de seus velhos ancestrais, ele não seguia ou imitava seus exemplos". Susa, Ectabane e Babilônia eram cidades nucleares da Pérsia antiga... Plutarco, mestre da ética ocidental, com poucos vocábulos diz tudo sobre o duplo lado de um parlamentar oficialmente impoluto.

Uma prática nefanda, sempre em voga na vida política desde os tempos gregos, é a técnica do desmascaramento alheio para preservar a própria face. A máscara, que todo ser humano usa para guardar os próprios segredos, serve como arma de proteção e ataque. Todo indivíduo maneja a própria máscara e, "como ator, nela se transforma" (Elias Canetti, O Personagem e a Máscara). Quem pretende desmascarar os semelhantes deles retira a defesa e o possível ataque no mundo social. Desmascarar é cobrir o rosto com uma outra máscara, a de assassino da vida moral alheia. O pior inimigo de qualquer sociedade é o desmascarador, o Demóstenes que lateja em todo poderoso.
Raros parlamentares, na História ocidental, podem estar seguros de que o livro-caixa, espelho que revela o seu verdadeiro semblante, jamais virá à luz diurna. Douto e ardiloso, Bismarck, o chanceler de ferro: "Ah, se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas... e as leis!"

O desmascarador pode ser movido por vários motivos: o ressentimento, a inveja, o ódio sectário, a concorrência infeliz, as desilusões financeiras, amorosas, etc. Não raro, ele é movido por algo que, em outro tratado de Plutarco, se designa como kakourgia, o erotismo de ver o mal que se abate sobre os demais. Na língua alemã existe o termo Schadenfreude, alegria com a tristeza do próximo.
Quando se diz que alguém finge ser honrado como os varões de Plutarco, não se tem ideia exata do pretendido por ele em suas biografias de indivíduos ilustres. Cada herói grego tem ali o contraponto de uma personalidade romana. Tal forma estilística serve para analisar os personagens em perspectiva, comparando virtudes e defeitos dos retratados. Não existe grego ou romano absolutamente puro. Fino observador ético, Plutarco mostra os erros dos generais, políticos, pensadores, sobretudo o seu excesso de virtude transformado em vício. O conceito filosófico para designar tal inchaço é hybris, orgulho sem medida, usado nas tragédias atenienses. Na Ética de Spinoza, o mesmo conceito recebe um nome exato, existimatio: a ideia de si mesmo que tem o soberbo, julgando estar acima dos demais. O soberbo imagina ser lícito desprezar, caçoar, humilhar os fracos e "inferiores". O desmascarador é atacado pela hybris (na religião cristã, o pai da mentira, Lúcifer, é soberbo) e se compraz em sua almejada preeminência sobre os semelhantes.

Ainda Spinoza, no Tratado Político, aponta os intelectuais como ícones da soberba. "Os filósofos concebem as afecções que lutam em nós como vícios nos quais os homens caem por sua falta. Por tal motivo eles se habituaram a ridicularizar e deplorar tais afecções e, mesmo, as detestar se desejam parecer mais imbuídos de moral. Acreditam agir divinamente, elevados ao cume da sabedoria ao elogiar, entusiastas, uma natureza humana inexistente, invectivando em discursos a que existe na realidade". Seguidor de Maquiavel, ele arremata dizendo que os políticos não possuem tal soberba, embora vivam construindo armadilhas para os seus iguais e para os governados. Quando um político assume a máscara do moralista para destruir os seus pares, trata-se de astúcia imprudente. Pois a pedra colocada por ele na trilha dos outros, com muita probabilidade, o fará tropeçar. Afinal, todo livro-caixa oculto, cedo ou tarde, pode ser aberto.