Golpes de Estado
29 de abril de 2012 | 3h 07
ROBERTO ROMANO, filósofo,
professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp); é autor, entre outros livros, de "O Caldeirão de
Medeia"(Perspectiva) - O Estado de S.Paulo
A palavra "golpe" hoje circula no Brasil em todos os
ambientes. O tema tem alcance histórico. O moderno poder político é
movido por golpes canhestros ou eficazes. Basta consultar a crônica da
Europa para verificar que todos os modos legítimos de mando foram
violentados por golpistas de várias tendências.
Assim se afirmou o poder de Luís XI e de Henrique IV, o mesmo
ocorrendo com Robespierre e, depois, com a família de Napoleão. Pétain e
Laval encerram a fieira do golpismo. Na Inglaterra, a ditadura de
Cromwell afastou monarquistas e liberais (Levellers) da Revolução. Em
Portugal, o golpe determinou a luta de Pedro IV, o nosso Pedro I, contra
o seu irmão Miguel. O século 20 português conheceu golpes continuados. O
fascismo italiano foi uma série de golpes, o mesmo na Espanha. Na
Alemanha e na Rússia do século 20, regimes virulentos dominaram o Estado
à força de golpes.
No Brasil, temos os golpes do imperador, dos regentes, dos oficiais
que derrubam a monarquia, de Getúlio, que instalou uma ditadura feroz,
dos civis e militares erguidos contra a ordem estabelecida em 1961 e
1964. Depois, o golpe dentro do golpe no Ato Institucional n.º 5 (AI-5),
o golpe do chamado Pacote de Abril, etc. Setores das esquerdas falam
hoje da imprensa golpista, no mesmo passo em que as direitas bradam
contra o revanchismo.
É preciso não banalizar a noção de golpe, cujo fim é impedir a força
de adversários no Estado e nas sociedades. Eles são propositivos se
buscam impor formas de pensamento e suspendem os mecanismos jurídicos
das anteriores formas de poder. Por não terem origem nas urnas, os seus
atores se legitimam invocando a urgência (o Estado estar-se-ia
corrompendo) ou a necessidade. Foi assim no AI-1: "A revolução vitoriosa
se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela
eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais
radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder
Constituinte, se legitima por si mesma". O golpe aposenta o voto, cassa
mandatos, fecha partidos.
Importante estudo vem de Gabriel Naudé nas Considerações Políticas
sobre os Golpes de Estado (1640). O texto pode ser lido online na
Biblioteca Gallica. Naudé situa o golpe no campo da prudência. Ele
critica a divisão tríplice daquela virtude feita por Justo Lipsio: a
leve - dissimulação e desconfiança na ordem política; a sórdida, que
consiste "em adquirir amizades e serviços de uns enganando outros por
falsas promessas e mentiras, presentes e outros meios"; e a virulenta,
"que se afasta totalmente da virtude e das leis". Segundo Naudé, tal
fracionamento é inútil, pois todas as prudências dependem de uma só,
ilustrada por Luís XI, o "Rei Aranha", cuja máxima era: "Quem não sabe
dissimular não sabe governar". A regra dos governos reside na
desconfiança universal e na dissimulação, que consiste ou em omitir -
pretender que nada foi visto pelos poderosos - ou "na ação e na
comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos por meios
encobertos". Omissões e comissões nutrem os poderosos e fornecem "os
diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes para manter
sua autoridade e a situação do público" sem "parecer transgredir o
direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça".
Um golpista indicado por Naudé é Dionísio, tirano de Siracusa.
Querendo impedir as reuniões dos opositores, agendadas para a noite, ele
afrouxava sem alarde as penas dos assaltantes... Golpes incluem o
segredo das ações "extraordinárias que os príncipes são levados a
executar nos assuntos difíceis e desesperados, contra o direito comum,
sem mesmo guardar alguma ordem ou forma de justiça, prejudicando o
interesse do particular em benefício público". Rapidez, quebra de
costumes e de jurisprudência integram os golpes. Neles "vemos cair a
tempestade sem ter ouvido os trovões (...), as Matinas são entoadas
antes de o sino tocar, a execução precede a sentença. Fulano recebe o
golpe que pensava aplicar, sicrano morre, imaginando estar seguro".
Truque jurídico golpista: "O processo é instruído após a execução". A
nova ordem livra-se das "pequenas formalidades exigidas pela Justiça".
Naudé profetiza os regimes sangrentos do século 20. O golpe (similar
ao cometa e ao terremoto), afirma ele, deve ser tido como exceção. (Carl
Schmitt tem muito a dizer sobre esse assunto.) Nele o político precisa
ser visto "como o pai que cauteriza um membro do filho para salvar a sua
vida". O golpe justifica-se ao abolir "privilégios, direitos,
franquias, usufruídos por alguns governados em prejuízo da autoridade
principesca".
Os golpes devem ser radicais como os "cirurgiões competentes que, ao
abrir uma veia, tiram o sangue para limpar os corpos de seus humores
nocivos". Segundo Naudé, eles precisam ser fulminantes e despercebidos.
Não existe ação eficaz se os planos golpistas são publicados. Jamais
ocorreu golpe sem a purga dos "membros apodrecidos": o golpe é
intolerante e ignora "as pequenas formalidades da Justiça". O que produz
a defesa dos golpes em maquiavélicos como Naudé? As guerras dinásticas e
de religião na Europa. Mas o golpe, longe de sanar as guerras civis, as
perpetua, levando-as ao plano internacional. Quem deseja o convívio
político segue as "pequenas formalidades" jurídicas. Sem elas ninguém
está seguro, nem mesmo os golpistas, pois os regimes não são eternos e o
golpista de hoje é a vítima do golpe, amanhã.
A democracia exige simultaneidade irredutível das diferenças
ideológicas, nela não existem inimigos, como propõe Carl Schmitt,
somente adversários que merecem respeito e jamais ataques fratricidas.
Qual o terreno fértil dos golpes? A desconfiança, a dissimulação, os
ódios espalhados pelos golpistas que empesteiam e sufocam a vida
política. Tais são os primeiros e últimos obstáculos a serem vencidos.