sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Razão de Estado, Roberto Romano

 Roberto Romano : Primeiro semestre de 2010.

A razão de Estado
Roberto Romano/Unicamp.

Partindo do Presente, para chegar à razão de Estado.

Mind Wars: Brain Research and National Defense Cover

Muitas pesquisas em neurologia tentam hoje edificar a humanidade em novos patamares de perfeição, adiando ao máximo o processo corrosivo imanente à vida. Cito Jonathan Moreno em Mind Wars (1). O trabalho é feito a partir de um núcleo significativo, a agência norte-americana DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency). O primeiro ponto a ser notado é a relutância ou medo dos cientistas e demais envolvidos nos projetos, em tratar abertamente o tema da pesquisa. O segredo, essencial na razão de Estado, penetra até o mais comezinho procedimento dos laboratórios envolvidos. O velho conflito entre a transparência democrática e os cuidados com a segurança do Estado ressurgem a cada passo do estudo proposto por Moreno. Mesmo assim, grande quantidade de informação, diz o autor, está ao alcance do público. 

Assuntos como terrorismo são de difícil abordagem quando se trata de conversar com os pesquisadores. É singular o contraste entre o seu mutismo e a imensa quantidade de entrevistas dadas por eles mesmos e funcionários do governo após o 11 de setembro. Quando as televisões e demais órgãos midiáticos inundam olhos e ouvidos da população com alertas sobre armas biológicas ou químicas tal silêncio inquieta. Moreno exemplifica: ele integrou em 2005 uma comissão de aconselhamento destinada ao governo, sobre biodefesa e medidas contra atentados no setor. Os Proceedings of the National Academy of Sciences publicou um artigo descrevendo o potencial envenenamento do leite com botulismo. No entanto, ainda não se conseguiu fazer uma análise coletiva sobre os problemas éticos relativa à aplicação de saberes no setor.

O mesmo ocorre em outros campos da neurociência, sobretudo quando a segurança nacional é implicada. A revista científica Nature dedicou uma sequência se análises sobre o problema com o título de “Silêncio dos neuro-engenheiros”. Os pesquisadores, diz a revista, deveriam se preocupar com os motivos dos que financiam seu trabalho. Um trecho do editorial é eloquente quando se refere à DARPA : “a agência quer criar sistemas que poderiam unir mensagens como imagens e sons, entre cérebros humanos e máquinas, ou mesmo entre humanos e humanos. No longo prazo, os militares poderiam receber comandos via eletrodos implantados no cérebro. Eles também poderiam ser conectados diretamente ao equipamento de controle. Podem os neuro-cirurgiões apoiarem tais finalidades?”. Finaliza o editorial: “a sua pesquisa poderia efetivar tais fins, logo eles têm o dever de discutir suas opiniões, respondendo perguntas feitas pelos que se levantam contra o desenvolvimento de semelhantes tecnologias”. Mesmo assim, finaliza o autor do texto, muitos pesquisadores relutam em debater “o uso potencial militar daquela tecnologia, dizendo que o alvo da Agência, a interface entre cérebro e máquina ainda está muito longe de ser alcançado”. 

A revista, ao ouvir os pesquisadores, teve algumas respostas padrão às suas interrogações. Tres cientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia dizem que muitas tecnologias militares trazem resultados sociais positivos. Logo, as tecnologias particulares devem ser abordadas segundo méritos próprios, não pelo seu financiamento. Outro cientista ligado à DARPA nota que milhões de pessoas com defeitos físicos podem ser beneficiadas pelos novos tipos de prótese. Tal vantagem vale mais, pensa o cientista, do que os debates sobre a origem e a qualidade dos financiamentos. 

Dessa escuta dos pesquisadores, Moreno deduz algumas coisas. A primeira, é que eles têm, em geral, uma compreensível relutância em prejudicar os elos entre pesquisa e fontes de financiamento. Porque tornar públicas coisas embaraçosas para quem arca com os custos da pesquisa? Tal problema não reside apenas nas neuro-ciências. A segunda, é que seria preciso clareza quanto aos procedimentos, hipóteses, técnicas, o que supõe, da parte do público e dos que não fazem a pesquisa, acesso a informações que devem ser sigilosas e das quais não se tem, quando não se trabalha naquela pesquisa, certeza do que é um ponto sensível ou não. A maioria das pesquisas, depois do 11 de setembro, estão em situação similar, pois tocam em assuntos secretos. 

Secretos os procedimentos na área da física, da química, da biologia e adjacências. Mas, adianta Moreno, à diferença dos micróbios ou fissão nuclear, fazer coisas no cérebro pertence a um terreno ainda mais sensível. Pessoas que o pesquisam e desejam nele intervir trazem um problema pessoal, no seu corpo e no de seus sujeitos de pesquisa. Que se combine esta percepção com teorias conspiratórias sobre experimentos secretos patrocinados pelos governos e temos a receita para a cautela dos cientistas e técnicos que tentam influenciar o cérebro, sobretudo quando se trata de analisar o fundamento ético de suas elaborações. 

Assim, Moreno examina o funcionamento da DARPA para definir padrões de operação científica, alvos e meios. Ele começa com uma citação exemplar do Plano Estratégico da mesma agência, escrito em fevereiro de 2003, tendo em vista a Defesa Nacional. “As implicações de longo alcance de se conseguir o jeito de transformar pensamentos em atos, se isto puder ser desenvolvido, são enormes: imagine-se guerreiros norte-americanos que só precisam usar o poder do pensamento para fazer coisas à grandes distâncias”. 

Moreno começa a explanação apontando a paranóia que penetra a mente do grande público sobre as experiência governamentais em pacatos cidadãos comuns. No cenário, vem à memória as crenças em ETs, cientistas loucos, Frankenstein, espíritos de outro mundo e demais relíquias ou dejetos da cultura romântica contrária à ciência moderna. Tudo isso é verdade, anui o autor, no entanto, existe um núcleo de verdade naquela insanidade. Diríamos com Polonio, sobre Hamlet : “Though this be madness, yet there is method in’t”. Em todo caso, não se trata de uma paranóia vivida apenas nos EUA, mas no mundo. Moreno relata que, ao fazer conferências no Paquistão, um psiquiatra local lhe disse que as queixas de pacientes que se dizem vigiados, no cérebro, pela CIA, são grandes em número. 

E muitas formas antigas de controle mental hoje estão superadas diante das melhorias, se o termo vale aqui, na prática dos soldados, com as interfaces do cérebro e máquinas, além das drogas usadas para desarmar os inimigos, etc. Em 2003 o Diretor da DARPA, Tony Tether, em relatório para uma comissão do Congresso diz explicitamente que o alvo é explorar “as ciências da vida para fazer o guerreiro mais forte, mais alerta, mais resistente, e mais apto a curar”. O programa da DARPA intitulado CAP (Continuous Assisted Performance), continua ele, “está investigando meios de prevenir a fatiga e fazer com que os soldados fiquem acordados, alertas, e efetivos por mais de sete dias, sem sofrer nenhuma deteriorização mental ou efeitos físicos e sem usar nenhuma das gerações usuais de estímulos”. A função da DARPA é acelerar inventos, diminuindo a distância temporal entre um e outros, para que eles sejam aplicados aos soldados. Moreno ironiza um tanto ao dizer que cerca de 90% das iniciativas patrocinadas pela DARPA falham (como o caso, parece anedota, do elefante mecânico que deveria auxiliar na guerra do Vietnã). Como diz um funcionário da Agência, a DARPA “tenta fazer coisas que são consideradas impossíveis e achar um meio de fazê-las acontecer”. 

Em 2006 a Agência apresentou a seguinte agenda para financiamento governamental: “Aplicações da Biologia nas operações de Defesa”. Os itens principais eram os seguintes: “abordagens biológicas para manter a performance dos soldados, capacidades e sobrevivência médica em condições duras de combate”. Depois, “abordagens biológicas para minimizar os efeitos posteriores dos ferimentos em combate, bem como recuperar ferimentos e feridas de combate”. Em terceiro lugar, “abordagens para manter a saúde geral das tropas envolvidas em combate”. Análise “biomolecular de sistemas”, “abordagens biomoleculares de motores e instrumentos”, “compreensão dos efeitos no homem de armas não letais”, “tecnologias em micro/nano e acesso não invasivo de saúde, por exemplo, sinais vitais, química do sangue”. “tecnologias que permitam interrogatórios remotos e controle de sistemas biológicos no sistema, em escalas dos órgãos, tecidos, celulares e moleculares, investigação das interações entre forças físicas, materiais e biologia (exemplo, interface entre biologia e magnetismo), novas abordagens matemáticas e computacionais, para caracterizar e estimular processos biológicos complexos, novas tecnologias para reduzir drasticamente a logística para o tratamento médico in loco, sinais avançados para decodificar sinais neurais em tempo real, especificamente os associados com eventos cognitivo relevantes, incluindo redução de erros, e decisões no processo, novas interfaces e planos de sensores para a interação com o sistema nervoso central com o periférico (estruturas corticais e sub-corticais) com ênfase em não invasivas e /ou abordagens sem contacto, novas abordagens para entender e prever o comportamento de indivíduos e grupos, especialmente os que elucidam a base neurobiológica do comportamento e das tomadas de decisão, tecnologias para engenharia de campo em terapias médicas, no ponto de cuidados, como a produção de múltiplas drogas de uma simples pró-droga, ou adaptação de terapias para corpos de massas em amplo espectro, onde surja estresse. 

Qual o segredo da Agência DARPA? Não tanto os seus financiamentos, que giram ao redor de 3 bilhões de dólares, mas o uso dos seus intelectuais dedicados à inovação. É importante ressaltar que a DARPA não trabalha com os mesmo alvos da CIA, FBI e outros dedicados à espionagem. Noventa por cento de seus recursos são aplicados em pesquisa universitária de problemas vitais, incluindo o setor médico. Mas ela foi criada em 1958 para reagir aos avanços da URSS no campo dos satélites, a começar pelo mais famoso, o Sputnik. Como suas pesquisas nem sempre cumprem papel relevante em questões de segurança, o Congresso cortou seus recursos em data recente. Sua relativa transparência perto das outras agências, como a CIA, a faz alvo de críticas e relutâncias. Se querem vender algum projeto ao Pentágono, devem convencê-lo de que em algum ponto ele trará benefícios nos campos de batalha ou às redes de espionagem. Ela conseguiu isto com o projeto Staelth Fighter, um avião de combate ultra-sofisticado, mas ao custo de muito segredo, num dos projetos mais sigilosos do século vinte. Debates e denúncias sobre a possível quebra dos seus segredos movimentam a midia e setores políticos norte-americanos até hoje. 

Algumas cifras: o orçamento do Departamento de Defesa é de aproximadamente 68 bilhões de dólares. Mas tal número não inclui as pesquisas pagas pelo Pentágono, ou pelo “orçamento negro”, o qual, em 1990 era estimado por volta de 30 bilhões de dólares. Não se pode ter certeza se a CIA trabalha com pesquisas sobre o cérebro. O certo é que a DARPA é a única agência governamental interessada diretamente em tal sentido.

A doutrina e a prática da defesa nacional, nos EUA, implicam a colaboração de civis e militares. O que fornece eficácia à guerra e à saúde. Hoje, melhorias no conhecimento de certas doenças, como Parkinson e Alzheimer devem muito às pesquisas da DARPA. No caso do controle do cérebro, no entanto, a liderança é assumida pelos militares, verdadeiros visionários no setor. Algumas pesquisas tratam de assuntos bivalentes, civis e militares. Assim, as dedicadas à melhoria da memória e escaneamento do cérebro à distância (fluxo sangüíneo cerebral captado à distância, por meio de aparelhos, que medem o grau de estresse do cérebro do combatente). Pergunta : até onde é possível e permitido eticamente “melhorar” as faculdades humanas, tanto no campo intelectual quanto no emotivo? Quais ajustes serão feitos na vida social e dos indivíduos? Quais riscos, em longo termo, virão para as sociedades que caminharem naquele rumo? E o uso dos instrumentos, além dos fármacos, até onde podem ser assumidos sem danos para a estrutura somática e anímica das sociedades ? E isto, sobretudo porque eles agem no sistema nervoso, mesmo em meios não estéticos, como “armas não letais” e acústicas quase desapercebidas que seriam, em tese, “moralmente superiores” do que as letais e serviriam para acalmar rebeliões, etc., apresentam elementos químicos ainda não plenamente testados e que não foram ainda discutidos e sancionados pelo ordenamento jurídico internacional. 

Toda a propaganda dessas pesquisas trazem a promessa e a esperança de que elas ajudarão a manter a paz nas e entre as sociedades. Mas, diz Moreno, o triste fato é que não existe nenhum mercado onde comprar a mercadoria “paz”. A violência tem sido a norma da vida humana, desde o seu início. As novas técnicas poderiam trazer paz, mas também, e notemos o também com toda a sua promessa de pavor, poderiam trazer mais guerras e mais desajustes no ser humano. Aqui, diríamos, muito pode ser discutido a partir das doutrinas de Rousseau, sobre as consequências danosas da técnica e da ciência na vida societária. 

A guerra é uma atividade humana sujeita a regras, apesar dos cínicos de hoje. E tais regras nem sempre devem sua origem aos sentimentos humanitários, mas estratégicos e políticos. A começar com a proteção dos próprios soldados, ou civis, em caso de captura pelos inimigos. Na era da neurociência, quais regras devem ser esperadas? A manipulação mental pode ser mais insidiosa e mais eficaz do que torturas e medidas que não são biológicas nem tóxicas, mas permanecem sem muitos exames. 

A neurociência progride em número de praticantes e pesquisas. A Sociedade para a Neurociência, fundada em 1970, hoje conta com mais de 35 mil aderentes. Também ocorre a explosão de artigos, livros, etc no mesmo período. Eles implicam saberes em cálculo, biologia geral, genética, fisiologia, biologia molecular, química geral, química orgânica, bioquímica, física, psicologia comportamental, psicologia cognitiva, psicologia perceptiva, filosofia, teoria computacional. Ela é uma ciência do sistema nervoso em toda a sua complexidade. A natureza e o significado das fibras nervosas que se espraiam pelo corpo inteiro, só em data recente começou a ser entendida. A neurociência nasce da integração de todos aqueles campos de estudo e das novas tecnologias para estudar o cérebro em pessoas vivas.

Evidentemente, as questões éticas trazidas pela neurociência são imensas. Elas implicam maestria para mudar a função cerebral com meios químicos, ou seja, potencialmente desregular a própria personalidade dos indivíduos. Mas também podem melhorar os tratamentos de doenças até hoje tidas como de árdua cura. Máquinas que captam imagens como a ressonância funcional magnética (FMRI), apresentam a oportunidade não apenas de estudar doenças psiquiátricas no cérebro em funcionamento, mas perceber como as pessoas pensam e aprendem, no átimo em que pensam. Há indícios de que a neurociência poderia ser habilitada para associar experiências de nossa vida interior com eventos objetivos em nossos cérebros. Assim, franqueza e decepção poderiam ser medidos e tal capacidade conduziria, talvez, a detectores instalados no cérebro. As máquinas que fazem a interação com o cérebro ajudam a compreender o modo pelo qual o último codifica e integra dados do sistema inteiro que liga o setor sensorial, motor e de memória. Tais avanços possibilitam o tratamento da paralisia, esclerose múltipla e outros problemas. 

Estímulos magnéticos transcraniais (TMS) e remédios estão sendo estudados para melhoria possível da cognição, com foco na atenção e na memória. Outros experimentos se ligam à fadiga, sono e demais funções, para as regular. Mas um grande número de pessoas devem ser expostas aos medicamentos e máquinas durante anos para chegar a alguns resultados. A dosagem dos avanços também é problemática. Ao lado das melhorias na memória, não se pode eludir o fato de precisamos esquecer dados desnecessários. Há um equilíbrio entre o que armazenamos e o que esquecemos. As melhorias podem desequilibrar a balança, prejudicando o núcleo da personalização. A vida oferece obstáculos e desafios, seria prudente interferir na lutam para orientá-la? Deveríamos aceitar que nossa personalidade seja medicalizada e se transforme em objeto de alvos técnicos? Tais questões encontram-se no mais profundo núcleo da bioética, depois da decodificação do DNA por Watson an Crick. Além da bioética, todo esse mundo novo (antevisto por Aldous Huxley, no Admirável Mundo Novo). 

A neurociência herda uma história de guerra, segredos de Estado, espionagem, torturas, e toda uma série de ações infernais, desde pelo menos a Guerra Fria, agora sucedida pela guerra ao terrorismo. Em 1950, o Conselho Nacional de Segurança escreveu um documento chamado NSC-68 : United States Objectives and Programs for National Security. A doutrina nele contida dizia que “é obrigatório que, ao construir nossa força, alarguemos nossa superioridade tecnológica por uma exploração acelerada do potencial científico dos Estados Unidos e aliados”. Meio século depois o presidente Bush, ao estabelecer a nova Estratégia de Segurança Nacional, nota algo similar: “Inovação nas forças armadas permanecerá em experimentos com novas abordagens da guerra, fortalecendo operações conjuntas explorando as vantagens da inteligência norte-americana, e assumindo todas as vantagens da ciência e da tecnologia”. O negociante, nas frases de Bush, prende-se aos negócios que exigem, sempre, “levar vantagem”.

Desde a Segunda Guerra Mundial o complexo militar acadêmico integra as economias. A Associação Das Universidades Americanas avalia que em 2002, aproxidamente 350 Colleges e universidades receberam contratos do Pentágono, sendo 60% em pesquisa básica. Os líderes do MIT contavam receber cerca de meio bilhão de dólares em contratos. Já a universidade Johns Hopkins recebeu 300 milhões de dólares. O governo federal norte-americano passou a interferir ativamente no setor quando na Segunda Guerra Roosevelt percebeu a relevância do setor científico e tecnológico nos esforços bélicos. O exemplo mais fácil é a energia consumida no projeto da bomba atômica. Mas todo o plano científico serviria aos fins da presidência. Assim, foi dado o ritmo do que ocorreu na Guerra Fria, com o Estado de Segurança Nacional.

Em 1947 ocorre uma torsão na política externa americana. Aquela potência se torna um Estado dominante, mas indeciso se deveria usar a sua força econômica para assumir a hegemonia planetária. Antes vigora o isolacionismo mantido desde George Washington. Com Truman ocorre a mudança de política exterior. Os auxiliares daquele presidente, acadêmicos, cientistas, líderes empresariais e financeiros, executam rápida expansão dos poderes federais, sobretudo na segurança nacional. A URSS, cuja política também unia ciência, técnica, poder bélico, é o alvo principal. Assim, quase toda a pesquisa entra no círculo da segurança. Segundo Moreno, “assim como a Guerra Civil transformou o caráter doméstico da América, a Segunda Guerra Mundial transformou a face da América mostrada ao resto do mundo”. Os EUA se tornam um “Garrison State” (Harold Lasswell) nação em contínuo conflito. Surgem duas faces da política externa em termos doutrinários: salvar a democracia fora dos EUA e maior controle interno do Estado. Conservadores norte-americanos temiam que tal política poderia trazer danos à liberdade individual, ameaçando a essência norte-americana. Se o segredo e a espionagem se espalham, onde ficam as franquias, a accountability e outros elementos democráticos ? Liberais como John Dewey são ambivalentes quanto ao empenho americano na Segunda Guerra. Eles temiam as consequências de longo termo trazidas pela militarização dos EUA. 

Tal oscilação política não é nova no mundo anglo-saxão, numa cultura política que vem do Renascimento. Já Francis Bacon a indica na utopia New Atlantis (1627). Alí, o Chanceler da Inglaterra e admirador de Maquiavel e da razão de Estado fala sobre o segredo e o controle dos cidadãos por métodos científicos. Sobre o segredo, diz o sábio personagem da narrativa, “discutimos quais inventos e as experiências devem ser partilhados com o público, e quais não; e tomamos de todos um juramento de segredo (…) de todos os que julgamos aptos a manter o sigilo; alguns dos segredos nós revelamos, de vez em quando, ao Estado, outros não”. Mas no século vinte as situações se transformam e ficam mais complexas porque, segundo o historiador J.W. Grove, o controle governamental sobre os inventos e experiências não se deve apenas à segurança nacional, mas também ao “domínio comercial e econômico sobre outras nações, especialmente as consideradas potencialmente hostís”. No entanto, pode-se dizer que alguns resultados científicos trazem inequívocos benefícios, como o caso da penicilina, cuja manipulação foi apressada pela Segunda Guerra Mundial. 

Aparente paradoxo: ciência e segredo em seu princípio são antitéticos. A ciência, se quiser avançar com eficácia, precisa disseminar seus resultados. Ela não pode ser conduzida por inventores isolados mas exige comunidade, especialistas qualificados em áreas discretas. Tentativas de fazer ciência escondida dão poucos resultados. O segredo também pode ser cobertura para a ciência incompetente, meio de evitar a vergonha pública do governo ou cientistas. Como evitar o paradoxo, visto que segurança nacional e militar é segredo e nela se encontram financiamentos de pesquisa? A comunidade científica perde autonomia, base da sua existência. Este é um problema ético a ser examinado com máxima cautela. Quando se efetiva uma “pesquisa” com o corpo de soldados (voluntários…se tal coisa for possível) é possível controlar os procedimentos? Ao examinar o LSD aplicado aos guerreiros nos anos 1960, o próprio inspetor geral do Exército norte-americano concluiu que, na melhor das hipóteses, a prática foi inconsistente com os pressupostos científicos. Algo pior ocorreu com as vítimas e voluntários do projeto Manhatan no caso das injeções atômicas. E vem uma fieira de horrores em nome da ciência e do segredo. Muito material também pode ser encontrado, nesses campos, para uma reflexão sobre as críticas de Rousseau às técnicas e às ciências.

Financiamentos para a pesquisa mudam conforme as prioridades do governo. A partir de 2001 eles foram postos a serviço do anti-terrorismo, visando as armas químicas e biológicas. Foram criados oito centros de biodefesa desde 2003, com 350 milhões de dólares investidos. Um perigo : parte da Lei contra o Bioterrorismo de 2002 determina que certas drogas, sem teste para efetividade e segurança de seres humanos podem ser aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration). Elas devem ser testadas em dois animais. Quem adquire tais medicamentos produzidos em emergência sigilosa? O governo. Elos interessantes surgem entre poder público e companhias farmacêuticas, com lucros ainda mais interessantes.

No domínio das metáforas que pretendem dar conta da atividade cerebral, existe matéria para densas reflexões. Sendo recente a informação de que o mais simples ato exige o concurso de centenas de milhões de neurônios e os mesmos neurônios podem ser envolvidos em muitos atos diferentes, Carl Zimmer (http://carlzimmer.com/articles/index.php) compara o cérebro em movimento a uma sinfonia fantástica, “orquestra de neurônios espalhados pelo cérebro”. Não é necessário monitorar o cérebro inteiro para achar os neurônios envolvidos em certo ato ou pensamento, mas é possível localizar uma subsérie de neurônios para seguir diferentes ações. Usando a metáfora de Zimmer, precisamos ouvir poucos instrumentos para imaginar qual sinfonia está sendo tocada. Este é o princípio que permite experimentos de interface entre cérebro e máquina com animais. Um pequeno número de neurônios é seguido, talvez uma dúzia, enquanto o animal é treinado a apertar a barra para obter bebida. As atividades dos neurônios são gravadas e depois que a alavanca é desconectada da bebida, o animal aprende que o único jeito de conseguir seu alvo é pensando em pressionar a barra. 

Os modernos mecanismos de imagens indicam acesso mediado para os próprios pensamentos. É possível criar relações simbióticas entre seres humanos e criações cibernéticas. Tais relações podem incluir arranjos ambientais ou se estender à conjunção física entre humanos e máquinas. O termo “organismos cibernéticos”, ou “cyborgs” foi cunhado por cientistas da NASA em 1960, tendo em vista a descida na Lua no período Kennedy (Guerra Fria), finalizada em 1970. Mas as teorizações sobre o fato vinham de bem antes. (2)

Qual o sonho dessas pesquisas? Correlacionar a atividade neural com a intencionalidade subjetiva. Cada neurônio fornece um sinal elétrico passível de ser detectado, mesmo quando em isolamento. Monitorar bilhões de neurônios, para saber qual está envolvido em um pensamento particular é impraticável. Mesmo ações simples, no entanto, requerem a atividade de centenas de milhões de neurônios, e o mesmo neurônio, como foi mencionado, pode estar envolvido em diferentes atos. 

Em 2005 as maiores universidades e instituições militares dos EUA exploravam vias para que pessoas pudessem usar “esqueletos externos”, ou seja, mecanismos que substituiriam suas pernas, joelhos, braços, etc. E também para aumentar a agilidade dos mesmos instrumentos naturais. A DARPA tem comom um eixo fundamental de pesquisas conseguir a interação de cérebro e máquina, o Human Assisted Neural Devices Program (Hand) Programa de Dispositivos Humano Neurais Assistidos. Um deles, explica o major do Departamento das Ciências, toma uma área que seria compreendida por estudos multidisciplinares, O programa criaria novas técnicas para aumentar a performance humana, por meio de códigos não invasivos de acesso ao cérebro em tempo real e integrado no dispositivo periférico ou sistema operacional. A DARPA investiu 24 milhões de dólares no programa de interação cérebro máquina. 

Cenário de ficção científica: (3): um exército de robôs capaz de movimentos precisos, cada um movido por indivíduos a centenas ou milhares de kilômetros de distância. Tais automata poderiam realizar tarefas árduas para humanos, mas úteis em táticas perigosas. Controladas por gente, teriam o benefício da criatividade, cuja falta prejudicaria o mais avançado andróide. Num monitor, o “navegante” enxerga pelo robô e por outros mecanismos. O robô responderia aos comandos no mais rápido tempo, porque leria as intenções do operador (os seus próprios pensamentos) e não apenas responderia aos músculos do operador por meio de um aparelho mecânico. Já é tecnicamente possível transmitir idéias sobre movimento do pré motor cortex (situado na frente do cortex motor) para um dispositivo mecânico. Um neurobiólogo da Universidade Duke implantou contactos no cortex motor de um macaco e o conectou a um computador que controla um braço robótico. Os braços do macaco são presos para baixo e um pedaço de laranja é posto na extremidade do braço robótico, perto da boca do macaco. O motor de neurônios do macaco brilha quando ele tenta pegar a laranja, movendo o braço via computador. Gradualmente o macaco aprende como controlar o braço com precisão. Então ele entende não ser preciso mover o braço para o dispositivo trabalhar com o pensamento ele apanha a laranja. Seus braços permanecem como apêndices. 

Um outro grupo de cientistas mostra que a intenção pode ser lida diretamente da atividade no cortex parietal. Fios são inseridos no cortex parietal de macaco, e antes que eles toquem um cursor para conseguir o premio, sua atividade neural no “planejamento” de tocar o cursor é gravada. O premio, então, varia e são gravadas as espectativas para cada premio, todas elas traduzidas da ativação neural. A equipe é capaz de predizer qual premio o macaco espera ganhar, baseada nos dados sobre quais neurônios brilham em seu cérebro. Os pesquisadores não detectam os neurônios ligados ao movimento do músculo, mas as células que correspondem ao plano do movimento. Segundo tais definições, eles são capazes de ler os pensamentos do macaco. 

Na universidade da Califórnia, uma pesquisa financiada pela DARPA tenta substituir regiões cerebrais danificadas com um microchip que une mensagens ao seu destino último, sem mediação normal. O impresso no chip é baseado no circuito de fatias do hipocampo de um rato. Os mais otimistas dizem que a coisa funcionará um dia, com tratamento à base de cilício para desordens neurológicas como o mal de Alzheimer. Pode ser predito que com as próteses neurológicas soldados podem ser mais fortes, com braços robóticos e pernas. Os pilotos controlariam veículos com a força do pensamento intencional. Sensores que permitem feed back do robô para o homem é crucial para informações sobre ambientes hostís. Existe um robô computadorizado chamado RHex (rex) que pode controlar o cérebro de um rato. Uma companhia chamada Cyberkinetics tem aprovação para implantar chips no cortex motor de quadriplégicos para que eles possam controlar um mouse. Centenas de pessoas já usam neuroestimulantes internos para epilepsia, coisa inimaginável antes.

As técnicas mencionadas têm problemas práticos. Antes dos implantes, há um imenso trabalho biológico a ser feito, cuja extensão pode ser indefinida. É perigoso colocar implantes em seres saudáveis. Os primeiros neuromotores foram associados a várias mortes e taxas de infecção elevadas. Ainda não existem dispositivos que possam captar atividade cerebral com a precisão almejada pela DARPA, exércitos ou médicos.

Além disso, os braços robóticos (ou outros membros) precisariam responder ao cérebro. A interação cérebro-máquina deve ser uma rua com dois sentidos, não apenas um eletrodo passeando por um tecido da mente, empurrando certa máquina. Na Duke university se pesquisa um “feedback tátil” onde o braço do robô identifica quando ele contacta uma outra superfície e remete sinais elétricos ao cérebro, regiões sensórias e estimuladoras. Diz o professor Miguel Nicolelis, “o truque é dar o feedback certo e assim o cérebro do macaco irá incorporar o robô como se ele fosse parte de seu corpo”. A chave para conseguir isso pode estar na nanotecnologia, que proveria o que Nicolelis chama “links diretos entre os tecidos neurais e máquinas”. É bom recordar que Nicolelis é um brasileiro que, na sequência do “Brain drain”, trabalha nos EUA em pesquisas pioneiras.

Uma equipe do Downstate Medical Center no Broklin, financiada pela DARPA, implantou eletrodos num cérebro de rato e ordenou que ele subisse pelos caminhos por ela definidos (labirinto, rampas, árvores, etc), em impulsos endereçados diretamente por centros cerebrais. Os pesquisadores podiam “ver” pelos olhos do rato, os caminhos, etc., num lap top ligado a ele. Tal experiência, no entanto, foi publicada mais como curiosidade científica, sem empolgar a comunidade. Mas o setor da defesa se interessa por semelhantes experimentos, no caso, por exemplo, de usar bichos como detectores de bombas, com sua posterior limpeza. Um cientista elogia o rato, “animal com 200 milhões de anos de evolução atrás de si. Ratos possuem uma inteligência nativa que é melhor do que toda inteligência artificial”. Fica a pergunta: se é permitido controlar mentes de ratos, e dar-lhes ordens, quais limites deveriam ser obedecidos nos casos de seres humanos? Além disso, uma questão ecológica: pesquisadores conseguiram “dar ordens” a moscas de frutas, que prejudicam colheitas. Mas segue o desequilibrio na ordem dos seres. Quais consequências ele traria para o todo do ambiente? 

Todas essas questões levam a problemas éticos discutidos pela filosofia desde a sua aurora. Elizabeth de Fontenay tem um livro sobre o tema, chamado justamente “O silêncio dos animais” (4). A autora discute o problema do Logos, que separaria os humanos dos não humanos. Ela cita uma frase candente de Levi-Strauss: “o que fazemos aos animais é indício do que fazemos ou faremos com os humanos”. A frase não é exatamente esta, mas o sentido é tal, quem ler o volume a encontrará. A própria relação dos povos dominadores antigos, gregos e romanos, mostra que a linha do logos é uma fronteira imaginária que dividiria seres “superiores” e “inferiores”. A onomatopéia posta na palavra “barbaros” é prova. A filmografia traz interessantes pontos de vista sobre o tema. Basta recordar Blade Runner de 1982 ou a filmagem de “Eu, robô”. Se é possível controlar criaturas cujas partes são animais de um lado e máquinas de outro, seria permitido controlar seres humanos acoplados a máquinas? A companhia Nippon Telegraph & Telephone fez uma experiência com correntes elétricas, na qual um ser humano era dirigido, irresistivelmente, a caminhar para a direita, quando desejava ir para o sentido oposto. A justificativa da empresa é que ela queria gerar um programa de ensino de ballet para cumprir tarefas dificeis. “É como se fosse certa mão invisível que fosse posta dentro do cérebro”. Quem ignora a famosa “mão invisível” de Adam Smith, que orientaria o mercado para o tom harmônico apesar do aparente caos dos desejos e interesses individuais?

Além desse aspecto direcional, existe a tentativa de aumentar a inteligência dos seres humanos acoplados a máquinas. Máquinas ainda não adquiriram os meios para responder em tempo certo a situações não previsíveis. Ainda a filmografia ajuda a entender este ponto, como no caso de Kubrick, no Dr. Strangelove. Esta é uma preocupação da DARPA. Trata-se do ideal da computação de um perfeito sistema cognitivo e maquinal. Isto é o problema antigo do automatismo. Spinoza distingue do péssimo automatismo, o que é gerado pelo domínio do corpo sobre a mente e o correto, que define o domínio da mente. Quando aprendemos a calcular bem, repetimos sempre automáticamente. O mesmo quando aprendemos a bem nos comportar. Este automatismo é um o maior problema da ética: uma vez automatizado um valor, pensamento ou procedimento, é quase impossível mudá-los. Assim, a idéia de homens máquina sempre foi um desafio para os pensadores. Os românticos do século 19 exorcizaram tal antropologia, cujo ápice ocorre com La Mettrie no século 18, cujo livro é intitulado “O homem máquina”. A mesma concepção de ser humana foi definida por Descartes e seguidores. Autômato é artefato que move a si mesmo, aparelho que imita os movimentos do ser vivo por meio de um mecanismo interior. Descartes e La Mettrie, consideram o homem como um autômato (animal-máquina), sistema que contem em si as fontes de sua determinação. Leibniz considera “cada corpo orgânico de um ser vivo como uma espécie de máquina divina ou autômato natural que ultrapassa infinitamente todos os autômatos artificiais” (Monadologie). 

Horst Bredekamp no livro Estratégias Visuais de Thomas Hobbes, o Leviatã como arquétipo do Estado Moderno, (5) discute a produção imagética do Estado e a imagem do célebre frontispício. O autor expõe a gênese das figuras utilizadas pelo filósofo e as suas fontes nas teorias opticas, na retórica, e nas tradições místicas, elementos que integram a imagem do Estado enquanto força que domina os indivíduos. Seu mote encontra-se na segunda parte do Leviatã : “A causa final ou desígnio dos homens (que naturalmente amam a liberdade e o domínio sobre os outros) na introdução daquele controle sobre si mesmos, no qual os observamos viver nas repúblicas e podem prever a sua própria preservação, e uma vida alí com maior contentamento; ou seja, colocando-se eles fora da condição miserável da guerra que segue (…) as paixões naturais dos homens quando não existe um poder visível para mantê-los no respeito, e prendê-los pelo medo da punição e, pela ação de seus pactos, a observação daquelas leis da natureza postas nos capítulos 14 e 15” (Leviatã, Segunda Parte, Of Commonwealth).

Hobbes, argumenta Bredekamp, inicia a moderna teoria do Estado a partir da optica, matéria que estudou durante anos e inseriu em sua obra principal com figuras tão cuidadosamente escolhidas que só podem resultar de estratégias visuais. O autor observa o De corpore (1655), onde Hobbes desenvolve sua teoria das marcas e sinais. As marcas ajudam a memória, os sinais definem-se por sua publicidade. Eles comunicam assuntos e podem dar inicio a ações. O sinal do Estado encontra-se na sua unidade. O contrato que o forma é mais do um acordo, pois trata-se de uma união real de pessoas (in personam unam vere omnium unio). Com ele, as vontades são reduzidas a uma só (ut unus homo vel unus coetus Personam great uniuscujusque singularis, utque unusquique auctorem se fateatur esse actionum omnium, quas egerit Persona illa, ejusque voluntati et judicio voluntatem suam submitteret). 

Mas fracassa a tentativa de Hobbes, visto que o sistema mecânico repousa sobre a organização material, cuja informação constitutiva assegura a estabilidade (no caso do Leviatã, a política) mas não as transformações. Quanto à informação necessária à geração ou corrupção, degradação ou complexificação, ela só pode ser externa. (6) Como também em Descartes, a máquina humana é governada externamente pela alma e se degrada por causas externas, físicas, diretamente ligadas à res extensa. 

Para Leibniz, ao contrário, existe uma indissociação do psíquico e do físico nos seres vivos e, neles, ações e reações são atribuídas à uma informação imanente e retroativa, o que Leibniz chama “enteléquia” (en telos) ou forma da alma, que lhe permite operar como uma “autômato espiritual”, como um ser independente da informação externa. “Se o corpo é uma substância e não simples fenômeno como o arco íris, nem um ser unido por acidente ou agregação como um monte de pedras, ele não poderia consistir apenas na extensão, sendo preciso conceber algo chamado forma substancial e que responde de certo modo à alma” (Leibniz, Carta a Arnauld du 14.07.1686). Assim, todo corpo possui um conatus interno, que não lhe vem exclusivamente de forças exteriores. Cada mônada possui uma estrutura na qual se inscreve sua história, um verdadeiro sistema autônomo e automático. A mônada, assim, dotada de impulso interno, “não tem portas nem janelas” porque “naturalmente nada nos entra no espírito de fora, é um péssimo hábito que temos, de pensar como se nossa alma receberia algumas espécies mensageiras e como se ela tivesse portas e janelas” (Discurso de Metafísica, XXVI). 

A mônada se organiza como percepção. Ela não percebe apenas a informação local de seu meio ambiente, mas registra de maneira confusa a totalidade dos dados do mundo e mantém na memória todas as mudanças percebidas. Como indivíduos, somos receptivos ao conjunto das condições ambientes, embora tal recepção seja vaga e imperfeita. “As percepções de nossos sentidos, mesmo quando elas são claras, devem necessariamente conter algum sentimento confuso, pois como todos os corpos do universo simpatizam, o nosso recebe a impressão de todos os demais, e embora nossos sentidos se relacionem ao todo, não é possível que nossa alma possa atingir a tudo em particular; é por isso que nossos sentimentos confusos resultam de uma variedade de percepções que são totalmente infinitas”. Assim, adianta nosso comentador, devem existir formas de percepção inconscientes, subliminares, que completam a percepção regional consciente. Aliás, toda percepção só pode se compreender com o modelo da percepção da infinitude dos pequenos barulhos do mar, que no entanto são percebidos apenas no único ruído de uma vaga.

A mônada percebe os eventos externos (representação interna) sem que o externo imprima nela sua imagem. Assim, a atividade cerebral perceptiva, segundo Leibniz, não é comparável à inscrição de um traço de informação , mas se parece mais à vibração que provoca um som: “seria preciso supor que na câmara escura haveria uma tela para receber as espécies, que não fosse fechada no seu panejamento, mas cheia de pregas, representando os conhecimentos inatos: que ademais, a tela ou membrana sendo tensa, tenha um tipo impulso ou força de agir, e uma mesmo uma ação e reação acomodadas tanto às pregas passadas quanto à novas impressões das espécies. E esta ação consistiria em vibrações ou oscilações, como vemos numa corda tensa quando é tocada, de modo que ela faria um som musical”. (Nouveaux essais sur l’entendement humain, II, 12,1). Cada mônada, na qual ressoa a informação universal, pode ser apreendida como um espelho, ou como expressão e modelo reduzido do universo, porque nela está contida a imagem, o eco, o sinal da totalidade das outras mônadas finitas. “Toda substância individual exprime o universo inteiro ao seu modo e sob uma certa relação, por assim dizer, o ponto de vista do qual ela olha” (Carta a Arnauld 14.07.1686)

Passemos à “tradução” moderna de algo similar ao que propõe Leibniz para o automatismo do ser vivo e consciente. Em 1930 Alan Turing definiu o conceito de computabilidade. Ele criou a “máquina Touring”, apta a descrever suas próprias operações. Num sumário fornecido pela DARPA, “dadas suas aptidões para processar conhecimento e refletir sobre seu próprio comportamentom sistemas cognitivos podem ser caracterizados como sistemas que sabem o que estão fazendo” (a DARPA sublinha a última frase). O esforço da DARPA é fazer com que computadores igualem a capacidade do cérebro de um primata. Como? Os atuais sistemas de computadores são lentos para tal fim. É preciso encontrar um sistema integrador qualitativo em vez de quantitativo para atingir a inteligência efetiva. Pergunta a DARPA: como produzir computadores com sistemas reflexo que operem em tempo real e tenham um olho voltado para si mesmos? A pergunta implica a consciência, ou melhor, a auto-consciência. E notemos que o modelo, longe de ser o humano, é de um primata. O salto seria a integração simbiótica entre cérebro e máquina. 

Os primeiros trabalhos nesse plano foram ideados por Alan Turing e Vannevar Bush e a  técnica chamada Memex. A contribuição de Turing foi anterior à Segunda Guerra Mundial, conduzindo à inteligência artificial como ela está hoje. Bush, do MIT, define sua memex como parte da “inteligência artificial aumentada”, um programa de pesquisa e de experimentos. Memex (memory extender, extensor de memória). A máquina, um computador (diz Bush no artigo As we may Think, de 1945) seria unida à uma espécie de biblioteca capaz de mostrar livros e filmes, criando automáticamente referencias entre diferentes midia. A partir dela foi possível chegar ao hypertexto, e a própria Web mundial. 

O filósofo Peter Skagestad, explica como a inteligência artificial (AI) e o aumento da inteligência (IA) são complementares: “Tanto a máquina de Turing quanto a Memex pretendem mecanizar funções específicas do cérebro humano. O que Turing tentou mecanizar é a computação e, mais geralmente, todo processo de raciocínio que pode ser representado por um algoritmo; Bush tentou mecanizar processos associativos pelos quais a memória humana opera. As duas máquinas também representam abordagens muito diferentes da mecanização. Especificamente, a máquina de Turing é digital, enquanto a de Bush é analógica. Máquinas digitais operam segundo pontos discretos e pode representar processos contínuos apenas em termos funcionais, ou seja, input-output: se, dado o mesmo input, a máquina produz o mesmo output como em algum processo natural, a máquina, dizemos, estimula o mesmo processo, sem atentar se o processo interno à máquina se parece, de qualquer modo, com o processo natural.

 A Memex, que chega a replicar a memória humana, corporifica certa memória artificial não foi pensada para ser rival da mente humana mas aumentar a capacidade desta última, trazendo dados mais rapidamente e os dados mais úteis. O que resultou em duas invenções complementares de redes e computadores pessoais. As duas servem como base para as pesquisas hoje feitas para encontrar o elo entre cérebro e máquina. E neste sentido, a orientação de Bush é a mais promissora. Isto porque, segundo Charles Sanders Peirce, filósofo americano do século 19 citado por Skagestad, o raciocínio não é mero algoritmom mas experimental. O mais indicado, portanto, seria investigar mais a máquina que podem executar deduções teoréticas com base na semiótica da significação, marca da cognição. Ou seja, seguindo o pensamento de Peirce, máquinas que tenham habilidade de operar com símbolos que brotam do cérebro experimental. O símbolo, como outros elementos externos, são relevantes na tarefa de pensar. 

Há um outro programa da DARPA chamado Aumento de Cognição (AugCog). Trata-se de medir a capacidade cognitiva de sujeitos em situação de estresse. Militares já vivem num ambiente cheio de máquinas, como se já estivessem unidos a elas numa relação simbiótica. Mas eles podem falhar numa situação de estresse, dadas as inúmeras operações concomitantes que devem ser resolvidas em segundos. Pilotar um avião, estudar o terreno para identificar alvos, decidir se tais alvos são civis ou não, manter ordens emitidas pelo comando geral, etc. tudo se complexifica na hora da ação. E inúmeros instrumentos devem ser manipulados quase simultâneamente.O programa de Aumento de Conhecimento visa aprimorar a memória para tarefas multiplas. Preciso voltar no tempo histórico e retroagir aos primeiros instantes do Estado moderno. Nele, a razão é o motor essencial, sendo que a corrente dos pensadores políticos que ajudou a instaurar o poder estatal gira ao redor da inteligência, da astúcia, com juízos diversos sobre a essência do ser humano que governa e do que é governado. 

Ceticismo político. 

No romance, filmado por Luchino Visconti, O Leopardo, Lampedusa termina a narrativa com um diálogo de surdos entre o príncipe de Salina, aristocrata que não aceita a mediocridade humana, e um ministro do novo reino italiano. O político fora até o palácio principesco para oferecer ao poderoso siciliano um lugar no Senado. Ao expor as vantagens do cargo, ele diz que seria possível, através da política, melhorar a sorte dos pobres, a ausência de desenvolvimento econômico, fazendo os sicilianos se tornarem melhores. A resposta inicial do principe é desconcertante: “os sicilianos não desejam ser melhores, porque julgam serem deuses. E ademais, após dominações múltiplas de todos os povos hegemônicos do Medieterrâneo, eles estavam cansados, mergulhados num sono que não querem deixar. E todos os presente magníficos do progresso, do bem estar, da ciência e das técnicas serão assumidos por eles como inconvenientes, porque lhes retirariam o sono, o sonho. Quando o político, na carruagem, se despede do aristocrata, este lhe diz em voz desolada :”Noi fummo i Gattopardi, i Leoni; quelli che ci sostituiranno saranno gli sciacalletti, le iene; e tutti quanti Gattopardi, sciacalli e pecore continueremo a crederci il sale della terra”. 

A desolação do homem superior não residia apenas numa derrocada de sua gente rica e refinada. Ele tem plena consciência de que os dominantes têm hora e data para mandar e para desaparecer do cenário político e mundano. Quando seu confessor lhe reprova, e à aristocracia, não defender a Igreja, o que traria a sua ruína econômica e social, o príncipe responde com clareza meridiana: “Non siamo ciechi, caro Padre, siamo soltanto uomini. Viviamo in una realtà mobile alla quale cerchiamo di adattarci como le alghe si piegano sotto la spinta del Mare”. À Igreja foi dada implicitamente a promessa da imortalidade, diz ele, modificando o dito evangélico de que as portas do inferno não prevalecerão sobre a Pedra na qual Pedro vigiará os céus e a terra. Tu est Petrus et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam. Entre a imortalidade eclesiástica e a vida dos indivíduos e classes, brota um abismo. “Per noi un palliativo che promette cento anni equivale all ´eternità. Potremo magari preoccuparci per i nostri figli, force per i nipotini; ma al di là di quanto possiamo sperare di accarezzare con queste mani non abbiamo obblighi; e io non posso preocuparmi di ciò che saranno i miei evntuali discendenti nell´anno 1960. La Chiesa sì, se ne deve curare, perchè è destinata a non morire. Nella sua disperazione è implícito il conforto. E credete voi que se potesse adesso o se protrà in futuro salvare sé estessa con il nostro sacrificio non la farebbe? Certo che lo farebbe, e farebbe bene”. (7)

As dimensões do tempo esmagam poder, riqueza, aristocracia. A Igreja não é Eterna, mas ela recebeu a promessa da imortalidade. Haverá um dia em que ela será chamada por Deus a prestar contas do seu rebanho e de si mesma. Este será o dia do Juízo Final, quando o tempo sumirá no abismo do Eterno, com todas as vaidades do mundo. É o que proclama o Apocalipse : “Ego sum alpha et omega, primus et novissimus, principium et finis”. ἐγὼ τὸ ἄλφα καὶ τὸ ὦ, ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἔσχατος, ἡ ἀρχὴ καὶ τὸ τέλος. (Apocalipse, 22-13), Os termos não deixam dúvida: com o Eterno se revelam aos bemaventurados o princípio (a base, o fundamento, ἀρχὴ e o fim τέλος . Não haverá mais tempo e espaço. Mas até aquele instante oportuno (Kayrós) a Igreja, por não ser Eterna, conhecerá o desespero, a tentação do nada, o mal. Na marcha rumo à salvação, ela passará por todos os príncipes, Estados, sociedades, classes, cujo tempo é finito, pura degração do Eterno. Nada no tempo é estável, durável, sobretudo os homens e seu poder. 

O tema da transitoriedade cósmica vem de longa data. Já os chamados pré-socráticos como Empédocles de Agrigento narram a guerra dos elementos, as passagen do amor ao ódio, a impossível paz sonhada pelos entes, sobretudo os pensantes. Como, se não for a Igreja ( e mesmo esta última, porque possui lado humano e pecador, transitório, a Eclesia militans) conseguir um Estado, ou seja, um poder estável, capaz de assegurar um mínimo de paz aos atormentados e atormentadores seres humanos? 

Consultemos um outro escritor italiano, agora Giacomo Leopardi. No livro Zibaldone, não por acaso traduzido recentemente para o francês com o título de Le massacre des illusions (8) diz Leopardi: “Acredita-se que o homem, por natureza, seja o mais social dos seres vivos. Entendo que ele seja bem menos do que qualquer outro: tendo mais vitalidade, ele possui mais amor de si, e portanto ele nutre necessáriamente mais ódio dos outros indivíduos, quer eles pertençam ou não à sua espécie”. Este trecho, de 1823, não deixa dúvida sobre o juízo antropológico e político do autor. Dos animais, não existe mais a lista dos nobres e dos baixos, dos leopardos ou leões, da hienas ou porcos. Agora, o bicho chamado homem é perigoso e inimigo dos laços sociais. Se podemos chamar esta doutrina de pessimista, ela é consoante com outros pensadores como Goethe, no Fausto. Ao se referir ao “deusinho do mundo”, o homem, o poeta diz que ele recebeu uma centelha divina, mas a chama Razão e a usa apenas para ser mais bestial dos que todas as feras: “Er nennt’s Vernunft und braucht’s allein, /Nur tierischer als jedes Tier zu sein.”. 

Voltemos a Leopardi: diz ele na sequência, “que os filósofos, políticos, todo tipo de gente se esforçaram sem descanso por inventar uma sociedade perfeita. Mas após tantas pesquisas, tantas experiências, o problema permanece inteiro. Por mil razões, por mil circunstâncias diferentes, mil formas de sociedade viram a luz do dia entre os homens. Todas foram ruins, e todas as que hoje enxergam a luz são ruins também”. 

Segundo Leopardi, não existe possibilidade de se instalar uma associação humana perfeita, ou pelo menos aceitável. Como diz Laura Tappan, em artigo que acompanho nestas considerações, “por perfeita ele entende uma forma social cujos membros não se prejudicam mútuamente e não buscam causar males uns aos outros (ou o fazem apenas de maneira acidental). (…) Nas sociedades humanas (…) Leopardi chega em seus discurso ainda mais longe, excluindo a possibilidade da existência de uma verdadeira associação humana”. (9) A solidão seria, para ele, o lugar natural dos animais em sua maioria e, sobretudo, no caso do homem. Leopardi distingue duas sociedades, a ampla e a estreita. Por natureza, somos destinados à primeira, na qual seria quase inexistente a desigualdade entre os homens, porque nela os mais fortes não são empurrados a exercer sua superioridade. 

A causa da infelicidade humana é a sociedade estreita, na qual os fracos são presa dos fortes. E o autor critica todas as formas de poder, das feudais às modernas e chega à conclusão de que “o homem é naturalmente odioso ao homem” e fundar uma sociedade perfeita é contra a natureza. Daí que as sociedades estreitas, os Estados, são contra a natureza. Tais enunciados tiveram forte peso no pensamento do século 19, na virada para o século 20. Schopenhauer, Kierkegaard e Nitezsche (este último admirador de Leopardi) se preocupa, não com a alteração do sistema social e político, mas dos valores, para recupear o que se perdeu nas experiências estatais. 

A desconfiança diante do poder estatal, nos séculos 19 e 20, tem alguns antecedentes relevantes no século 17. E a antropologia por eles defendida pode-se, dizer, instigam plena desconfiança no ser humano, individual ou reunido em sociedade. Vamos analisar, com base no trabalho de Sophie Gouverneur, o pensamento cético da idade clássica, formas de reflexão que justificam o poder da razão de Estado e, ao mesmo tempo, são contemporâneos de sua crítica. Comecemos com Samuel Sorbière, tradutor de Hobbes para a lingua francêsa, que não segue, no entanto, a teoria do contrato e da natureza humana a ele anterior. Ele prefere o caminho da história, como em Maquiavel ou Pascal.
A antropologia que surge no escritor afirma que o homem é movido pelas paixões mutáveis. Trata-se, pois, de entender tamanha variabilidade. E desde o início, buscar fórmulas políticas que a dominem. As paixões são inconstantes, variáveis, sem lei, pois mesmo a inconstância é inconstante. Nada, por enquanto, que não seja uma aquisição, um lugar comum do platonismo cristão, com a idéia de que o tempo é variação rumo ao pior, à corrupção. Como em Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o mundo é composto de mudança,/Tomando sempre novas qualidades./Continuamente vemos novidades,/Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança,/E do bem, se algum houve, as saudades./O tempo cobre o chão de verde manto,/Que já foi coberto de neve fria,/E em mim converte em choro o doce canto./E, afora este mudar-se cada dia,/Outra mudança faz de mor espanto:/Que não se muda já como soía.”. Basta ler Shakespeare ou Edmund Spenser para notar o quanto o tema era lugar comum no século XVI. Recomendo a leitura dos Mutability Cantos, fragmento póstumo publicado em 1609, no contexto maior de Faerie Queen e o longo poema intitulado “The ruine of time”. 

A alma, escreve Sorbière, não comanda as paixões, mas lhes obedece, ela é balançada ao ensejo dos encontros com objetos que determinam as paixões pelas impressões que elas fazem nascer sobre a sensibilidade. Em Spinoza, algo dessa forma de ver se encontra na sua tese da flutuação da alma. As paixões sempre mudam e mudam sem outra lei, a não ser o acaso do encontro entre uma sensibilidade e um objeto. Aqui, naturalmente, há discrepância entre Sorbière e Spinoza, pois segundo este último o acaso nada explica quando se trata de entender a mutabilidade das paíxões. 

Outro pensador do tempo, Le Vayer, atribui a inconstância apaixonada à nossa fantasia ou imaginação. “É tão verdade que somos constantes apenas em nossa inconstância, o que o nosso conhecimento de nós mesmos nos confirmará melhor do que qualquer outra coisa; sempre permanece constante que a alma é tal na sua inconstância, que basta o sonho de uma noite, diz o Eclesiástico, para mudar todas suas noções e toda sua ciência”. Um mesmo objeto pode tomar duas pessoas, ao mesmo tempo, “um ar alegre, que alegrará pessoas bem humoradas, trará desprazer as que mergulham numa profunda tristeza”. Recordemos Camões. “Só pensamos o que queremos no instante em que o queremos e mudamos como aquele animal que toma a cor do lugar em que ele se deita”. Tal é o juízo de Montaigne (Essais, II, I, “De l´inconstance de nos actions”). Assim, as amizades, um poderoso impulsionador da polis, são improváveis e inconstantes.

Para avaliar o quanto a fratura do conceito de amizade resulta em insegurança política, basta recordar o significado daquela prática na Grécia, cujos textos estavam sendo recuperados pelos ocidentais após a queda de Constantinopla, trazidos pelo cardeal Bessarion. Um Estado, segundo Platão, máquina que permite viver em conjunto, exige a justiça e a amizade entre os cidadãos. Nenhum povo consegue se defender quando os grupos e indivíduos não se prezam e deixam de colaborar sob os ordenamentos legais. Na República Sócrates alerta Trasímaco —defensor da pura força como fonte do direito— sobre o fato de que “as discórdias (stáseis), os ódios e os conflitos são produtos da injustiça, enquanto a justiça gera a concórdia e a amizade”. (I, 351 d) O respeito dos indivíduos levam ao equilíbrio social, o que exige a amizade (philia) entre os cidadãos. Todo Estado, ensina a República, enfrenta os problemas de sua defesa. o que requer a força militar especializada (República, 373 d- 374 c) e a divisão do trabalho na sociedade, mantidas essas políticas por governantes prudentes. Os defensores do Estado precisam ser como os cães, diz Platão, mansos para com os de casa e ferozes contra os estranhos. O dirigente tirânico é lobo contra os cidadãos. A philia entre os que integram a máquina política define a força ou fraqueza do Estado. Um país será forte quando as dores e as alegrias dos indivíduos forem as dores e as alegrias do todo social e vice-versa. A ética exige um governo que amplie a amizade entre os cidadãos. Esta é a base da pátria. Sem ela, os indivíduos não sentem-se “em casa”, experimentam-se como estrangeiros em seu próprio lugar de nascimento. 

O programa platônico da força interna e da amizade a ser promovida pelos dirigentes encerra um complicado conjunto de fatos empíricos. Na defesa das fronteiras e das lutas contra os inimigos, a história militar e política da Grécia confirma as exigências platônicas. Ao lado da educação civil ou militar, nota-se uma ardilosa prática dos dirigentes políticos e guerreiros na convocação dos combatentes. É preciso que os cidadãos em armas sejam amigos. Os governantes usaram as relações naturais e sociais dos indivíduos para garantir a coesão nas cidades e nas batalhas. 

A dita coesão encontra elementos explicativos em técnicas bélicas e em ordenamentos sociais. Nas Guerras Médicas por exemplo, os gregos reunidos expulsaram os invasores em quase todas as batalhas terrestres. Além do conhecimento técnico dos seus generais, o traço essencial daquelas vitórias foi “a confiança que vinha dos elos entre os hoplitas nas falanges”. (10) Elementos psico-sociais foram importantes nas lutas, como a confiança no general e o fato dos combatentes sentirem-se responsáveis “pelos homens postos aos seus lados” , com a vontade de protegê-los dos inimigos “pela vergonha que tinham de se conduzir como covardes diante deles” (Hanson). 

Os dirigentes formavam as falanges, de preferência, com pessoas unidas por laços de sangue e de amizade. Razões técnicas (como a referida por Tucídides sobre os escudos que obrigavam os combatentes à dependência do homem à sua direita para guardar o lado direito, formando os escudos uma cadeia de proteção comum) e de ordem social, estreitavam os nexos entre os indivíduos na falange. Como diz Hanson, “à diferença da maioria dos exércitos modernos, os vínculos entre os hoplitas não se originavam no serviço militar ou em semanas de treinamento partilhado num campo. Eles eram a extensão natural de amizades e de parentescos antigos dos tempos de paz”. Na falange, pais seguiam junto aos filhos e irmãos, cunhados, amigos. E a cada vez que a falange marchava “os homens conheciam exatamente seu lugar assinalado na formação de seus parentes e amigos que serviam diante deles, atrás deles e ao seu lado”. 

A defesa da terra própria com o reforço da amizade entre os cidadãos é uma técnica de governo e de guerra fundamentada nos costumes. As quebras internas no plano social determinam a fraqueza na ordem bélica e os laços de respeito e philia aumentam a potência do Estado. O termo para a atitude ética respeitosa da justiça era eusébeia, palavra que envolve a justiça diante dos genitores, dos velhos, dos amigos. Como sequência, ele indica a obediência da lei e o amor pela própria terra, com risco de morte para defendê-la. Eusébeia também possui a gradação do decorum, controle da fala indiscreta evitando-se a maledicência. O imperativo é “falar bem de todos” e não procurar falhas nos demais, ser justo e amável com os amigos, não maldizer um ausente, não rir dos vencidos ou mortos. Pode-se verificar a origem do célebre mote spinoziano: “não rir, não chorar, compreender”. Trata-se de chegar à sabedoria do Logos. (11)

Se a philia é inconstante torna-se impossível estabelecer laços entre os indivíduos e grupos, o Estado permanece no ideal, a sociedade desaba. Os pensamentos de Sorbière e de Montaigne vão além: a razão é fonte de imaginações sem correlato objetivo. Como afirma Montaigne: “a razão sempre vai, torta e manca, desancada, e com a mentira e a verdade. Assim, é árduo descobrir seus erros e desregramento. Sempre chamo a razão como esta aparência de discurso que cada um de nós forja em si mesmo” (Essais, II, 12). Cada um forja seu modelo imaginário, ninguém entra em acordo sobre o que é e o que deve ser feito. A cada nova imaginação acrescentamos outras, o que prova que somos desiguais em relação aos outros e a nós mesmos. Cada um aprova “pela manhã o que condenará na tarde, e com frequência de maneira distinta se o seu temperamento o quer assim”. (Le Vayer). Piores são os remédios trazidos à inconstância em vários setores da vida, como no caso da religião. Para combater a mutabilidade do pensamento são produzidos mecanismos de permanente opinião a que se nomeia “fé”. Monobloco de consciência a “opinião própria” é desejo reativo de constância, como os protestante apegados à sua crença mais por tal desejo que por anseio de verdade, não querendo tombar como os outros na infinita variação opinativa. O endurecimento da consciência também se deve ao amor próprio que prefere o falso à confissão de ignorância. Segundo Le Vayer o digmatismo pode resultar do desejo de discórdia a erística sendo o prazer de contradizer. A via da guerra universal segue da inconstância ao enrigecimento, das críticas sem freios ao dogma. Poucos se contentam com o provável mas todos desejam afirmar infalíveis as suas razões. Se na Igreja Católica o papa é infalível, na consciência protestante todos são infalíveis e no mundo laico a infalibilidade seria posse de todos e de cada um. Resulta que todos os infalíveis guerreiam e a guerra civil impede, como a guerra contra outros povos, qualquer Estado seguro. Esta é a lição dos eventos na França nas guerras confessionais. 

Com o belicismo, para espanto do clero e da aristocracia, os populares desobedecem os príncipes. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. (12) Pouco se analisa o escrito do mesmo autor, Mémoires de nos troubles sur l´ Édit de janvier 1562. (13) Com as lutas religiosas na Guiana a corte envia o autor aos locais para recolher sugestões jurídicas. É clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou licença, o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural na religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira a falsa consequência de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas e se atribue o juízo sobre o bom e o ruim. Ele chega à idéia de que só existe a lei da sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. (14) Assim, “o povo não tem meios de julgar, porque desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. A multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, é seja mais persuadida pela autoridade do orador do que pelas razões enunciadas”. Gabriel Naudé fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” da massa inquieta. Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. (15) 

As batalhas entre os reformados e católicos, pensam os juristas do rei, ameaçam o Estado. É preciso dar um fim às rebeliões supostamente religiosas. Em janeiro de 1562, o dirigente L´ Hospital (16) fala em nome do rei à Assembléia composta de Presidentes e Conselheiros dos Parlamentos da França, reunidos em Saint-Germain-en-Laye. A tentativa é atenuar as querelas e lutas físicas entre o partido católico e huguenote. Carlos IX (1550-1574) abre os Estados Gerais (13/12/1560) e participa do Colóquio de Poissy organizado por Catarina de Médicis e Michel de l´ Hospital tendo por alvo aproximar os inimigos. Único resultado: a lista dos desacordos. Em 31/01/1561, um Ordenamento é assinado pelo rei em Orleans, proibindo as perseguições contra os protestantes, autorizadas por Henrique II. Mas as querelas aumentam. O católico duque de Guise tudo faz para gerar a guerra civil cujo primeiro passo seria o “Massacre de Wassy”. O nobre quer assistir a missa, se irrita com os cantos dos protestantes e os massacra. O fato produziu a primeira guerra de religião moderna na França. Os protestantes comandados por Louis de Condé e pelo Marechal Coligny perdem em Dreux (19/12/1562). Guise cerca Orléans mas é assassinado por um protestante. Antoine de Bourbon, chefe protestante, é morto em Rouen. Catarina de Médicis aproveita o sumiço de ambos os líderes e assina a paz, oferecendo liberdade (apenas privada) de culto aos huguenotes. 

Carlos IX, maior a partir de 1563 anda pela França de 1564 a 1566 e leva consigo Henrique de Navarra, o futuro Henrique IV. O alvos das viagens é reconciliar inimigos religiosos sob o manto real. Na sequência da guerra religiosa Condé cai na batalha de Jarnac, sendo executado. O marechal Coligny refugia-se em La Rochelle. Finalmente Catarina de Médicis assina a paz em 1570. Neste ano o rei se livra da tutela materna e continua a tentar a união dos inimigos. Ainda no ano de 1570 em Saint-Germain são oferecidas garantias aos huguenotes e La Rochelle, Cognac, Montauban são ditas cidades protestantes. A liberdade de culto é oferecida, menos em Paris. Tal política tem inspiração em Michel de l’ Hospital. Coligny retorna ao círculo do rei onde adquire influência, inclinando o soberano à guerra contra a Espanha. Catarina, católica e política de ferro arrisca novamente a guerra civil. A família Guise quer vingar a morte de seu chefe e tenta matar Coligny contratando assassinos de aluguel. Em 22/08/1572 Coligny sofre um atentado, recebe a visita do rei mas este último, no entanto, assume a idéia de Catarina de acabar com os protestantes, acusados de, sob liderança de Coligny, subverter o Estado. O Marechal é executado com requintes de crueldade. Depois de sua morte, durante cinco dias, a partir de Paris ocorrem os massacres conhecidos como “A noite de São Bartolomeu” (na verdade, as noites…) praticados em Lyon, Dijon, Blois, Tours causando algo ao redor de 15 mil mortos. O rei perde a confiança dos súditos e os protestantes enfraquecidos não se rendem mas se rebelam em 1573. (17)

Carlos IX usou a razão de Estado, um jogo onde as regras não foram, como é o hábito, obedecidas. Se conseguiu impôr uma decisão ele não conseguiu o essencial: unir os súditos sob a sua autoridade. É esse o desejo expresso por Michel l ´Hospital na já mencionada reunião em Saint-Germain-en-Laye de 1562 : “O rei não quer que entreis em disputa sobre qual opinião (religiosa, RR) é a melhor. Porque não se trata aqui de constituenda Religione (….) sed de constituenda Republica. E muitos podem ser Cives, que non erunt Christiani, e pode-se viver em repouso com os de opinião diversa, como vemos numa família, onde os católicos não deixam de viver em paz e amar os da nova religião”. (18) Com esse passo, atingimos o ponto que será nuclear nos textos de Hobbes e das Luzes. Trata-se da secularização imposta pelo Estado ao espaço público. Hobbes vive algum tempo na França afastado pela guerra civil e religiosa que sacude a Inglaterra. Ao deixar seu país encontra na França uma realidade próxima, pois as duas nações que disputam a cena européia correm o risco de fragmentação devido às batalhas campais entre segmentos teológico-políticos. 

A unidade do Estado é cara à raison d´ État desde o Renascimento. (19) E a desejada unidade se dissolvia a olhos vistos no território francês e britânico. Oposto ao ceticismo das forças que impulsionavam a secularização social e política, no dogmatismo a imaginação engendra o amor próprio como se fosse amor divino, acompanhado do apego à uma idéia, o que enfraquece o juízo crítico e exige adesão à “verdade”.

É tempo de recordar uma correspondência estratégica entre Albert Burgh e Spinoza. O primeiro, convertido ao catolicismo, sente-se no direito caridoso de chamar o filósofo de “verme”, “homúnculo” etc. Isto porque ele não acredita na doutrina da Igreja sustentada por milhares de doutores e testemunhas. A carta, permite aquilatar até onde vai a violência dos que imaginam fazer o bem aos demais seres humanos ao lhes impor seus próprios valores e dogmas. (20) “Como ousareis negar a força persuasiva que a religião cristã extrai das miríades de homens entre os quais encontram-se milhares que, pela doutrina, o saber, a sutileza verdadeira e solidez da mente, a perfeição da vida nos ultrapassam e dominam….e unanimemente afirmam que o Cristo, filho do Deus vivo, se fez carne, etc?”. O incrível aconteceu, responde Spinoza: Burgh convertido ao catolicismo (tratava-se de um promissor estudioso das ciências) , transformado em militante da Igreja. Nela, o jovem aprendeu a insultar os adversários com insolência. “Deplorais que eu tenha sido dominado pelo Príncipe dos espíritos malignos. Não vos atormenteis, peço-vos, e tomai fôlego! Quando estivestes na posse de vossa razão, admitíeis, salvo erro, um Deus infinito pela virtude do qual todas as coisas existem e se conservam. E agora que sonhais com um Príncipe inimigo de Deus, eis que tal Príncipe, contra a vontade divina, domina e engana a maioria dos homens (os bons são raros, com efeito) que Deus, por esta razão, entrega ao mesmo mestre que lhes inspira crimes para que recebam tormentos eternos. A justiça divina suporta, pois, que o diabo engane os homens impunemente, mas ela se opõe a que permaneçam impunes os infelizes enganados pelo demônio. Mesmo tais absurdos seriam suportáveis se adorásseis um Deus infinito e eterno e não o que Chatillon, na cidade chamada Tienem em flamengo, deu impunemente a comer para seus cavalos. E me lamentais, pobre infeliz! E tratais como quimera uma filosofia que desconheceis! Jovem insensato ! Quem vos perdeu a este ponto, que acreditais engolir e ter nas entranhas o ser soberano e eterno ? Quereis raciocinar no entanto, e me perguntais como sei que minha filosofia é a melhor dentre todas as que foram, são e serão ensinadas no mundo. É a mim que caberia vos apresentar a questão. Não pretendo ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que conheço a verdadeira. Me perguntareis como o sei. Responderei : do mesmo modo que sabeis que os três ângulos de um triângulo igualam dois retos e ninguém dirá que não basta, por pouco que o cérebro seja sadio e não sonhe com espíritos impuros que inspirem idéias falsas semelhantes às verdadeiras, pois o verdadeiro é índice de si mesmo e do falso”. Spinoza discute o número dos fiéis, doutores, místicos do catolicismo e mostra que outras religiões deles estão aglomeradas. O critério externo (número, magister dixit, e outro semelhantes) nada prova.

Note-se que no trecho há uma clara indicação do gênio malicioso (versutus et callidus) antes utilizado por Descartes. O Cogito fica entre o demônio e o Deus enganador ou o Deus veraz que está fora da natureza. A transcendência divina faz o crente sentir medo do erro. Evidentemente o que Spinoza chama “razão” não é o que os céticos chamam assim. Mas ele partilha com o ceticismo a crítica ao uso desregrado da imaginação racional, a que inventa modelos de perfeição e recusa o mundo empírico tal como ele surge, sobretudo na política.

Segundo os autores céticos possuam maior ou menor empenho na edificação do Estado, seu juízo sobre o sujeito humano terá maior ou menor desconfiança na racionalidade humana. Vimos como Naudé julga a massa popular, da maneira mais desconfiada e hostil possível. Segundo Naudé a irracionalidade domina o homem em termos quantitativos. É coerente sua recusa de entregar o poder à multidão. O fato é que poucos, pensa Naudé, usam a razão com segurança, como se fosse um fio de Ariana, pois a massa é dominada pelas paixões. Assim, a razão ajuda a pensar e a se orientar no pensamento e na vida política ou social. Mas quando se reúnem as multidões some a razão e os atos se tornam imprevisíveis porque a-lógicos. O que se passa na multidão reunida na praça (não raro para linchar inocentes ou exigir absurdos políticos inspirados por demagogos) também ocorre entre os povos. Estes últimos erram em todas as direções, mudam sempre de idéia. O fato de que uma paixão seja partilhada por alguns, muitos ou povos inteiros não lhe permite estabilidade. Naudé recorda o dito latino : Scinditur incertum studia in contraria vulgus (O vulgo incerto se divide em paixões contrárias, Virgílio, Eneida, II, 39).

A antropologia que percebe no homem um ser variável e prejuízos à política, se fundamenta por sua vez numa visão do universo enquanto caos e não como um cosmos organizado, estável, belo. O mundo é movimento puro (aqui temos o pensamento grego, sobretudo o platonismo que percebe no tempo e no espaço apenas instabilidade). O homem, parte do mundo, também é puro movimento. 

Sorbière, próximo de Hobbes e seu tradutor, ve nas paixões um efeito particular do mecanismo universal onde os homens existem e retoma a idéia hobbesiana (e platônica) da mobilidade geral. O universo se compõe de corpos em movimento unidos entre si por causa e efeito, sendo as paixões movimentos dos corpos e os pensamentos movimentos da mente. Como o movimento é incessante cada existente muda de lugar e forma segundo encontros com outros corpos, o que permite pensar a variabilidade das paixões geradas pela percepção dos corpos. Sorbière, em sentido inverso ao de Hobbes, não considera possível captar a lei dos movimentos, as regularidades causais que permitiriam conhecer (e prevenir) os choques entre corpos. Pode-se dizer que Sorbière se baseia numa doutrina segundo a qual a verdade reside, não na adequação do pensamento ao suposto real, mas na coerência subjetiva de nossos atos de pensamento. 

Segundo ele, “diz-se comumente que a verdade é conformidade do pensamento às coisas que ele representa. Mas nos enganamos, no meu entender, pois o pensamento é movimento, só é possível compará-lo a movimentos. Nada podemos responder sobre as coisas fora de nós; mas podemos dos movimentos que ressentimos (…) a verdade resulta da comparação dos movimentos dos pensamentos entre si…”. O pensamento remete a si mesmo sem nenhuma certeza de atingir o real como ele seria. Sua única caução reside na coerência consigo mesmo. Assim também a linguagem não nos diz o Ser, mas apenas a maneira pela qual ele nos aparece, pois ” os nomes representam nossas idéias das coisas, e não as coisas diretamente, como elas são”. Logo, o problema permanece intocado, no que se relaciona com o problema político. Sendo o Estado um pacto, ou contrato, ou reconhecimento de um discurso dominante, que se prolonga em outros discursos que são as leis, se não existe nexo entre nome e coisa, mas apenas entre pensamento e pensamento, o elo objetivo que fundamenta a sociedade e a ordem política é sempre uma suposição, sujeita à ordem da aparência, não do ser. O Estado não tem fundamento epistemológico sólido. 

Sorbière assume a proposta de Sextus Empiricus sobre a desconexão da razão e do ser, como ela subsiste em Montaigne. Sorbière traduziu os primeiros capítulos das Hypotyposes pyrronianas (livro I). O cético “só nos dá conta do que se passa nele, não pretende julgar o que verdadeiramente está fora, na natureza das coisas”. (Cap. VII das Hyppotyposes, tradução de Sorbière). A razão opera até mesmo com correção mas ela é formal, não denotativa. Ela nada diz das coisas em si mesmas, apenas da maneira pela qual aparecem. Como elas surgem diversamente, dada a nossa variada compleição individual, é comum que as opiniões divirjam entre as pessoas e entre os períodos de uma só pessoa. Assim, o ceticismo e a tolerância intelectual têm o seu fundamento, na variação das mentes e da inteligência em tempos distintos. Como diz Sorbière, “nunca pretendo julgar absolutamente a verdade das razões deduzidas pelos outros, e não me presumo tanto a ponto de achar que meu sentimento deva ser a regra do sentimento alheio”. As guerras de religião derivam, justamente, do afã dos crentes, em todas as igrejas, de serem a regra do sentimento alheio. 

A figura de Maquiavel também serve como paradigma de uma outra via, a que preconiza o uso da religião pelo governante que impede os particulares de se massacrem e desgraçando a sociedade e o Estado. O Florentino é visto no período com fonte de inspiração para os céticos e defensores da primazia do poder estatal. Ele também é tido como a base última da “razão do inferno”, no dizer dos defensores da fé cristã, católica ou protestante. 

Descartes, em Carta à Princesa Elisabeth (setembro de 1646), comenta o pensamento de Maquiavel. Embora de extração nobre, o que o levaria direto aos assuntos políticos, ele fazia profissão de estar alheio aos problemas do Estado, da sociedade e da religião, cujas repercussões na Europa e na França eram sangrentas. Examino o texto, muito esclarecedor para quem deseja examinar o pensamento cartesiano em política, depois discutirei alguns críticos da sociedade no período, entre outros Molière. Muita invectiva endereçada ao coletivo humano nos tempos posteriores, em especial as de Rousseau e Diderot, encontra nas peças de Molière as sua bases imaginativas em termos éticos e morais. 

Descartes inicia dizendo que leu o Príncipe a pedido da princesa. Podemos duvidar da afirmação. Maquiavel era leitura obrigatória no período, sobretudo por causas das lutas ao redor do poder real, dos nobres e da Igreja. Formou-se na Europa e na França um campo de batalha onde o nome do Florentino dividia as aguas. Modo geral, as atitudes se dividiam entre os que identificavam a política “italiana” na França (sobretudo na figura de uma filha dos Medicis) e a dissimulação perversa, a ruptura com os antigos preceitos e valores católicos, a tirania da corte em detrimento dos nobres e dos Parlamentos. Talvez o desconhecimento cartesiano de Maquiavel seja uma outra espécie de “dissimulação honesta”, face à poderosa interlocutora. De qualquer modo, Descartes inicia como se fizesse um relatório neutro de leitura e o tema dele exigisse isenção científica, para enfim dar sua “opinião”. Começa a análise com o elogio dos aspectos louváveis em O Príncipe. Para início, vem os capítulos 19 e 20: “Que um príncipe deve sempre evitar o ódio e o desprezo dos súditos, e que o amor do povo vale mais do que fortalezas”. [19 : De contemptu et odio fugiendo, De que modo deve evitar-se ser desprezado e odiado]. (21) [20 : An arces et multa alia quae cotidie a principibus fiunt utilia an inutilia sint, Se as fortalezas e outras coisas, que todo dia são feitas pelos príncipes, são úteis ou não] (22)

Descartes não se detem nos elogios aos capítulos 19 e 20. Outros recebem sua aprovação. A falha maior do Florentino estaria em não distinguir mais do que fez entre governantes que conseguiram poder por meios justos e os usurpadores. Assim, ele dá a todos os mesmos conselhos, próprios apenas aos segundos. Surge a metáfora arquitetônica, importante no capítulo 20 de O Principe, mas apresentada desde o início das análises cartesianas. O capítulo 20 do Príncipe afirma serem mais sólidas as muralhas erguidas pelos corpos dos cidadãos do que as de pedra. O tema é antiqüíssimo no pensamento político. Em Ésquilo “Os Persas”, um personagem justifica a vitória ateniense dizendo que em Atenas, “Os homens são a mais segura muralha de uma cidade”. Quando o governante usurpa o cargo, afiança Descartes, é como se construísse uma casa cujos fundamentos são frágeis e não podem sustentar muralhas altas e espessas, sendo obrigado a fazê-las fracas e baixas. Quem assume o poder por meio de crimes só o conserva usando crimes, não o manteria se fosse virtuoso. 

Descartes interpreta a partir dessa origem do poder o dito por Maquiavel sobre os príncipes que chegam ao mando por usurpação e fraude. Para eles se dirige o Florentino quando proclama que não poderiam deixar de serem odiados por muitos e sua vantagem é fazer muito mal e não pouco, porque ofensas leves bastam para gerar vontade de vingança e as grandes impedem tal poder. Além disso os usurpadores, se desejam ser pessoas de bem é impossível não se arruinarem no meio do grande número de bandidos postos em toda parte. E no capítulo 19, diz-se que é possível ser odiado por praticar boas ações ou más. 

Das teses aprovadas por Descartes encontram-se mesmo as que levam a conclusões terríveis. Assim, Maquiavel teria ensinado que se arruinasse um país para permanecer como seu dono; que se exercitassem grandes crueldades desde que prontamente e numa só vez; que se trate de parecer homem de bem, mas sem nada disso na verdade; que se honre a palavra dada apenas enquanto tal coisa é útil; que se dissimule e se traia; enfim, que para reinar deve-se abrir mão de toda humanidade, se tornando a fera mais violenta. 

Trata-se de um assunto ruim escrever livros para ensinar preceitos daquele jaez. Eles não dão segurança aos que se destinam pois o próprio Maquiavel confessa que os tiranos não podem se proteger do primeiro que deseje negligenciar sua vida para deles obter vingança. Assim, pensa Descartes, para instruir um bom príncipe preceitos opostos devem ser aconselhados, mesmo que o governante seja novo no Estado. Deve-se também supor que os meios empregados são justos. Singular noção de justiça cartesiana, porque o filósofo diz a seguir : justos, “como suponho serem quase todos, quando os príncipes os praticam e assim os consideram, pois a justiça entre os soberanos tem limites diferentes dos que operam entre particulares e parece que, em tais encontros Deus dá o direito aos que, por eles, Ele dá a força. Mas as mais justas ações se tornam injustas, quando os que as fazem as pensam assim”. Temos aí a Raison d´ État inteiriça. A justiça de quem possui a força é definitiva, desconhece os limites impostos às pessoas comuns. Nada que seja estranho a Trasímaco ou aos gregos que cercavam Melos. Se os que resistem aos fortes pensam ter razões justas, estas últimas são inanes porque vão contra a razão do mais forte. 

Descartes penetra num tema dos mais estratégicos na ordem política, dos gregos aos modernos passando por Maquiavel e chegando a Carl Schmitt: a distinção entre amigos e inimigos, inclusive no problema das alianças. Trata-se, para o príncipe, na vida interna do país, de encontrar os amigos e os inimigos. Contra os últimos, existe uma quase permissão (o termo é de Descartes) de fazer tudo, desde que ele consiga alguma vantagem para si e para os governados. “Não desaprovo” diz o filósofo, “que em tais ocasiões se una a raposa com o leão, unindo artifício e força. Compreendo mesmo, sob o nome de inimigos, todos os que não são amigos ou aliados, porque temos direito de os guerrear, quando nela existe nossa vantagem, e quando eles começam a se tornar suspeitos e ameaçadores, deles devemos desconfiar”. A lógica da tirania mais antiga se une aos preceitos modernos do controle policial do corpo político. Poderíamos dizer, seguindo o raciocínio acima, que a Gestapo ou a KGB seriam perfeitamente maquiavélicas ou…cartesianas. 

Descartes não aceita um tipo de engano (tromperie), tão contrário à sociedade que seria proibido, embora Maquiavel o aprove em alguns pontos e ele nunca deixe de ser praticado: “fingir ser amigo dos que vamos perder, afim de melhor surpreendê-los. A amizade é algo muito santo para dela abusar daquele modo; e quem pode fingir amar alguém, para o trair, merece que os demais, que ele deseja amar verdadeiramente, não acreditem nele e o odeiem”. A fé pública, fundamento da obediência civil, entra no cálculo cartesiano, não contra o espírito maquiavélico mas em sentido confluente. Quando um governante engana para destruir o adversário fica na opinião pública a desconfiança: “se ele faz isto com os inimigos, poderá também fazer o mesmo conosco”. Platão mostra que os tiranos empreendem uma purga ao contrário: caçam na sociedade e no Estado os bons e os matam, exilam, etc. e recolhem a pior ralé oportunista, covarde, etc. Tal é o destino das tiranias quando se julgam onipotentes e capazes de mentir contra todos os cidadãos. 

Segue Descartes: quanto aos aliados a palavra deve ser mantida pelo príncipe, mesmo que tal fato o prejudique. Novamente, o problema da fé pública. Existem, escreve Descartes, situações que dispensam o cumprimento da palavra, aquelas em que tudo estaria perdido para o poderoso se ele mantivesse a retidão absoluta, pois “o direito das gentes o dispensa de sua promessa”. Segue o conselho da prudência política: o principe deve ser ecônomo nas promessas se quiser manter a credibilidade. Algo similar ocorre com o conceito de accountability nas democracias recentes. Não se deve prometer transparência absoluta em questões que envolvem temas árduos como segurança nacional, entre outros. Na prudência Descartes indica que se trata de estabelecer vínculos estreitos com vizinhos menos poderosos e não com os mais potentes. 23A fidelidade vai apenas até onde manda o interesse e todo governo deve saber que os vizinhos poderosos o enganarão sempre que pensarem existir vantagem nos truques. É mais provável que os artifícios sejam empregados pelos mais poderosos do que pelos de menor força. Neste plano, o clássico texto na França é o livro do Duque de Rohan, De l’intérêt des princes et des Etats de la chrétienté. (24) Alí, as bases da política cartesiana são antecipadas (o texto é de 1638, anterior à carta endereçada por Descartes à Elisabeth) com base analítica aguda e rigorosa. Voltarei ao texto de Rohan mais adiante. 

Descartes além da política externa percebe nas lições maquiavélicas o vínculo entre governante e governados. O dirigente político enfrenta desafios trazidos pelos nobres além da camada popular. “Grandes” afiança o filósofo, “são todos os que podem formar partidos contra o príncipe. Este deve estar seguro da sua fidelidade. Caso oposto, todos os políticos concordam que ele deve rebaixá-los o mais possível, na mesma medida em que eles tendem a obscurecer o Estado. Ele devem considerá-los inimigos”. Conselho banal, mas de importância extrema na França em que os protestantes formam quase um Estado dentro do Estado com fortalezas, etc. Semelhante situação foi testemunhada por Hobbes diretamente na França. Ele guarda a sua lembrança no Leviatã, onde aconselha o soberano a arrancar poder de particulares tão fortes que possam obstruir a obediência civil.

Quanto à massa popular, o dirigente deve fugir do seu ódio ou desprezo. Ele pode conseguir apoio desde que opere segundo a justiça “ao seu modo” (as leis a que o povo se acostumou), sem usar rigor demasiado nas punições nem indulgência excessiva nas graças. Para tais atos, ele não deve depender dos subordinados, os ministros. Deve deixar ao seu encargo as coisas odiosas em termos de condenação, cuidando do resto. Ele deve guardar toda reverência e honra que o povo imagina devidas a ele sem exagerar em tais honras, deixando para a vista pública as coisas sérias e para a vida intima “os seus prazeres”, sem para elas usar recursos alheios. Ele deve procurar conselhos visto não ser onividente, mas precisa ser inflexível desde que resolva agir de certo modo, mesmo que isto lhe traga prejuízo. É tão ruim ser imutável de resolução quanto leviano e variável. 

Descartes desaprova o capítulo 15 do Príncipe na sua base política e antropológica: “O mundo sendo muito corrompido é impossível que não nos arruinemos, se desejarmos sempre ser homens de bem. Um príncipe deve aprender a ser malvado, quando a ocasião assim o exigir”. O texto de Maquiavel diz o seguinte: “Ma, sendo l’intento mio scrivere cosa utile a chi la intende, mi è parso più conveniente andare drieto alla verità effettuale della cosa, che alla immaginazione di essa. E molti si sono immaginati repubbliche e principati che non si sono mai visti né conosciuti essere in vero; perché elli è tanto discosto da come si vive a come si doverrebbe vivere, che colui che lascia quello che si fa per quello che si doverrebbe fare, impara più tosto la ruina che la perservazione sua: perché uno uomo che voglia fare in tutte le parte professione di buono, conviene rovini infra tanti che non sono buoni. Onde è necessario a uno principe, volendosi mantenere, imparare a potere essere non buono, et usarlo e non usare secondo la necessità.”. Reconhecemos aí o primeiro parágrafo do Tratado Político de Spinoza. Voltaremos ao ponto. Mas faço uma tradução, defeituosa claro, do trecho citado por Descartes no capítulo 15 de O Príncipe: “sendo meu alvo escrever coisas úteis (…) parece mais conveniente ir diretamente à verdade efetiva das coisas, deixando de lado as fantasias sobre elas. Pois muitos imaginaram repúblicas e principados jamais vistos nem conhecidos verdadeiramente; porque é muito afastado o modo pelo qual se vive do que se deveria viver e quem tenta viver procurando o segundo modo se arruinaria em vez de se preservar. Pois um homem que deseje parecer em tudo bom, consegue apenas a ruina no meio de tantos que não são bons. Logo é necessário que um principe, querendo se manter, não seja bom, usando isto segundo a necessidade”. Note-se a distinção entre “efetivo” e “imaginário”, além da distinção entre “ser” e “dever-ser” tão cara ao kantismo e seus seguidores alemães, incluindo Fichte, um admirador de Maquiavel. Existe aqui matéria para pensamento, em especial no mundo (e no mando) político. Importa sobretudo a distinção subjacente: aquela entre o “ser” e “parecer”. 

Razão de Estado
Science Des Princes V3: Ou Considerations Politiques Sur Les Coups D'Etat (1752) (French Edition) 


Maquiavel se movimenta na vida efetiva e na História, imagem desta vida. Ele é um escritor cuja superioridade sobre os demais de seu campo é inegável. Ao contrário dos autores que seguem o paradigma ideal para indicar tarefas aos governantes e ao Estado, ele pensa segundo princípios diferentes, pois julga mais útil seguir a efetividade das coisas em vez de um modelo imaginado. Ela nada diz sobre repúblicas nunca vistas na ordem histórica. Se fossem seguidos semelhantes modelos imaginários, o governante aprenderia mais a arte de perder o poder do que o conservar. Pois um homem de bem, imerso na multidão dos que não são bons, perece necessariamente.

O juízo de Fichte sobre Maquiavel, parafraseado acima, é lembrança direta do Tratado Político redigido por Spinoza. “Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assimagir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda a espécie de louvores a uma natureza humana que existe em parte alguma e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí, por consequência, que quase todos, em vez de uma ética, tenham escrito uma sátira, e não tenham relativamente à política concepções que possam ser postas em prática, devendo a política, tal como a concebem, ser tomada por quimera, ou pertencente ao dominio da Utopia ou da Idade do Ouro, ou seja, a um tempo em que nenhuma instituição era necessária. Assim, entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos adequados para governar o Estado do que os teóricos, os filósofos. (Tratado Político, capitulo I,§1).

Não se deve julgar Maquiavel, afirma Fichte, usando conceitos que ele desconhece, numa lingua que ele não fala. O pior é quando são citados os seus escritos como se formassem uma espécie de tratado de direito constitucional contemporâneo colocando-o, séculos depois de sua morte, numa escola que ele não teve condições de frequentar. Fichte refere-se à confraria de má fama dos pensadores postos na rubrica infame: raison d´État.

O Príncipe, escreve o idealista alemão do século 19, foi ideado com o desejo de introduzir estabilidade e duração nas turbulentas repúblicas italianas. Por isso, o primeiro dever do principe exige a conservação de si (Selbsterhaltung) e sua virtude suprema e única é o espírito de consequência. Maquiavel não diz, alerta Fichte, “seja um usurpador, ou tome o poder por meios canalhas. A sua primeira obrigação é refletir se a tomada do poder pode ser bem sucedida. Ele diz ao governante em nome dos governados: ´se você é usurpador, ou se apossou do poder usando meios canalhas, para nós é preferível conservar o seu poder em vez de nos submeter a um novo usurpador ou esperar que nova canalha lhe suceda e suscite tumultos ou canalhices novos. Devemos desejar que você seja mantido, mas isto só pode ocorrer de tal ou tal maneira´”. (25 )

Não espanta o apreço de Fichte ao Florentino. Entusiasta da Revolução Francêsa e admirador do partido mais radical, o jacobino, o filósofo enfrenta a difícil tarefa de justificar os atos revolucionários (execução do rei, Terror, etc) e a manutenção do Estado democrático francês. Como pensa num instante em que a Revolução entra em refluxo, suas esperanças são destruídas e ele passa a se interessar pela nação alemã, fragmentada como a Itália do tempo maquiavélico em inúmeros pequenos Estados (a chamada Kleinstaatarei). A história do pensamento político europeu, após Napoleão, é a crônica das lutas pelo poder de Estado, as tentativas de impôr limites aos governos, as revoluções liberais e socialistas cujos fracassos levam ao reforço do Executivo em detrimento das outras faces estatais. No final desse período, após as aventuras de Napoleão 3 (narradas com lucidez extrema por Karl Marx, no 18 Brumário de Luis Bonaparte), surge a figura impar de Bismarck, a personificação primorosa da Raison d´État.

Razão de Estado é termo nascido no Renascimento tardio. Em nossos dias a palavra significa o uso da força ou de instrumento excepcional a serviço do poder político que busca conservar o mando ou garantir a ordem civil. De Giovanni Botero (1589) até Scipione Chiaramonti (1635), o termo adquire uma polissemia estonteante, mas sempre com a permanência da idéia central de conservação do poder e disciplina da coletividade humana concreta. O ápice do prestigio usufruído pela fórmula encontra-se no Estado absoluto, posto acima e fora das instituições comuns da sociedade e mesmo dos procedimentos jurídicos tradicionais, seja no setor do direito romano modificado pela Igreja, seja no campo do direito natural antigo ou moderno. Como a própria expressão indica, o poder absoluto não possui nenhuma amarra que o prenda aos ritos religiosos e jurídicos anteriores ao seu surgimento.

A doutrina do absolutismo encontrou muitos representantes na Europa moderna. O modelo mais perfeito, no entanto, foi ideado por James I, para quem o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra. No tempo de Bacon e de Hobbes, Edward Coke defendeu a independência dos juizes contra a Igreja Anglicana e contra James I. Ao replicar ao rei que defendia suas prerrogativas contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I, mais do que ofendido, afirmou que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei, “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O mesmo rei, autor do Basilicon Doron e do tratado The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist a Free King and His Subjects, escrevera que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo ou por seus predecessores”. Além de pai do povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”.

Na fala ao Parlamento de 1616, ele proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois eles exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, ve-se o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”.

Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. Não é por acaso que James I evocou Bracton para afiançar o seu poder. Mas dele fez uma leitura unilateral ao acentuar o seu mando em trato com o ser divino. 

Bracton, em vez de garantir um poder sobrenatural absoluto do rei, recolhe o debate sobre as bases pelas quais os dirigidos devem e podem obedecer aos reis e magistrados. No De legibus et consuetudinibus Angliae Bracton, o jurista vai ao ponto: “o poder do rei refere-se à geração da lei e não à injúria.” Gerador da Lei, o rei define-se como o seu intérprete maior. “O rei é filho da lei, mas torna-se pai da lei” e sua legitimidade requer a base teológica. “O rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”. (26)

E mais: “o próprio rei deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o rei…Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei”. Se o círculo do rei como maior et minor se ipso se quebrar e se desaparecer a interpretação correta da lei, o governante tomba na situação de puro tirano. Em termos teológicos Bracton chega à solução : o rei é semelhante a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta a lei. Ele é sob a lei porque a ela se submete. O nexo entre rei e Deus prolonga o mandamento de que Nullum tempus currit contra regem (o tempo não corre contra o rei), o que implica no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa possessão gera o direito). Tudo o que se liga aos bona publica é integrado no registro a-temporal e são res quasi sacrae. Na teologia jurídica, Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à prescrição. O sacratissimus fiscus torna-se alma do Estado. Como Cristo, Fiscus ubique praesens.

James I afirma o “mistério do Estado”. O segredo, no entanto, não pode ser atribuído apenas à instituição estatal. Os momentos decisivos do Estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe.

A razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e assume a linguagem do interesse de Estado. Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo manter e expandir os bens públicos. A nova razão de Estado incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar onde não são admitidos os homens comuns.

Do gabinete onde se oculta, o príncipe nota o que para a maioria dos cidadãos passa desapercebido. Este ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, é a base histórica dos atuais serviços de informação. O governante acumula segredos e deseja os súditos sejam exposto a uma luz perene. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. (27 ).

A palavra razão de Estado surge na Itália durante a segunda metade do século 16. No Del reggimento di Firenze, Francesco Guicciardini por volta de 1523, fala numa “ragione degli Stati”, designando a razão “pouco cristã e pouco humana” do mundo político. Um interlocutor do diálogo, Bernardo, afirma que se em questões de governo surge um mal, é dificil saná-lo sem medicação forte, sem crueldade. Impossível governar com os preceitos evangélicos, as normas do Sermão da Montanha. Ragion di Stato aparece na Orazione a Carlo V (1547) de Giovanni Della Casa dirigida ao imperaror espanhol para pedir a restituição da cidade de Piacenza ao duque Ottavio Farnese. Della Casa distingue a voce barbara e fiera da ragion di Stato da ragion civil e argumenta que não podem existir duas práticas opostas, o útil distinto do honesto, a moral separada da política. Duas razões diversas são alegadas, mas a primeira, a razão de Estado “opera com a fraude e a violência”. Em todos estes autores, a crítica à razão de Estado é ligada ao horror pela soberania laica do Estado contrária à moral religiosa, em especial a católica, a qual também estava imersa em questões de Estado, com os territórios pontifícios.

Razão de Estado, após o século 16, passa a recolher o tema da conservação política. Vejamos numa rápida inspeção, os principais autores que dissertaram sobre o tema. O primeiro autor relevante é Giovanni Botero. O livro Della Ragione di Stato (1589), surge como a primeira elaboração teórica do projeto de conservação do Estado.”Estado é um domínio firme sobre os povos; e Razão de Estado é notícia dos meios aptos a fundar, conservar, e ampliar um dominio assim feito. É verdade que, embora absolutamente falando a razão de Estado liga-se às três partes mencionadas, parece no entanto, que abrace mais estreitamente a conservação do que as outras; e além disso ligue-se mais à ampliação do que à fundação”.

Ragion di Stato é a busca dos instrumentos idôneos para conservar o que se realizou, as situações de poder político adquirido. Trata-se de “manter firmemente, quando cresceram, sustentá-las de tal modo que não se degradem e não se precipitem, é empreendimento de um valor singular, e quase superhumano”. A prudência política é o centro da reflexão de Botero. Trata-se de uma forma de ars practica, no sentido aristotélico, a capacidade de usar o conhecimento dos fatos e dos saberes diversos para os fins da ação política. O governo deve contar com notícias aprofundadas das coisas e da prática. Com tais notícias acumuladas, são estabelecidos códigos de comportamento. O governante identifica problemas que exigem a sua intervenção para fins técnicos ou disciplinares aos governados. Com as noticias e os comportamentos, os governam ganham tempo na ação, garantindo a conservação do coletivo. As práticas políticas prudenciais abreviam o tempo, trazendo o futuro para o presente. O dominio do tempo regula-se segundo a prudência, na fórmula de Botero, “non fare novità”. O governante deve reduzir ao mínimo as situações de excepcionalidade, definindo padrões habituais de intervenção.

Entre as técnicas de governo, a Razão de Estado privilegia o tempo oportuno. O poder deve usar a dissimulação para isolar o objeto a ser tratado dos demais a ele relacionados. Com semelhantes estratagemas, o governante ganha tempo e pode acelerar ou retardar atos, ficando menos sujeito às pressões cronológicas, o que permite a previsão que lhe garante a iniciativa em situações de conflitos ou dificuldades econômicas.

A razão de Estado procura, no interior do corpo social e político, os setores que mais ganham ou perdem com a conservação do poder. Aos primeiros, ela arrebanha e aos segundos, procura afastar. Com isto, define o consenso que lhe fornece a legitimação. Claro que, neste ponto, o governante deverá diminuir o poder dos muito fortes e promover os “mezani”, os que possuem interesses médianos, que não são muito ricos ou muiro pobres. Os muito pobres são “pericolosi alla quiete pubblica” pois não têm interesse algum para salvar : “deve dunque il Re assicurarsi di costoro, il che farà in due maniere, o cacciandoli dal suo Stato, o interessandoli nella quiete di esso; … s’interesseranno con l’obligarli a far qualche cosa, cioè ad attendere, o all’agricoltura, o all’arti; o ad altro essercizio, col cui emolumento possano mantenersi”. Afinal, “ragion di Stato è poco altro, che ragion di interesse”.

O governo da razão de Estado busca organizar a cidade na qual são reconhecidas as razões de interesse e os artifícios que permitem a obediência civil. Contra Botero, Fabio Albergati, no livro La republica regia (1627), recusa a ragione e l’interesse do Estado, em prol das razões naturais e morais que sustentariam o poder político: “o saber operar por razão de Estado absolutamente, o que ocorre com todos os Estados e repúblicas, é obra do legislador universal (…) prudente civil que, conhecendo toda forma de governo sabe conformar a forma ao mode de operação. Operar por razão particularizada deste ou daquele Estado, é próprio do legislador desta ou daquela república. Razão de Estado absoluta é a regra, pela qual o legslador absoluto opera em cada Estado segundo a sua forma”.
Ragion di Stato, instrumento de governo usado por todos os governantes, deve unir-se à prudência civil que garante o elo (explicitado por Aristóteles) entre o que é honesto e o que é útil. Embora de fundamento católico, a base da doutrina de Albergati não é transcendente : “as razões do político modernos devem ser refutadas não com termos da fé, mas com a razão natural”. Mesmo Albergati, no entanto, admite a prática da dissimulação pelo governante, o que apresenta problemas para a sua idéia do honesto em política.

Federico Bonaventura, no Della Ragion di Stato et della prudenza politica (1623), procura demonstrar, baseando-se em Aristóteles e na escolástica, que a ragion di Stato pertence à virtude moral e à prudência civil. Seu papel seria especialmente consultivo : “hábito prático de bem consultar e resolver segundo a reta razão as coisas mais importantes da república”. Esta capacidade consultiva não se vincula às obrigações das leis ou à administração impessoal da justiça ; nos casos particulares que tratam do que é justo mas não escrito e nas questões duvidosas , a ragion di Stato “muda e altera sempre, e corrige segundo a necessidade”. A razão de Estado não restringe a lei, mas a interpreta ou a dilata , logo ela não vai contra a lei, “mas está sobre a lei”. Ragion di Stato é a disciplina política necessária a todos os governantes para realizar a saúde e a manutenção do Estado. Para tal fim, ela utiliza as insidie lecite contra os inimigos e artimanhas contra os cidadãos, para eccitare qualche virtuoso affetto.

O que seria, pergunta Descartes na carta a Elisabeth sobre Maquiavel, “um homem de bem”? Aqui ele recusa a tese maquiavélica, reduzindo o alcance da noção em debate. Se Maquiavel entende como “homem de bem” o supersticioso, o exemplo dado por ele é o judeu que “ousa guerrear no Sabat, cuja consciência nunca repousa enquanto ele não mudar a religião de seu povo”. Aqui, o visado diretamente é o protestante. Este último retomou costumes e doutrinas vetero testamentários, com escrúpulo similar ao dos judeus ortodoxos, como tenta mudar a religião francesa, sem encontrar descanso na própria consciência. Se “homem de bem” é o fanático religioso, Maquiavel tem razão. Caso contrário, erra. Se homem de bem é o que segue a “razão reta”, é certo que o melhor é tentar ser daquele modo, sempre. O fanatismo apaixonado traz a ruína do príncipe, o pensamento racional o preserva. Não é muito diferente a lição do Tratado Teológico-Político de Spinoza. 

Descartes também se eleva contra uma tese encontrada no capítulo 19 de O Príncipe : “que podemos ser odiados pelas boas quanto pelas más ações”. Estaria certo Maquiavel se com a tese significasse que a inveja é puro ódio. Descartes não pensa assim da inveja. Esta, no seu entender, “é um vício que consiste numa perversidade natural. Esta faz com que certas pessoas se irritem com o bem que notam nos outros. Mas uso aqui tal palavra para significar uma paixão que nem sempre é viciosa. A inveja, pois, sendo uma paixão, é uma espécie de tristeza misturada de ódio, que vem porque vemos ocorrer algo bom aos que pensamos serem dignos. E tal só podemos pensar com razão dos bens de fortuna. Pois, quanto aos da alma, ou mesmo do corpo, como os temos do nascimento, basta sermos dignos deles, e de te-los recebido de Deus antes que fossemos capazes de fazer algum mal”. (28) Descartes distingue, pois, a inveja da indignação. Esta pode ser determinada pela piedade (diante dos que sofrem um mal) e por inveja (diante dos que conseguem um bem). (29) O mote mais conhecido, nas Paixões da Alma, é o que afirma peremptóriamente : ” Nenhum vício prejudica mais a felicidade humana do que a inveja”. 

Outros pensadores não determinam a inveja enquanto mistura, e definem a inveja de modo mais amplo. Todos recordam a definição spinozana de inveja : “Invidia est odium quatenus hominem ita afficit ut ex alterius felicitate contristetur et contra ut ex alterius malo gaudeat”. (A inveja é o ódio enquanto ela afeta o homem de tal modo que ele se contrista com a felicidade alheia e ao contrário se alegra com o mal que ataca os outros). (30) Os príncipes, no entanto, diz Descartes, não têm o costume de serem invejados pelo comum dos dirigidos, mas apenas pelos grandes ou vizinhos, aos quais as mesmas virtudes que geram inveja também suscitam temor. Por isso, eles nunca devem se abster de fazer o bem, para evitar este tipo de ódio. Eles só podem ser prejudicados pela arrogância ou injustiça que o povo veja em seus atos. Mas o que é justo? Algo difícil de assumir pois é bem disputado pelos partidos. Ora, o principe escolhe o bem público e não o dos particulares. Trata-se então de convencer a opinião pública sobre a melhor escolha, por meio de escritos ou usando os pregadores. “O povo suporta (souffre) tudo o que lhe é persuadido ser justo, e se ofende com tudo o que imagina injusto”. Temos aí a base da retórica e da propaganda fartamente utilizada no tempo de Richelieu e em nossos dias. 

Assim, das lições maquiavélicas, podemos reter na percepção cartesiana o tema do ser e do parecer, do bom verdadeiro e da força. O maquiavelismo invade, naquele momento, todas as reflexões sobre a política, a moral, a religião. Vejamos como a pensamento e os atos dissimulados recebem sua crítica na cultura do século. Comecemos com o próprio Descartes e a dissimulação moral.

Como podemos distinguir, na fala dos soberanos e dos particulares, a veracidade de seus propósitos e valores? A base para se atingir tal percepção encontra-se na própria divindade. Na Quarta Meditação lemos nós: “é impossível que Ele (Deus) jamais me engane, pois em toda fraude e embuste (tromperie) se encontra alguma imperfeição. Embora pareça que poder enganar (tromper) seja marca de sutileza ou potência, contudo querer enganar (tromper) testemunha sem dúvida fraqueza e malícia. E, pois, isto não pode se encontrar em Deus”.

Como diz corretamente um comentador de Descartes, André Gombay (31) quando ouvimos palavras como “astuto”, “finório”, “ladino”, “esperto”, “tirar vantagem” , “manobra”, “maquinação” , “manipular”, “vivo”, tais palavras dificilmente enunciam os dissimuladores como seres fracos, pelo contrário. O autor recorda a figura de Ulisses na Odisséia, quando seu elogio é feito pela deusa Atenas: “Quem quer que vos seduza deve ser penetrante e ardiloso como uma serpente; mesmo um deus deve se curvar diante de vós, devido à dissimulação. Vós, Vós camaleão! Alforje de infindáveis truques” (Odisséia, 13, 288-291). (32) O arquétipo do poderoso e mentiroso, ardiloso enganador, Ulisses é tudo, menos fraco. Tal modelo cai como um luva, adianta Gombay, no instante em que “os liames conceituais entre poder e falsidade estão prestes a ficar mais fortes”. 

A razão de Estado se escuda na desculpa de que as mentiras, os truques sujos, os golpes baixos dados no segredo contra partidos políticos, ou contra simples particulares são feitos para “melhor bem da república”, a salus populi. Os que não possuem o manejo do Estado não suportariam atrocidades que devem ser cometidas para que a vida coletiva se mantenha saudável. Mersenne, correspondente de Descartes, adianta a “teoria” do benéfico poder mentiroso, levando a hipótese ao divino e possibilitando indicar o exemplo do rei, pai do povo: “Não poderia Deus tratar os homens como um médico trata o doente, ou como um pai trata o filho? Em ambos os casos, engana-se frequentemente, embora sempre de modo benéfico e com sabedoria. Pois se Deus nos mostrasse a verdade pura, que olho, que visão mental poderia suportá-la?” (Segundas Objeções). 

E se os médicos, como os supostos pais da pátria, forem pouco divinos e mais próximos de Iago e demais charlatães? E quando a propaganda relata tudo, menos a menor faixa de verdade? E se a mesma propaganda esconder a pior tirania? Agora é preciso deixar o autor do Discurso do Método e nos dirigir à comédia das múltiplas dissimulações, a começar com a figura do médico. Na peça O Misantropo, Molière ataca as pessoas ditas de bem, que exageram as marcas da polidez, aos autores de versos inúteis, ao uso de importunar os juízes, aos caluniadores. (33) Como os livre pensadores do tempo, ele se volta contra o homem em geral, uma fera odiosa. Como dizia M. de Fontenelle, citado por George Couton, “Os homens são tolos e perversos (sots et méchants) (…) mas, embora sejam eles assim, preciso viver com eles e isto eu disse a mim mesmo desde logo cedo”. Nas peças de Molière desfilam usurários ávidos e ladrões (O Avaro), maridos traídos (George Dandin), críticas ao processo Foucquet, que terminou com prisões e multas de porte inferior ao esperado, o que levou financistas ao novo enriquecimento (O burguês fidalgo). Aqueles financistas voltam a ganhar muito dinheiro com o comércio exterior, para desaguar os produtos da recente industrialização. A crítica de Molière cai sobre eles, e não apenas sobre um burguês medíocre. Mas os poderosos vencem, e Molière se retrai a temas menos perigosos, ligados aos assuntos privados e não tanto aos problemas de ordem pública. Mas continua a dizer que o homem é um animal ruim. E aparece o tema da hipocrisia, na surdina. E temos peças como O Amor Médico, na qual se movem alquimistas, astrólogos, lisonjeadores, médicos. Todos eles fazem fortuna com as paixões humanas: avidez, vaidade, ambição, medo de morrer. Quem mais ganha é o médico, que explora o medo da morte. Todos aproveitam a tolice humana, bem como a sua ferocidade.

As ligações entre os espertos são múltiplas. No Doente Imaginário, o médico, Senhor de Boa Fé (Monsieur de Bonnefoy) sabe que ele depende do notário, o qual deve ser “compreensivo” e fazer justo o que é proibido. Sem o casamento do representante do Estado e das leis, com o médico, ambos teriam pouco futuro em termos de sobrevivência e promessas de riqueza. Há todo um círculo infernal da hipocrisia denunciado por Molière. No caso dos médicos, o teatro do autor mostra que doentes e técnicos, cada um de seu lado, são desprovidos de razão e de senso comum, os dois são corrompidos, degradados e, de algum modo, vítimas da medicina. Esta última não é arte, nem ciência, apenas magia. 

Com Tartufo, creio, estamos na mais forte crítica à sociedade do período. Trata-se de uma peça apresentada a Luis XIV, depois vetada por influência das pessoas piedosas, as que se ligavam aos batalhões da Igreja e da Corte. George Couton apresenta um excelente estudo sobre o problema da hipocrisia no século 17, vou seguí-lo mais de perto naquela análise. 

Em primeiro lugar, a hipocrisia tem um terreno fertil em matérias ligadas à religião, embora longe do que nela é santo. O fato é que os bens eclesiásticos ainda tentam muito os filhos mais novos das famílias aristocráticas, ou burguesas e mesmo os jovens camponeses desejosos de subir na escala social. Cada um, de acordo com a sua mandídula e o poder de suas famílias, tenta arrancar um pedaço do bolo sagrado. É o caso de Richelieu, filho mais jovem de uma família nobre mas decadente. Destinado ao manejo das armas, ele foi conduzido pela sua mãe viúva a entrar para a carreira eclesiástica, já como herdeiro de um bispado pobre, mas que lhe garantia um status e renda. Para ser bispo, no entanto, ele deveria ter idade suficiente. Não se constrangeu: mentiu em documentos, quando já estava em Roma tentando a sorte junto ao Papa. Ele chegou ao soberano pontífice devido a um truque envolvendo seus dotes de inteligência e memória: na saída de uma missa, ele recitou para clérigos importantes da corte papal todo o sermão que ouvira, sem nenhum erro. A proeza chamou a atenção do Papa, que o conviou para novos testes face a face. Conquistada a simpatia do pontífice, ele confessou ter adulterado a idade para ser sagrado. O papa achou graça e disse que ele iria longe. E foi. (34)

A hipocrisia e o cinismo (entendido no sentido vulgar) são recursos poderosos na corrida pelas prebendas, paróquias, bispados e, quem sabe, até mesmo pelos chapéus cardinalícios, que prometiam a tiara. Instrumento de concorrência pelos lugares de mando e riqueza, a hipocrisia se define como virtude ética, num paradoxo muito usual no mundo político e nos mercados, sejam eles da fé ou das verbas. Um elemento que piora tudo, para quem não enxerga o mundo de ponta cabeça, é existir o recurso da colação, ou seja, estar o cargo eclesiástico ao dispôr de um poderoso qualquer. É a ele, e não ao poder eclesiástico, que deve se dirigir o candidato aos cargos. Daí, a encenação da piedade ser ainda mais necessária. Além disso, não existia grande cultura teológica e moral, no preparo dos futuros padres. Não existiam seminários em número suficiente para formar ou despedir candidatos inadequados. Aí, a hipocrisia, forma de exibir qualidades inexistentes, impera sem freios intelectuais.
No prefácio de Tartufo, Molière diz que a hipocrisia é um “vício privilegiado”, algo próximo do que a teologia moral chamava “pecado reservado”. O seu tratamento é cheio de cautelas, colocando a hipocrisia perto do pecado venial, ou desculpável. Um teólogo do tempo, Pierre Milhard, afirma que ela é uma mentira, filha da vanglória. Ela pode se tornar pecado capital, de acordo com o resultado que produz. Mas o mais frequente é que ela seja capaz de ser desculpada. 

Mas existe uma outra forma de hipocrisia diz o autor, “formada ao se exercitar certas ações virtuosas em si mesmas, principalmente para que o agente seja visto e honrado pelo próximo: assim rezar, dar esmolas, jejuar e outras obras de misericórdia ou mortificações exteriores, as quais, sendo feitas principalmente por hipocrisia e ostentação, elas são não apenas vazias de seu mérito natural, satisfação e interpretações, mais ainda sujam, corrompem e marcam com o pecado venial os que os fazem com tal intenção”. E vem logo a seguir um exemplo: “Francisco prega, celebra a missa, comunga ou assiste os ofícios divinos apenas para angariar honra e reputação. Um sujeito que vê, propondo a si mesmo apenas a honra, só é ofendido desculpavelmente”. Outro teólogo precisa o ponto: “Quem dissimula (simula) ser um homem casto, sóbrio e virtuoso não para enganar ninguém, ou obter algo, mas pelo prazer que ele consegue, peca venialmente. Assim, o clérigo finge (fait la mine) ser virtuoso, para que Deus ou a Igreja sejam honrados, não peca, mas apenas de maneira desculpável” (Benedicti, Suma dos pecados, 1583, com muitas reedições). 

Estamos em terreno perigosíssimo. Ninguém, no século 17, ainda esquecera a diatribe de Cristo contra a hipocrisia. Para os não acostumados aos textos evangélicos, cito o trecho inteiro de Mateus 23: “…ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! (35) pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando. (…) Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo. (…) Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós. (…) Ai de vós, condutores cegos!”. Segundo terreno, ainda mais perigoso do ponto de vista político, a recusa das boas obras pela Reforma protestante. Assim, a desculpa da hipocrisia tem o sabor de uma defesa do catolicismo, segundo o qual, na vertente tomista, o homem pelo livre arbítrio (negado por Lutero e Calvino) colabora com Deus para a salvação praticando boas obras. O debate dogmático e moral, em instantes, pode se envenenar e se fazer assunto de guerra entre católicos e protestantes, mesmo no tempo de Luis XIV que, não por acaso, aboliu o Edito de Nantes, de tolerância face aos huguenotes.

“Vós tendes sido, durante muitos séculos, a parte mais visível do cristianismo; assim, é por vós que podemos julgar o todo. Or, qual juízo podemos fazer do cristianismo, se nos regularmos pela vossa conduta? Não devemos acreditar que se trata de uma religião que ama o sangue e a carnificina; que pode violar corpos e almas; que, para estabelecer sua tirania sobre as consciências e fabricar finórios (fourbes) e hipócritas, caso não tenha a maestria de persuadir o que deseja, põe tudo em uso, mentiras, juramentos falsos, dragões, juízes iníquos, chicaneiros e pedintes de favores em péssimos processos, falsos testemunhos, carrascos, inquisições; e tudo isso, ou fazendo cara de acreditar que é permitido e legítimo, porque útil à propagação da fé, ou acreditando nisto efetivamente; que são duas disposições vergonhosas para o nome cristão ?” (Pierre Bayle, La France toute catholique sous le règne de Louis-Le-Grand, 1685)

Todos conhecem o dito de La Rochefoulcaud, segundo o qual “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude” (Máximas, 218). Pascal aconselha ao incrédulo se persignar com água benta e encomendar missas, uma espécie de hipocrisia temporária que pode levar à conversão autêntica. Se mesmo um jansenista como Pascal recomenda o uso da hipocrisia, como condená-la severamente? A pedagogia de Pascal se aproxima perigosamente da peça de Routrou, Saint Genest, comédien et martyr: trata-se de um artista comediante (hupocrites) que, em plena representação, deixa cair a máscara, exprimindo a si mesmo em lugar do personagem. A peça, barroca por excelência, apresenta três problemas principais. Primeiro: qual estatuto possui o comediante. Ele seria um mentiroso, alguém cinico que afirma uma verdade e a nega em si mesmo e para si mesmo? A sua arte é relativa aos outros, de acordo com a intersubjetividade? O comediante seria apenas um aparador do personagem, de modo que nada no último se encontra no primeiro? Mas Genest vai se tornar um martir da…verdade. (36) Não quero retirar dos senhores o prazer desta leitura e do titulo que irá se repetir na escrita de Sartre : Saint Genet comédien et martyr, com um conteúdo bem menos religioso do que no caso do século 17. 

Teria o teatro, sobretudo o crítico dos costumes como o de Molière, a função de melhorar os hábitos, a ética societária ? Godeau nega tal possibilidade, no que é repetido no século seguinte por Rousseau na já citada Carta a D´Alembert sobre os Espetáculos. “Pour changer leurs moeurs et régler leur raison/Les chrétiens ont l ´Église et non pas le théatre”. Claro que, no caso de Rousseau, a mudança a ser feita se encontra na religião civil e não no âmbito do catolicismo. Não caberia a Molière, autor escandaloso ou mesmo pornográfico mudar costumes. É o que diz Bordaloue no Sermão sobre a Hipocrisia: “Eis cristãos, o que ocorreu quando espíritos profanos e bem afastados de querer entrar nos interesses de Deus, quiseram censurar a hipocrisia, não para reformar os abusos, o que não é da sua conta, mas para dela fazer uma espécie de diversão, da qual a libertinagem fez o seu lucro”. 

As fontes de Molière para o Tartufo são várias, dentre elas Ipólito de Aretino. Ipolito se instalou na casa de um velho, do qual se tornou parasita. Como Tartufo, ele faz pensar que é devoto, mas na verdade deseja a dona da casa. E triunfa no fim. Além disso, temos o romance Os hipócritas de Scarron. Montufar, o personagem principal, ostenta devoção, quando encontra mulheres, abaixa os olhos em sinal de pudor. Descoberto por um sujeito a quem prejudicou ele “confessa” ser um pecador, etc. E finge arrependimento, chegando a passar por santo, ou no mínimo carola. Depois de certo tempo, desaparece. 

Molière traduziu o poema De rerum natura. Lucrecio, no século 17, tinha a fama de Epicuro: um porco ateu e sibarita, diabólico. Um ataque virulento foi efetuado pelo padre Garasse, na Doutrina Curiosa dos belos espíritos deste tempo (1623). A reabilitação parcial do epicurismo é feita por La Mothe le Vayer (De la Vertu des payans, 1642). Mesmo Vayer nao conseguiu, com golpes de retórica, arrancar Epicuro dos infernos. Foi Gassendi o reabilitar melhor sucedido na campanha, no De vita et moribus Epicuri (1647). A primeira tradução revista por Gassendi do poema é feita pela padre de Marolles (1659). 

Todo esse movimento integra o campo da forma libertina de pensar, chamada por clérigos de encarnações proteiformes do demonio. E surgem as distinções entre o epicurismo dogmático e os sentidos menos exigentes da doutrina, analisados por Le Vayer. Assim, se levarmos em conta a presença direta ou indireta do epicurismo, a sua grande repercussão no tempo, precisamos consentir que o teatro de Molière, ao lado de outras fontes, apresenta um lado epicurista. Daí, o combate mais duro contra as peças de Molière pelos devotos católicos. 

O campo da hipocrisia abrange os devotos falsos ou falsos devotos e uma rama de textos polêmicos, irônicos, etc. Spinoza deixa clara sua posição contra a hipocrisia e o libertinismo leniente no plano ético em carta enviada a Jarig Jelles. Diz ele estar preocupado porque se anunciou a publicação, em holandês de um livro cujo título era Tratado Teológico-Político. Temendo ser o seu escrito, ele pede a Jelles que tudo faça para impedir a referida publicação, dados os prejuízos previsíveis para o autor original. Depois comenta ter recebido, “um pequeno livro intitulado Homo Politicus”. Eu o li, diz ele, ” e o considero o mais perigoso que um homem tenha podido inventar e fabricar. Para aquele autor o Bem soberano encontra-se nas honras e riquezas, é para tal ponto que tende a sua doutrina, um meio de subir na vida chegando até elas, ele deste modo ensina: para tal é preciso recusar toda religião interior e professar inteiramente a que mais contribui para nosso progresso, não sendo necessário manter empenhos para com ninguém, a menos que eles nos tragam lucro. Exceptuando tal caso, ele faz o maior elogio da hipocrisia, das promessas não honradas, das mentiras, do perjúrio e muitas outras práticas do mesmo gênero. Após tal leitura me veio à mente escrever indiretamente contra aquele autor, numa pequena obra na qual tratarei do Bem Soberano, depois mostrarei a condição inquieta e miserável dos ávidos de honras e riquezas e estabelecerei, enfim, por razões as mais evidentes e numerosos exemplos, que o desejo insaciável deve conduzir e de fato levou à ruína dos Estados”. 

Apenas em 1890, numa lista de livros raros encontrados entre os papéis deixados por Spinoza, foi descoberta a referência do escrito em pauta, Franciscus Datisii homo politicus, liber rarissimus. Talvez o título seja inexato pois, segundo o que é sabido, ele não aparece em nenhuma bibliografia. Há um livrinho em latim com o título de Homo politicus, hoc est: consiliarius novus, officiarius et aulicus, secundum hodiernam praximm auctore Pacifico a Lapide. Editio secunda, auctior et emendatior. Cui accesserunt Monita privata Societatis Jesu. Cosmopoli, MDCLLXVIII. O conteúdo é muito aproximado ao descrito por Spinoza em sua carta a Jelles. (37)

A seguir Spinoza faz o elogio da philia, seguindo os passos de Tales de Mileto.”Todas as coisas, dizia ele, são comuns entre amigos, os sábios sendo amigos dos deuses, como todas as coisas pertencem aos deuses, logo todas pertencem aos sábios. Com uma só palavra, pois, este grande sábio se fazia muito rico, por desprezo generoso das riquezas e não por sua busca sórdida. Ele mostrou também muitas vezes que se os sábios não são ricos, é voluntáriamente, não por necessidade. Aos amigos, com efeito, que lhe reprovaram a sua pobreza, ele respondia : ´Quereis que vos mostre que está em poder adquirir o que julgo não valer a pena, e que para vós é objeto de uma laboriosa busca?´ Sim, disseram, e então ele alugou todas as prensas da Grécia (ele tinha visto, com efeito, como grande astrônomo, que haveria grande abundância de olivas, quando nos anos precedentes a colheita foi muito pequena), e sublocou aos preço que bem quis, o que tinha alugado barato. Ele ganhou assim, em um ano apenas, grandes riquezas das quais dispôs a seguir com tanta liberalidade quanto havia usado de indústria para adquiri-las, etc. (Haia, 17 de fevereiro de 1671)”. 

Vejamos agora o que Spinoza diz sobre atitudes hipócritas, as quais diminuem o poder de comunicação entre as pessoas, enfraquecendo o Estado. Antes, vejamos a concepção spinozana do Estado, quando este último é dirigido pela razão e não suporta o império hegemômico das paixões. O primeiro ponto a ser definido no Estado racional é que nele os indivíduos amam a si mesmos e buscam o que lhes é útil. Um Estado que negue tais pressupostos ou é uma tirania ou, o que dá no mesmo, imenso palco onde hipócritas fingem não amar a si mesmos e também fingem desinteresse pessoal. A lei da natureza, que não é relativizada no interior da ordem política, segundo Spinoza (ao contrário de Hobbes) exige que todo ente busque conservar o seu ser, “tanto quanto está em si”. Semelhante lei é tão necessária, diz o filósofo, quanto a verdade de que o todo é maior do que as partes. (38) Temos aí as duas pontas da cadeia ontológica e política. Num sistema totalitário ou corrupto, os indivíduos perdem valor em prol do todo. Num Estado liberal comum, os indivíduos são postos acima do coletivo. Na perspectiva spinozana, os dois polos são co-esseciais: se os indivíduos não buscam seu interesse vital, o todo político desmorona e se um suposto representante do todo exige dos indivíduos a abdicação do desejo natural de vida, o mesmo todo desmorona. Notemos a fórmula “quod quidem tam necessario verum est” do enunciado. A necessidade, lição de Maquiavel, se instala no mais íntimo da ordem política. Se o Estado não garante os interesses vitais de seus integrantes, ele não é um Estado e, menos ainda, democrático, mas simples imposição pela força ou pela retórica de um status nada sólido, nada estável. Recordemos que Estado e estável vem do grego stasis, situação de repouso, equilíbrio entre forças conflitantes, ao contrário de kinesis, movimento. É preciso, no entanto, reconhecer com o conservador Carl Schmitt que stasis significa também revolta, guerra civil. Assim, o Estado correto mantem o equilíbrio entre os interesses individuais e grupais e os alvos coletivos, e vice-versa. Se ele não consegue fazer tal coisa, deixa de ser um Estado, para se transformar em perene guerra de todos contra todos. (39)

Seguem-se as bases do Estado racional (o Estado nunca é absolutamente racional, visto que nele se encontram, na gênese, paixões e razão, com predominância das primeiras, recordemos que o Estado não reúne almas, mas corpos que tem alma e desejos vitais) em dois itens estratégicos: o primeiro determina o que é virtude (termo chave nas escritas de Maquiavel). Virtude é o esforço para conservar o próprio ser. Como fruto da virtude, vem a felicidade, que nada mais é do que a mesma conservação (adquirida) do ser. É possível notar quando um Estado se aproxima ou se afasta do modelo a ser conseguido, basta verificar o quanto, nele, os indivíduos têm seu direito à vida garantido e, como consequência, nele são felizes. Um Estado triste é um não Estado no sentido spinozano. A virtude não pode ser um meio para a ordem social ou política, ela constitui (ou não) um fim. Se ela existe, todos ao mesmo tempo perseguirão seu interesse e, vice-versa, todos respeitarão os interesses alheios. Logo a seguir Spinoza fala dos suicidas. Eles são impotentes, dominados por causas externas à sua natureza. O mesmo, avancemos, pode ocorrer com Estados. Estes devem ser, como os indivíduos que o compõem, sui iuris. Se controlados por forças externas, são impotentes. E mais impotentes ainda se operam contra os seus interesses vitais. Ainda aqui temos a lição maquiavélica, bem captada no século 19 por Fichte. Na perspectiva de Maquiavel, como também de pensadores como Hobbes, o campo internacional é permanente exercício guerreiro de ataque e defesa territorial, com tudo o que o solo traz a cada povo. Os limites territoriais “deixam-se traçar”, diz Fichte, “mas não é apenas sobre o seu território que se estende o direito de alguém e que se funda a sua segurança, mas também sobre os seus aliados naturais e sobre tudo o que ele quer aumentar a sua influência (…) toda nação deseja estender o seu domínio próprio tão longe quanto quanto pode e, portanto, se isto dela depende, incorporar a si mesma toda a espécie humana (…) como é isto o que todas querem, os Estados se empenham necessariamente em conflitos, mesmo que eles fossem governados por espíritos puros e perfeitos”. 

Nas reflexões de Fichte sobre Maquiavel ocorrem duas regras políticas essenciais, ambas em termos éticos e políticos, mas definidas pela prudência máxima: a) O vizinho, a menos que ele seja constrangido a nos considerar como seu aliado natural contra uma outra potência temível para nós dois, está prestes continuamente, na primeira ocasião, desde que ele possa faze-lo com segurança, a crescer às nossas custas. É preciso que ele faça assim, se ele for prudente, e não pode negligenciar isso, mesmo que fosse nosso irmão. b) Não basta defender o nosso território mas é preciso conservar imperturbavelmente os olhos abertos sobre tudo o que pode influenciar a nossa situação, e não suportar nunca que algo mude em nossa desvantagem no interior dos limites desta influência, e não hesitar um átimo se pudermos mudar as coisas em nossa vantagem; pois devemos estar certos de que o outro fará o mesmo desde que possa, e se de nosso lado hesitarmos e deixarmos a ele a iniciativa. Quem não cresce, diminui quando os outros crescem. (40)

Quem não cresce comete suicídio tanto na ordem privada quanto no setor público, estatal. Não quer dizer que a atitude de um indivíduo em relação ao outro seja predatória, o mesmo ocorrendo nas relações entre Estados. A razão permite ver que o interesse de um pode ser complementar ao de outro, que é impossível, sem negar o próprio interesse, unir forças para vencer obstáculos naturais e humanos. Nenhum indivíduo ou Estado pode ser entidade isolada. Aí, com certeza a via spinoziana divergiria da assumida por Fichte no Der geschlossene Handelsstaate (1800). É verdade que este último, embora não mantenha relações com os demais Estados, no campo comercial, tudo faz para importar pessoas e técnicas avançadas, tendo em vista aumentar o poder interno e externo. Assim, ele não se distancia em termos absolutos do modelo spinozano, mas rompe com os pressupostos do “laissez faire” ou de Adam Smith. Não existe, no seu entender, mão invisível que assegure a estabilidade social ou política.

Segundo Spinoza, “é totalmente impossível que não precisemos de nada que nos seja exterior para conservar o nosso ser, e que vivamos de maneira que não tenhamos nenhuma troca (commercium) com as coisas que estão fora de nós”. Esta constatação vale para os indivíduos e para os Estados. Tal situação se baseia na recusa, em termos antropológicos e epistemológicos, do solipsismo. Spinoza vai ao mais fundo do Cogito cartesiano e o amplia a partir do interior. O ato de pensar e conhecer não tem base no Ego, mas no plano do Nobis : “si praeterea nostram mentem spectemus, sane noster intellectus imperfectior esset, si mens sola esset, nec quicquam praeter se ipsam intelligeret”. Traduzindo: “Se levamos em consideração a nossa mente, com certeza o nosso intelecto seria mais imperfeito se a mente existisse sozinha e não compreendesse nada além dela própria”. (41)

Da inter-subjetividade no ato de pensar e conhecer, Spinoza segue para as suas consequências práticas e políticas. Além de pensar em companhia dos outros indivíduos, cada ser humano habita o espaço natural, que também é partilhado em comum. Alí existem “muitas coisas ….que nos são úteis e que, por isso, devem ser apetecidas”. Notemos que na forma latina não existe o “deve”, este recorda em demasia o perfume do idealismo. A frase spinozana diz que “quae nobis utilia quaeque propterea appetenda sunt”. Nenhum dever-ser (Sollen), mas a constatação de um fato: tanto a extensão, quanto o pensamento, são atributos da substância infinita. Esta, por meio dos atributos e modos, produz coisas finitas. Mas “nenhum coisa singular, finita e com uma existência determinada, pode existir nem ser determinada a operar, a não ser que seja determinada a existir e operar por outra causa que também é finita e tem uma existência determinada; por sua vez, essa última tampouco pode existir nem ser determinada a operar a não ser por outra, a qual também é finita e tem uma existência determinada, e assim por diante, até o infinito”. (42) Da unidade à pluralidade, temos a sequência que vai de Deus aos cidadãos reunidos em Estado, este último, enquanto existir (ou seja, tiver em si mesmo o poder de se conservar) não pode ser concebido como exterior às coisas da natureza, porque “tudo o que existe, existe em Deus e dele depende, de maneira tal que sem ele não pode existir nem ser concebido”. Enquanto o Estado é finito, ele resulta da operação dos múltiplos indivíduos. Mas enquanto integra a natureza infinita, ele apenas possibilita que os indivíduos, nele reunidos, usem a natureza para sua conservação. Mas não existe, neste plano, acesso apenas individual à natureza, porque os indivíduos dependem uns dos outros para tornar úteis as coisas físicas e mentais dispostas nos atributos e modos divinos, ou naturais.

Dentre as coisas naturais que, por intermédio dos outros, nos proporcionam maior poder, as melhores são as que estão inteiramente de acordo com a nossa natureza. A igualdade natural dos indivíduos (segundo Spinoza a democracia é o regime mais natural), cujo suporte último é a unicidade da substância permite que “dois indivíduos de natureza inteiramente de mesma natureza”, quando se juntam, “compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles considerado separamente”. Como base divina, ou natural, comum, os indivíduos humanos não necessidade de guerrear sem interrupção, uns contra os outros. A base antropológica, cuja origem tem Deus como fonte, só pode concluir que “nada é mais útil ao homem do que o próprio homem”. Nada mais proveitoso, para quem deseja conservar o seu ser, do que a concórdia a mais completa, de tal modo que “as mentes e os corpos de todos componham como que uma só mente e um só corpo, e que todos, em conjunto, se esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e que busquem, juntos, o que é de utilidade comum para todos”. O Estado modelo não pode ser concebido pelos indivíduos humanos ainda presos ao Estado tal como ele surge da união que o produziu, porque nele a força e o medo são mais determinantes do que a razão. Já os homens “que se regem pela razão (…) que buscam, sob a condução da razão o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os outros e são, por isso, justos e confiáveis (fidos atque honestos)”.

Confiáveis, eis a palavra chave no Estado onde predomina a razão sobre as paixões. Com base em saberes oriundos da Grécia e de Roma, Spinoza indica o que pensa do cidadão ou do governante modelares. A Fides em Roma designa o elo que une os que, “sejam eles quem forem, lutam por um mesmo fim político”. E não só: “a fides que se encontra na base da amicitia instituída entre povos, é com maior razão o fundamento da amicitia entre Romanos”. Além disso, vejamos a etimologia da palavra. “Ela é a forma em grau zero do tema *bheidh-bhidh- à qual remontam igualmente as palavras gregas peithô e pistis (…) em Roma dá-se o culto da conhecida dea Fides”. Poderia ir adiante, na citação de J. Hellegouarch´h (43) mas o que indiquei basta para mostrar o quanto Spinoza retira do saber milenar ocidental algumas bases sólidas para a sua construção do modelo político. Fides é a base de todo Estado no qual não impera a fraude, a hipocrisia, a mentira. 

Qual a base do enunciado rigoroso da igualdade, que permite a colaboração dos humanos entre sí? O fato de que todos os entes são modificações de uma só natureza. Se é assim, tudo o que for feito para melhoria de um, será útil para o todo social, e vice-versa. O Sumo Bem possui a característica de ser expansivo, não restritivo e privilégio de poucos. A virtude, algo desejado por Maquiavel como fundamento do poder, pode ser atingida por todos os entes humanos. “Agir por virtude”, enuncia a proposição 36 do livro quarto, “é agir sob a condução da razão (…) e todo nosso esforço por agir segundo a razão consiste em compreender (…). Por isso (…) o bem supremo dos que buscam a virtude consiste em conhecer Deus, isto é (…) um bem que é comum a todos os homens e que pode ser possuído igualmente por todos, à medida que são da mesma natureza”. Não existe meio de se afirmar o aristocratismo, ou a pretensa superioridade do governante sobre o governado, pois se trata de uma condição natural de todos os homens a partilha da substância divina: “não é por acidente que o bem supremo do homem é comum a todos, mas pela própria natureza da razão, pois isso se deduz, indubitavelmente, da própria essência humana, à medida que ela é definida pela razão. E porque o homem não poderia existir nem ser concebido se não tivesse o poder de desfrutar desse bem supremo. Pertence, pois (…) à essência da mente humana, ter um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus”.

Se existe virtude efetiva, e não fingimento hipócrita de virtude, quem busca a virtude a “desejará, também, para os outros homens, o bem que apetece para si próprio. (…) Quanto maior conhecimento de Deus a essência da mente envolver, tanto maior será também o grau com que aquele que busca a virtude desejará, para um outro, um bem que apetece para si próprio”. A razão permite administrar as paixões, para que não se tornem desejo de posse exclusiva da vida, com todos os seus elementos. Sem o exercício expansivo da razão, os entes humanos deixam de conhecer sua própria essência, e ignoram a fonte real de seu poder, a natureza comum, divina. Um coletivo dominado pela paixão torna os indivíduos desejosos de impor aos demais o seu modo de imaginar o bem, querendo assim impor aos demais “a inclinação que lhe é própria”. Numa sociedade assim impera o ódio (que exclui) e não o amor (que inclui). Numa sociedade administrada pela razão, “quem se esforça por conduzir os outros (…) não age por impulso, mas humana e benignamente , e é inteiramente coerente consigo mesmo”. E chegamos ao segundo termo da frase mestra, citada acima sobre a cidadania num Estado modelar, o termo “honestate”, que as traduções trazem como “civilidade”. Não é bem disso que se trata. A civilidade resulta da virtude, da honestate, como o fruto da semente. É possível viver, sem rebeliões e intrigas pelo poder, na civitas comum, quando o grau de virtude for maior, melhor partilhado. E aí, não existe motivo para governo monárquico ou aristocrático, mas tudo está pronto para o advento do regime democrático. Neste último, deve reger a fides, a honestate, a virtù e, de modo natural, a philia. Alí, não tem lugar para a torpeza, o engodo, a hipocrisia. 

O fundamento antropológico da ordem democrática encontra-se no fato de que a fonte do poder, nela, é interna aos indivíduos reunídos, não os transcende. Alí, os indivíduos igualmente são “sui iuris” e não forçados por algum elemento externo. Spinoza não abole o direito natural e, nele, reconhece que os indivíduos têm um direito supremo, mantido pela natureza, de modo que todos estão aptos a defender e expandir a sua vida, julgando o que é bom ou mau, ou seja, o que é útil para si mesmo. Neste campo, cada um se esforça por vingar os malfeitos sofridos e tenta destruir os que odeia. Tal é o regime da guerra apaixonada de todos contra todos. A descrição se aproxima bastante da feita por Hobbes. Para que os homens “vivam em concórdia e possam ajudar-se mutuamente, é preciso que façam concessões relativamente a seu direito natural e dêem-se garantias recíprocas de que nada farão que possa redundar em prejuízo alheio”. Como esse é um campo da razão, e como os homens, no início, sofrem sob o domínio das paixões, o Estado só pode se originar, na sua gênese, no campo das paixões.

Vejamos o elo dos atributos e da substância: a extensão e o pensamento integram a substância infinita, mas não se confundem. Um pensamento só pode mover outros pensamentos, um corpo só pode mover outros corpos. Quanto mais presos aos próprios corpos e sofrendo a ação de outros corpos, sem aprofundar o pensamento próprio e o pensamento alheio, mais os indivíduos só podem ser movidos pelos corpos, ou seja, pela paixão: “nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais forte e contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um se abstém de causar prejuízo a outro por medo de um prejuízo maior. É, pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade, sob a condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de prescrever uma norma de vida comum e de elaborar leis, fazendo-as cumprir não pela razão, que não pode refrear os afetos (…) mas por ameaças. Uma tal sociedade, baseada nas leis e no poder de se conservar, chama-se sociedade civil (civitas) e aqueles que são protegidos pelos direitos dessa sociedade chamam-se cidadãos”. 

As noções de bem e mal coletivamente aceitas, exigem o estabelecimento, pelo medo comum, do Estado. No interior da natureza o acordo sobre o bem e o mal não se estabelece, visto que nela cada um entende e procura o seu bem, e evita o seu mal. A partilha desses valores começa a surgir na vida comum, garantida pelo Estado. Este permite o fortalecimento da razão, ou seja, da potência expansiva do pensamento que faz os indivíduos vislumbrarem, pelo conhecimento, a verdadeira essência divina, para além da pura força, do puro acumulo de corpos apaixonados. Assim, para atingir a democracia, o mais natural dos regimes, o itinerário das mentes segue da monarquia às formas aristocráticas, num crescendo que não é apenas numérico, mas que abre, gradativa e penosamente, o caminho para o desejo e o cogito coletivo exercidos pela maioria esclarecida. A segurança, a propriedade, todos os elementos da sociedade civil, só podem ser conseguidos no processo de ampliação do campo racional, pois no campo das paixões não existe nenhuma garantia da posse, sequer do próprio corpo. Assim, a mente que mais se aproxima da ciência, ou seja, do divino, não se dedica prioritáriamente à defesa da propriedade, à busca da segurança contra os demais, norteada pela noções de justo e injusto. Aqueles bens são extrínsecos ao Bem Supremo, o divino que não admite separação, propriedade, querelas de uns contra os outros. Enquanto a sociedade como um todo não atingir tal ponto, as noções de bem e mal, justo e injusto, muito próximas das paixões corporais, e portanto, sujeitas a disputas e à guerra das representações, servem como norte (incerto) da ordem política. Quanto mais próximos da razão (que prescreve a partilha da natureza e do pensamento), maior a concórdia entre os homens. 

A partilha da força e do poder divino atenua ao máximo as paixões baixas, próprias dos corpos cujo pensamento não se desenvolveu adequadamente. A ascese, a idéia de uma humanidade sem paixões, no entanto, em vez de conduzir a sociedade ao aperfeiçoamento, apenas pioram o quadro das paixões, com a hipocrisia e a inveja. Spinoza une a política ao aumento da potência de todos e de cada um dos indivíduos, sua política é o verdadeiro hino à alegria. “Nada, certamente, a não ser uma superstição sombria e triste, proíbe que nos alegremos. Por quê, com efeito, seria melhor matar a fome e a sede do que expulsar a melancolia? Este é o meu princípio e assim me orientei. Nenhum deus (Nullum numen), nem ninguém mais, a não ser o invejoso, pode comprazer-se com minha impotência e minha desgraça ou atribuir à virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo, e coisas do gênero, que são sinais de um animo impotente. Pelo contrário, quanto maior a alegria de que somos afetados, tanto maior a perfeição a que passamos”. 

O Estado onde impera a alegria é o lugar da virtù. Esta, por sua vez é força dirigida para o bem comum. No Estado democrático, os dirigentes não temem os dirigidos e vice-versa, porque ambos são fortes o bastante para conservar a si mesmos, no mesmo ato em que conservam o coletivo. “O homem forte considera, antes de mais nada, que todas as coisas se seguem da necessidade da natureza divina. E por isso, quando pensa que tudo é danoso e mau e tudo lhe parece ser incivil, horrendo, injusto e desleal, considera que isso ocorre porque concebe as coisas de maneira perturbada, mutilada e confusa. E por esse mottivo, ele se esforça, antes de tudo, por conceber as coisas tal como elas são em si mesmas e afastar os obstáculos que se colocam ao verdadeiro conhecimento, tais como o ódio, a ira, a inveja, o escárnio, a soberba e outras coisas do gênero”. 

Quase no final do livro quarto, no Capítulo 27, Spinoza indica os nexos entre indivíduos e coisas naturais externas a eles no sentido positivo. Podemos ter com elas experiência, conhecimentos, mudá-las, transformá-las mas, sobretudo, podemos com elas conservar o nosso corpo. Assim, são úteis as coisas que nos alimentam, de tal modo que todas as partes do nosso corpo possam fazer seu trabalho, “pois quanto mais o corpo é capaz, de variadas maneiras, de ser afetado pelos corpos exteriores e de afetá-los, tanto mais a mente é capaz de pensar”. Aqui, temos uma relação inédita entre paixões e pensamento. Quanto mais afetado pelos corpos exteriores não significa ser por eles dominados, mas deles ter a experiência, o conhecimento. É possível e necessário unir a vivências corporais e a razão. As artes, as ciências, os esportes, todas estas atividades servem para aumentar a potência corporal e, portanto, ajudam a mente a inspecionar a si mesma quando o corpo nelas se exercita. Os divertimentos não constituem obstáculos ao plano mental, pelo contrário. O homem honesto os utiliza para seu próprio bem e para o bem alheio.

Para obter as coisas externas, portanto, não bastam as forças de cada indivíduo isolado, mas é preciso que eles prestem serviços uns aos outros. Se não existe cooperação entre eles, todas as coisas mencionadas acima acabariam “por se resumir ao dinheiro. Daí que sua imagem costuma ocupar inteiramente a mente do vulgo, pois dificilmente podem imaginar alguma outra espécie de alegria que não seja a que vem acompanhada da idéia de dinheiro como sua causa”. Quando o dinheiro deixa de cumprir o papel de meio e se torna um fim, é porque o indivíduo se deixou dominar pela imaginação e paixão, o que é um vício (vitium) aprendido. Os indivíduos assim possuídos “aprenderam a arte do lucro, da qual muito se vangloriam. De resto, eles alimentam o corpo segundo o costume, mas com avareza, porque acreditam que seus bens se esvaem na mesma proporção do gato feito na conservação de seu corpo”. Avareza, tristeza, inveja, hipocrisia, tais formas apaixonadas definem a sociedade ainda não constituída de maneira racional, ou seja, democrática. 

Todos os vícios da sociedade que não segue o caminho da razão, da natureza, podem ser encobertos, gerando a impressão falsa de uma concórdia. O Estado que vive sob aparências de virtude e não as possui de fato, está prestes à ruina pela sua corrupção. É preciso que o homem honesto vive de maneira modesta, sem afetar virtudes, sem ostentar vícios. A modéstia se liga à piedade (pietas), segundo Spinoza. “Chamo piedade”, diz ele, “o desejo de fazer o bem na mente conduzida pela razão. O desejo de se unir aos outros por laços de amizade, quando possui um animo governado pela razão, o chamo honestidade, e os honesto é para mim objeto dos louvores dos homens governados pela razão, como desonesto é o contrário à formação da amizade. Já expliquei os fundamentos do Estado, é fácil deduzir a diferença que separa a virtude da impotência. A virtude verdadeira nada mais é, com efeito, que uma vida regrada pela razão; por conseguinte a importância consiste apenas em que o homem se deixa governar por objetos externos e se determinar por eles para ação em harmonia com a constituição comum das coisas externas, mas não com a sua própria natureza, considerada em si mesma.”

O Estado permite reverter o controle do mundo exterior e seguir para o campo da cooperação entre indivíduos. Retomemos um trecho citado acima: “A sociedade fundada sobre as leis e sobre o poder que ela tem de se conservar é o Estado. E os que ela protege com o seu direito são cidadãos. No estado de natureza, vemos claramente, nada é bom ou mau por consentimento universal, pois cada um cuida da sua própria utilidade, e segundo a sua constituição e a sua idéia do interesse particular, decide o bom e o máu, não sendo obrigado a obedecer a ninguém mais do que a si mesmo. No estado de natureza é impossível conceber pecado (peccatum).” Repisemos o termo. No direito romano da era republicana, são definidas as infrações em públicas e privadas, segundo exigiam, ou não, um judicium publicum. A expressão crimen aplica-se às primeiras, delictum às últimas. Mais tarde, as duas palavras foram com frequência trocadas uma pela outra. As duas, no entanto, se distinguem de termos como maleficium, que indica todo malfeito, flagitium, ato vergonhoso, peccatum, falta moral. Se no estado de natureza não existe falta moral, no estado de sociedade, no entanto, “onde o consentimento universal determinou o bem e o mal, onde cada um é conduzido a obedecer o Estado. O pecado consiste, pois, apenas na desobediência, punida por conseguinte apenas pelo direito do Estado. A obediência pelo contrário é mérito do cidadão, e o torna digno de usufruir as vantagens da sociedade. No estado de natureza ninguém, por consentimento comum, é senhor de algo, nada no interior da natureza pertence a este ou aquele indivíduo. Todas as coisas são de todos, é impossível conceber alí a vontade de dar a cada um o seu, ou arrancar de outro a sua propriedade. Não existe justo ou injusto no estado de natureza, e só o consentimento comum determina no estado de sociedade o que pertence a cada um. Por aí se nota claramente que o justo e o injusto, o pecado e o mérito, são noções extrínsecas, não atributos que exprimem a natureza da mente”. (Ética, livro IV, proposição 37, escólio 2).

A modestia afetada, não serve à ordem do Estado modelar, mas apenas é usada para atender a ambição “desejo pelo qual os homens, sob uma falsa aparência de piedade incitam, na maioria das vezes, discórdias e sedições. Pois quem deseja ajudar os outros, por palavras ou atos, para que, juntos, desfrutem do supremo bem, buscará sobretudo, ganhar-lhes o amor, e não, em vez disso, provocar-lhes a admiração, a fim de que uma doutrina leve a marca de seu próprio nome, nem lhes dará, em geral, qualquer motivo de inveja. Além disso, evitará, nas conversas, mencionar os vícios humanos e cuidará para não falar senão reservadamente sobre a impotência humana. Em troca, falará longamente sobre a virtude ou a potência humana e sobre o meio pela qual ela pode ser aperfeiçoada, a fim de que os homens se esforcem, assim, o quanto o puderem, por viver segundo os preceitos da razão, movidos não pelo medo ou pela aversão, mas apenas pelo afeto da alegria”. (44)

A modéstia na fala é marca da prudência racional, o que define a liberdade de expressão na sociedade livre. Alí não se parola, mas também não se esconde o próprio sentimento e pensamento. Na sociedade modelada pela razão não existe oportunidade para a tagarelice, mas também não se tomba no mutismo imposto pelos supostos poderosos. Na sociedade democrática a censura não pode existir.
Tal é a lição do capítulo 20 do Tratado Teológico-Político. Se fosse fácil, diz Spinoza, imperar sobre os ânimos e línguas, nenhum governante deixaria de mandar em segurança e nenhum império seria violento, pois todos se conformariam à compleição dos poderosos, julgando segundo seus decretos sobre o falso e o verdadeiro, bem ou mal, justo ou iníquo. O animo de um homem não pertence inteiramente a um outro, ninguém vive segundo o direito alheio (alterius jus), ninguém transfere a um outro o seu direito natural (jus naturale), nem ser constrangido a abandonar o direito de usar sua razão. O violento que pretende dominar as almas parece agir injustamente contra os governados, usurpando seu direito, quando quer prescrever a todos o que deve ser acreditado verdadeiro ou rejeitar como falso, e quais opiniões devem mover sua alma na devoção para com Deus. Existem pessoas tão dominadas por outras, que podemos dizer serem elas suas propriedades. Se elas forem a maioria no Estado, não teremos uma sociedade livre e democrática. Naquela sociedade, o soberano só pode reinar colocando o Estado em perigo. Se um governo violento decreta a censura das palavras, na intenção de manter os homens dele dependentes, “os homens não deixariam de ter opiniões em desacordo com sua linguagem e a boa fé, esta primeira necessidade do Estado, se corromperia. O encorajamento dado à detestável adulação e perfídia conduziria ao reino da astúcia e à corrupção de todas as relaçõs sociais”.(45) O Estado modelar não vive sob o reino da fraude, da astúcia dos governantes contra os governados, da hipocrisia de todos. Ou seja, o Estado modelar se afasta muito do projeto absolutista que se encerra na raison d´État. 

Para nos assegurar sobre tal ponto, voltemos agora aos livre pensadores, em especial os ligados ao maquiavelismo (o que, nem é preciso dizer, recorda não tanto Maquiavel, mas sua apropriação no século 17 francês, no período áureo da raison d´État) (46) Antes revisitemos o texto do Tratado Político no qual Spinoza se refere elogiosamente a Maquiavel e ao problema da dissolução de um regime político (no caso, o aristocrático, cf. TP, X, §1). Existe uma causa interior que pode conduzir à dissolução ou mudança daquele regime ? A primeira causa de uma dissolução, é apontada pelo “acutissimus Florentinus” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio, III, cap. I) : no Estado, como no corpo humano, existem certos elementos que se acrescentam aos demais e cuja presença requer de vez em quando um tratamento médico. É preciso, diz Maquiavel, que por vezes uma intervenção conduza o Estado aos princípios sobre os quais ele se fundou. Sem tal intervenção, o mal aumenta ao ponto de não poder mais ser suprimido, a não ser que seja supresso o próprio Estado. Tal intervenção pode ser aleatória ou dever-se a uma legislação prudente, ou graças à sabedoria de um homem cuja virtude é excepcional. A seguir, Spinoza cita as considerações maquiavélicas sobre o remédio usado na república romana : todos os cinco anos um ditador supremo era instituído por um mes ou dois, ditador que tinha o direito de abrir uma busca sobre os atos dos senadores e de todos funcionários, julgando-os e tomando decisões para reconduzir o Estado ao seu princípio. Logo após ter dito que os Estados, cada um, precisam de remédios específicos, Spinoza indica que o poder do ditador sendo absoluto, ele pode não ser temido por todos e, pelo contrário, por amor da glória, alguns desejam tal cargo de modo extremado. O abuso do poder ditatorial seria (aduz Spinoza) o motivo pelo qual os romanos só nomeavam ditadores quando uma necessidade fortuita os obrigava. Mesmo assim, o boato de que se anunciava uma ditadura, segundo Cicero, era desagradável aos bons cidadãos. E tinham razão, porque o poder de um ditador sendo absoluto, como o de um rei, não sem grande perigo para a república ele poderia se transformar em monarca, mesmo que temporariamente.
O remédio heróico da ditadura não é tão eficaz para uma república, visto que ele pode, por excesso, conduzir a mesma república ao seu oposto, a monarquia. Remédios “heróicos” não faltavam no receituário dos maquiavelistas franceses do século 17. (47) Olhemos a sua bula envenenada. Comecemos com a dissimulação hipócrita entendida como prudência. Na mente dos que seguiam os passos de Maquiavel, a prudência consiste em vencer os inimigos pela astúcia e fazer com que o povo obedeça por meio de mitos religiosos. Assim, a usurpação do poder passa por fruto da vontade divina. (48)

Vimos que no Estado modelar, indicado por Spinoza, as paixões seriam gradativamente administradas, de acordo com a marcha do saber e da razão. Como todos são integrados na substância divina, também os assuntos políticos teriam a presença de todos, o que significa que, na democracia (o mais natural de todos os regimes, insistamos), os assuntos do poder seriam divulgados e debatidos. Daí, a exigência da plena liberdade de expressão segundo o filósofo. Terminamos mostrando que, para ele, a ditadura seria um remédio incerto e perigoso, porque fácilmente ele conduziria ao regime oposto ao democrático e republicano.

Em Spinoza a astúcia fraudulenta não é proibída ao cidadão e permitida em proveito do soberano, sem precauções estratégicas. Assim, diz ele ainda no capítulo 16 do Tratado Teológico-Político que “ninguém prometerá, a não ser por astúcia (dolo) abandonar algo do direito que tem sobre todas as coisas”. A nota acrescida pelo próprio filósofo esclarece ainda mais: “No estado de natureza em que o direito comum decide o bem e o mal, se distingue uma boa astúcia de outra ruim. Mas no estado de natureza em que cada um é seu próprio juiz e tem direito soberano de prescrever a si mesmo leis e interpretá-las, e mesmo de as abolir se julgar preferível, não se pode conceber que alguém opere com astúcia ruim” (Nota marginal 32, de Spinoza). O jogo spinozano gera suas regras na flutuação da alma, entre o medo e a esperança. Das probabilidades trazidas por uma ou outra paixão, no relativo ao objeto desejado, o jogador sempre escolherá o que lhe parece mais vantajoso. Trata-se, como é previsível, do jogo operado pela imaginação, dado que o saber efetivo não joga nem é incerto. 

Deve-se afastar a fraude? Com certeza, mas é preciso analisar prudentemente o jogador que enfrentamos. Spinoza dá um exemplo extremo, o do ladrão que me põe a faca no pescoço. Posso lhe prometer o que ele desejar, mas por direito natural posso concluir com ele um pacto doloso em meu benefício. Mesmo em caso de ausência de fraude (absque fraude diz o latim) prometo a alguém me abster por 20 dias de comida e vejo que a promessa é insensata e perigosa para mim. De dois males, escolho o menor, falho ao pacto.Assim, nenhum pacto tem força se não for útil (ou considerado útil em minha imaginação). Tirada a utilidade, ele cessa. É louco quem pede a um outro para que empenhe sua fé pela eternidade se não se esforça ao mesmo tempo de tornar a ruptura do pacto mais danosa ao faltoso do que o seu cumprimento. É diretamente a Maquiavel que o Tratado Político se refere. O trecho mais célebre, muito conhecido por Spinoza, é onde o escritor florentino afirma ser “necessário a um príncipe, se deseja se conservar, aprender a não poder ser bom, e usar dele segundo a necessidade (secondo la necessita)”. (Principe, capítulo 15). E mais : “Estando o principe necessitado de usar a besta, deve escolher dentre elas a raposa e o leão, porque o leão não se defende dos laços e a raposa não se defende dos lobos. Necessita, pois, o principe, ser raposa para conhecer os laços e leão para espantar os lobos. Os que se apoiam apenas no leão não entendem (a arte de governar).” Isto basta, imagino, para mostrar a familiaridade entre o início do Tratado Político e o Príncipe. A indicação dos laços e armadilhas têm exatamente o mesmo sentido em Maquiavel e Spinoza. Mas sigamos : “Não pode, nem deve, portanto, um senhor prudente observar a fé jurada quando tal observância se torna contrária e passou a ocasião que obrigou a fazer a promessa. Se os homens fossem bons, este preceito não o seria; mas como eles são perversos e não guardaram sua fé jurada contigo, não tens porque guardá-la em relação a eles. Nunca faltam a um principe ocasiões legítimas de coonestar a inobservância”. E finalmente: “para manter o Estado o principe, sobretudo se for novo, precisará operar contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. E se necessita que tenha um animo disposto a tornar-se segundo mandem os ventos e mudanças da fortuna e, não separar-se do bem se puder faze-lo, mas saber entrar no mal se é necessário”. A diferença, aqui, entre o enunciado de Spinoza e o de Maquiavel é que para o primeiro o político “parece”, sobretudo aos teólogos, ser contra a religião. No segundo, ele deve ser contra os mandamentos religiosos e sua escala de valores.

Esse mesmo ponto ressoa nos Discursos sobre a primeira decada de Tito Livio: “quando se delibera acerca da saúde da pátria, não se deve deixar que prevaleçam considerações de justiça ou injustiça, piedade ou crueldade, honra ou ignominia mas, deixando de lado qualquer consideração outra, seguir por inteiro o partido que salve a vida e conserve a liberdade”. A corrupção dos homens é constante e universal, mesmo nos educados para o bem. Há uma persistência das paixões : “em todas as cidades e em todos os povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, de tal modo que é fácil para quem examina com diligência as coisas passadas, prever em toda república o futuro e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não encontre nenhum empregado por eles, imaginar outros novos segu ndo o parecido dos acontecimentos”. (Discorsi, livro I). O povo adere às práticas e valores antigos. Para mudar hábitos sólidos é preciso dissimular, fingir que a essência permanece quando medidas para a sua mudança são implementadas pelos governantes. Se o principe fosse contra os hábitos populares, dificilmente ele se manteria. Mas se pouco a pouco muda as formas e as instituições, consegue mudar a ética do povo. Assim, diz Maquiavel: “quem deseja reformar o estado de uma cidade e ser aceito, manter a satisfação de todo mundo, necessita conservar pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal modo que pareça ao povo que não houve mudança nas ordens, embora na realidade as novas sejam inteiramente distintas das velhas. Porque a grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são”. (Discorsi , livro I).(49)

As teses do século 17 sobre a razão de Estado seguem a trilha que vai do jogo duplo entre ética pública e ética dos governantes (a primeira, supostamente regida pelos ditames do Bem Comum, a segunda determinada pelos ditados da conservação, pelo governante, do poder a qualquer preço) para a forma ditatorial mais direta, com a teoria dos golpes de Estado por Gabriel Naudé. Todos os elementos recusados por Spinoza na sua exposição do Estado, como a fraude, a hipocrisia, a dissimulação, a soberba e o arrivismo político, são assumidos por Naudé em sua obra escrita.

Já no livro Bibliografia Política (1633), (50) redigido em latim por solicitação de Gafarel, conselheiro do embaixador francês em Veneza, ele recomenda aos atores do Estado a transgressão das normas éticas. Alí, ele distingue entre uma “prudência comum, ordinária” e a “administração extraordinária” do poder. A primeira define a obediência às leis comuns do Estado, quando nenhum problema mais grave deve ser resolvido. Como não existe política sem problemas graves, o governante deve utilizar meios habitualmente condenados pela ética pública. As duas formas se complementam e se sucedem alternadamente segundo a necessidade. Quando a extraordinária for escondida, ela o será justamente pela ação comum do governante. Justiça e injustiça, longe de estarem separadas, se unem, de modo tal que a própria justiça serve à injustiça, pois é preciso cobrir com aparência de retidão os piores crimes, tendo em vista a governabilidade. O trecho abaixo é eloquente em demasia: “Omnis Regnorum ac statuum administratio politica, quam ordinariam merito dicere possumus, quamdiu ipsa vel aequitatem praesefert, vel aequitatis ac Iustitie speciem faltem aliquam praetendit, quo facilius Lauernae instar Horatianae noctem peccatis, ac fraudibus nubem obijciat, trias ibi proponit, ad quae caetera oia eius placita & statura tanquam ex destinatio colineent, nempe statum nascentem exorientemque firmare, stabilitum conservare, & labentem sustinere ac reficere”. (51)
Não existe portanto, para Naudé, nenhuma ruptura entre as duas éticas, visto que a ordinária (legal e justa) também engana, pois dissimula a escuridão noturna do soberano, sob a capa da legitimidade. A legalidade serve aos fins secretos. (52)

Naudé sublinha o fato de que nos dez livros platônicos e nos livros de Aristóteles, Teofrasto, Cicero e Macróbio não se disputa sobre a república, mas sobre a justiça, e alí se busca ao mesmo tempo o bem público e privado. Daí, ele menciona a pletora de autores gregos e latinos que trataram da política e da economia, no plano ético. Ele segue até Luis Le Roy, comentador de Platão no século XVI e mesmo mais perto de seu tempo. Após o exame amplo, vem o juízo sobre os tratados filosóficos. Eles, em grande parte, trataram da política e da ética com muita boa fé e integridade, mas suas instruções seriam mais convenientes à República platônica e menos à república na qual “vivemos neste século”.

Nas Considerações políticas sobre os golpes de Estado, o esquema permanece o mesmo, embora ampliado e abarcando efetividades mais sutís. Alí, Naudé demonstra que a prudência política transgride não apenas a ética, mas também o direito, a natureza e a religião, constituindo como diz Gouverneur uma “anomia violenta”, base do poder estatal. O núcleo do livro encontra-se na técnica da dissimulação. As anteriores formas teóricas da raison d´État listavam transgressões várias, todas elas conhecidas dos eruditos e da mediania cidadã. Tais listas nada explicam no funcionamento real do Estado, nem fornecem uma chave instrumental para a sua eficácia. Com a tese dos golpes de Estado, Naudé imagina descrever os atos verdadeiramente secretos do governante que se instaura no mando, do governo que precisa ser reforçado, ou da instituição estatal que precisa ser sustentada no instante da queda.

Notemos que Naudé não vai além, nesse passo, de Spinoza e de sua leitura maquiavélica. Trata-se de instaurar um poder mantendo sua saúde, garanti-lo e dar-lhe sobrevida quando está para ruir. Enquanto Spinoza aponta a ditadura como remédio ineficaz, Naudé evidencia que algo semelhante a ela é o único remédio para o mando realista. Assegurando a ditadura do monarca, ministro ou seja lá de quem for, o golpe de Estado garante o funcionamento do Estado por vias certas e tortas (e não a alternativa, vias certa ou tortas). O golpe explica, assim, como a dissimulação reside na essência do poder estatal, não sendo apenas um recurso rapsódico usado por este ou daquele dirigente. O golpe supõe um gênio inventivo no que o aplica, sendo ele imprevisível para quem o sofre. No golpe unem-se o segredo e a política prudencial. O golpe é a obra prima da dissimulação, a mola verdadeira da efetiva razão de Estado. O livro em epigrafe rememora os atos principescos pretéritos, estudo a sua prudência. Naudé usa, para tais fins, os escritos de Justo Lipsio (53). Este, no livro VI de sua obra, indica a ruina dos Estados, a sua corrupção e possível morte. Em primeiro lugar, afirma ele, “a história atesta que Deus se apraz em arruinar os Estados, por via do destino”. Lipsius acredita, na sequência do pensamento antigo, que ocorre com os Estados o mesmo fato da vida corporal: nascem, crescem, envelhecem, morrem. Bodin disse o mesmo : “Não existiu e não existirá república tão excelente em beleza, que não envelheça como sujeita à torrente de natureza fluida, que rapta todas as coisas” (Seis livros da República, prefácio). E Montaigne: “les royaumes, les républiques naissent, fleurissent e fanissent de veielesse comme nous” (Essais, II, 23).

O grande perigo, segundo Lipsius, encontra-se na guerra e nas sedições que abalam as sociedades. Em carta aos Estados de Brabant ele diz não ver em toda parte “nada além de trevas e confusões dos tempos, tempestades sobre o mar, guerra na terra pela religião ou pela autoridade; lutas contra os verdadeiros inimigos de fora e contra os próprios cidadãos; tudo está em desordem e tudo é tão desesperado que a sabedoria consiste em permanecer neutro”. (54) Neutro, sim, mas contra a tirania. Lipsius é dos que aprovam o regicídio : “Desembaraçar a sociedade de uma besta fera, é ato de elevada coragem” (Livro VI, 5). Não pertence a um cidadão privado, no entanto, decidir sobre tais questões. Assim, a questão da guerra civil inspira os teóricos que seguiram os passos de Lipsius, entre eles, um herdeiro bastardo, digamos, é Naudé. Segundo ele, Lipsius define a prudência como “uma escolha das coisas das quais se deve fugir ou desejar, e após ter discorrido amplamente como se faz de ordinário nas Escolas, ou seja, por uma virtude moral, que só tem como objeto de consideração o bem; ele a seguir fala de uma outra prudência, a misturada, porque não é tão pura, sã e integra quanto a precedente; participando um pouco das fraudes e estratagemas exercidos ordinariamente nas cortes principescas, e no manejo dos negócios governamentais: ele também se esforça por mostrar, com sua eloquência, que tal prudencia deve ser tida como honesta, e pode ser praticada como legítima e permitida”. (55)

Naudé interpreta Lipsius de maneira a favorecer a tese da imoralidade de todo poder, o que não corresponde ao todo do pensamento elaborado nas Políticas. A técnica de Naudé reside na paráfrase dos escritos lipsianos. Como ocorre, ao escrever Naudé algo aproximado ao capítulo 14 das Políticas, quando é feita uma tripartição da prudência: “a primeira das quais”, diz Naudé, “que podemos chamar uma fraude ou engodo leve, muito pequeno e de nenhuma consideração, compreende sob si a desconfiança e a dissimulação; a segunda que retem ainda algo da virtude, menos entretanto que a precedente, tem como partes a conciliação e a decepção, isto é, o meio de adquirir amizade e serviço uns dos outros, e de engambelar, decepcionar, enganar os outros por falsas promessas, mentiras, presentes e outros truques e meios, se é possível assim falar, de contrabando e ainda mais necessárias do que permitidas ou honestas. Quanto à última, ele diz que ela se afasta totalmente da virtude e das leis, mergulhando bem antes na malícia, e que as duas bases e fundamentos mais seguros são a perfídia e a injustiça”. Naudé “esquece” as últimas palavras de Lipsius, após ter ele feito a tripartição: Aconselho a primeira, suporto a segunda, mas condeno a terceira. (56)

Mas não é possível ignorar que a trilha seguida por Naudé já se encontra, em menor amplitude, em Lipsius. Na política, além da virtude primeira, diz ele, não seria preciso acrescentar “alguma sujeira, fraudes, enganos? Eu acho, embora aqueles Zenões e austeros não considerem bom…Eu acredito, pelo contrário, de muito bom grado. Mas eles parecem ignorar este século, como se estivessem na república de Platão e não na canalha de Romulo (…) Com quem vivemos nós? A saber, com pessoas finórias, maliciosas, e que parecem constituir a própria enganação, falácia e mentira (…) não quereis que de vez em quando o principe se acompanhado pela raposa ? Certamente, precisareis de tal coisa”. A virtude correta deve ser misturada na copa de quem deve governar. O príncipe deve tomar desvios “no mar tempestuoso dos assuntos humanos (…) o vinho não deixa de ser vinho, ainda que bem temperado com agua, nem a prudência, embora nela exista alguma gotinha de engodo, pois em dose pequena, ela é boa para o seu fim”. Se o médico engana as crianças, porque o governante não enganaria o povinho, e os principes estrangeiros? (57)

Naudé radicaliza Lipsius. Segundo ele a própria graduação das fraudes é absurda, porque nunca foi respeitada pelos políticos. (58) Logo, não seria possível distinguir entre uma “boa” e “má” razão de Estado. “Como todo Estado se constituindo e se mantendo pela violência mortífera, é inadequado abordar questões políticas em termos de limites morais totalmente inefetivos. A coerência da análise política exige que se recuse estabelecer graus na imoralidade, sempre discutíveis e jamais realistas”. (59) É por tal via que Naudé rompe com a tradição da “prudência civil” ainda ilustrada por Lipsius. As três formas de prudência, Naudé as troca por duas: a ordinária e a extraordinária. A primeira “é fácil, caminha segundo o traçado comum sem exceder as leis e costumes do país; a segunda extraordinária, mais rigorosa, severa e difícil. A primeira compreende todas as partes da prudência das quais os filósofos se acostumaram a falar em seus tratados de moral, e a outra (…) que Lipsius atribui apenas à prudência misturada e fraudulenta”. Tal bipartição vem de Charron. (60)

O juízo de Naudé sobre Maquiavel ilustra a sua concepção da fraude e do segredo político: “não devemos agradecer a ele por ter dado o passo, quebrado o espelho e profanado, se assim podemos falar, com seus escritos, o que os mais judiciosos utilizavam como meios muito escondidos e poderosos para melhor efetivar seus empreendimentos”. (61) Nas Considerações ele dá a entender o que significa “quebrar o espelho” e “profanar o segredo”, quando elogia o golpe (no seu entender) da Noite de São Bartolomeu: “No meu entender, mesmo que agora a São Bartolomeu seja condenada pelos protestantes e católicos, não temerei entretanto dizer que ela foi uma ação muito justa e muito notável, e cuja causa era mais do que legítima (…) é uma grande covardia, me parece, de tantos historiadores franceses ter abandonado a causa do rei Carlos IX”. A única crítica de Naudé à São Bartolomeu é ter ela sido pouco radical: “Seria possível louvar esta ação, como o único recurso nas guerras que existiram desde aquele tempo e que virão talvez até o fim da monarquia, se não tivesse faltado nela o axioma de Cardano: Nunquam tentabis, ut non perficias. Seria preciso imitar os cirurgiões hábeis, enquanto a veia é aberta eles tiram o sangue até o desfalecimento. Não é bom apenas partir, se não se está apto a ir até o fim do caminho: o prêmio está no fim da liça, e o fim sempre regula o começo”. (62) Porque, então, a São Bartolomeu foi tanto criticada? Responde Naudé : “por ter sido feito ela apenas pela metade; se todos os heréticos fossem atingidos, nenhum deles sobreviveria, pelo menos na França, para condená-la, e os católicos também não teriam motivos para fazer o mesmo, pois veriam o grande repouso e o grande bem que ela lhes teria feito”. Qual o erro do realismo exibido por Naudé? Ele mesmo o reconhece: todas as cidades que praticaram o massacre da São Bartolomeu, foram as primeiras a começar a Liga. Como diria Spinoza da ditadura, ela traz segurança inicial mas logo se transforma em tirania. No caso de Naudé a gravidade é maior: a balança das forças religiosas se tornou ainda mais desequilibrada, ou melhor, se quebrou com a Liga, um dos maiores desafios ao poder real da França, encetada pelos católicos. (63)

Na Bibliografia Política, segundo Etienne Thuau (64) Naudé considera a inteligência a máxima virtude no setor :”para os mais finórios e astutos, como devem ser os chamados ao governos dos Estados”.É preciso nos deter, aqui, num conceito estratégico para a política, as artes e a literatura do Renascimento e no século 17 : o de ingenium, esprit, wit. Quando Naudé valoriza a inteligência no governante e nos seus conselheiros, ele capta todo um universo de significados presos à força de vigiar e decidir, nos limites do que hoje chamamos epistemologia e doutrina ética. O ingenium, conforme um correto e preciso comentário atual (65), indica de início as qualidades naturais de algo, depois se aplica aos entes humanos, ao seu temperamento. O Calepinus, dicionário de latim usado até o começo do século XVIII, aproxima o termo do grego phusis e do latim natura. A citação de Cicero é obrigatória: “Naturam primum atque ingenium” (66). O termo também designa os indivíduos inteligentes, brilhantes. O ingenium responde pelas invenções, dada a sua força imaginativa. “Percebemos”, diz Laurie Brun, “o quanto a noção é rica” porque indica “uma faculdade inata, imediata e ao mesmo tempo necessitada de uma intervenção de uma instancia reguladora, o entendimento. Ela envia, de outra parte à invenção, mas em campos tão diversos quanto o da especulação intelectual, a inovação tecnológica, a criação artística ou a simples astúcia”. O ingenium exige a elaboração de uma ars que o controle, permita que ele não tombe na extravagância, dando-lhe limites e discreção, retirando-o do exibicionismo e da infertilidade. Também no relacionamento social e político, a ars, o método, proporciona uma disciplina que conduz à finalidade, ao tato e ao decoro. O ingenium (wit, esprit, ingenio) brota do indivíduo inteligente, mas o intelecto metódico torna o pensamento e as ações férteis. Temos aí a base do grande apreço do século 17 pelo método, em filosofias tão opostas como a de Bacon e a cartesiana. O método é o instrumento, organon que disciplina o ingenium de modo a torná-lo capaz de produzir ciência, política, arte. 

Sem a força do engenho nenhuma obra nova poderia ser inventada no mundo das artes, da política, da sociedade. No erudito Naudé, portanto, fica bem clara a sua tese sobre os dirigentes políticos. Estes devem ser capazes de discriminação inventiva, de tal modo que saibam ajuizar as situações extrema ocultas na ordem política aparentemente sólida. A erudição deve ir além dos parâmetros tradicionais das escolas. O autor se reúne aos demais do seu tempo e pensa ser preciso cuidar muito para que o ingenium não se torne, em vez de força propulsora, em simples desgaste de inteligência política. Francis Bacon, outro pensador ligado à modernidade estatal, também mostra aversão ao intelecto que não se dirige às coisas e se compraz no universo especulativo e de autores consagrados. A corrupção ronda a ordem estatal e a do pensamento, é preciso que o ingenium se dedique à produção do que renova de fato as duas ordens, a do pensamento e seu correlato, o campo da ação em tempo certo. “Seguramente”, diz Bacon, “como em muitas substâncias da natureza nas quais o que é sólida se putrefaz, sendo corrompido pelos vermes, assim também o bom e claro saber se putrefaz e dissolve em inúmeras questões sutís, vazias, incompletas, em como as nomeio, vermiculadas, que tem, de fato, uma espécie de rapidez e vida espiritual, mas não sólidas em matéria, ou boa qualidade. Este tipo de saber degenerado reina entre os escolásticos, intelectos cortantes e fortes (sharp and strong wits), além de lazer abundante, e pequena variedade na leitura. Seus intelectos (wits) sendo presos nas celas de poucos autores (sobretudo de Aristóteles, seu ditador) como suas pessoas são presas nas celas monásticas e faculdades, e sabendo apenas um pouco de história, tanto da natureza quanto do tempo, não possuem grande quantidade de matéria mas infinita agitação do seu eixo intelectual (wit spin) tecem aquelas laboriosas teias de saber, que repousam em suas estantes, nos livros. Porque o intelecto (wit) e mente (mind) do homem, se trabalham com matéria, a qual é a contemplação das criaturas de Deus, trabalham segundo as coisas e são por elas limitadas. Mas quando trabalham com palavras, não saindo de si mesmas, como a aranha tece sua teia, então o labor é infindável, e traz outras teias de aranha do saber, admiráveis pela sua finura, mas desprovidas de substância e lucro”. (67) As figuras do trecho são todas políticas e carregadas de repressão. Os intelectos puramente especulativos são presos em celas, num Estado do saber onde o ditador é Aristóteles. Eles ignoram o mundo histórico e natural. O programa de Francis Bacon, pensador e estadista, é romper com o alheiamento dos intelectuais acostumados aos poucos autores e aos poucos experimentos. Seu modo de pensar não se afasta em demasia dos maquiavélicos franceses, entre outros de Gabriel Naudé. 

O auxiliar de Richelieu e depois de Mazarino, aprecia o pensamento de Aristóteles em política mas reconhece que a maior parte das fórmulas teóricas aristotélicas no setor vem de Platão. Basta recordar seu juízo sobre o Estagirita na Bibliografia Política (68). Maquiavel integra o Panteão de Naudé, embora sua presença nos textos seja muito discreta (ou dissimulada). O principal é o uso da religião para garantir o poder político. (69) Ele sempre que mostrou adepto do poder real contra os nobres e a populaça “que se abandona às muitas opiniões, como o mar é agitado por diversas borrascas e tempestades” (70)

A erudição e o brilho da inteligência, quando não controlados pelo método, conduzem à inanidade política e científica. (71) A Bibliografia Política de Naudé segue dos clássicos aos contemporâneos, mas decididamente com intento de abandonar a pura erudição, o pensamento especulativo. Seu alvo se apresenta no tema e nas técnicas eminentemente práticos da razão de Estado. Já nas Considerações Políticas Naudé retoma outros escritos seus como a Adição à História de Luis XI, onde elogia a ciência política, via real para a instauração do Estado. No elogio de Luis XI se manifesta a escolha da astúcia e da dissimulação como técnicas de governo. (72) Naudé considera o rei aranha uma espécie de “Arquimedes” da política.

Nas Considerações Políticas são postas as bases mais sólidas da teoria sobre a Razão de Estado. Alí, a prudência adquire seu peso máximo, sempre na linha aberta por Maquiavel e, como vimos, distorcendo os enunciados de Justus Lipsius. Existe a prudência ordinária, a usada pelos governantes em situações quotidianas e que não se voltam contra a moralidade cristã. Mas também se patenteia a extraordinária que permite decidir em situações excepcionais e parece oposta aos valores éticos por decidir politicamente em casos extremos, os quais exigem um golpe de Estado. (73) Para decidir com certeza é preciso dominar o segredo. A tese, antiga como a filosofia grega, encontra definição clara e distinta no pensador Clapmar em livro sobre o poder político. Cito Clapmar: “Arcana imperii sunt certae profundae intimae leges sive privilegia conservandi pristini status sivre Reipublicae. Sicut arcanãa Dominationis (Italis & Gallis est ragion di stato…) sunt certa et secreta privilegia conservandae dominationis, introducta boni publiei causa. Quibus opponit Tacitus flagitia dominationis (Italis cattiva ragione di stato) quibus fides & relligio violatur”. (74)

A prudência “correta” (Ragion di stato) não existe sem a “incorreta”, a cattiva ragione di stato, tal é a fórmula que pode ser extraída das Considerações Políticas. As situações excepcionais, como era o status quo antes da Noite de São Bartolomeu, justificam a decisão prudencial em favor do golpe de Estado. Para que um segredo seja mantido é preciso saber esconde-lo, daí o papel essencial da dissimulação. A figura de Luis XI surge no século 17 das cinzas em que fora posto anteriormente pelos críticos da razão de Estado, ele passa a ser considerado como o grande artífice da governança dissimulada. Machon une o monarca a Tibério, personagem principal de Tácito e do “tacitismo” na era moderna, que valoriza sobremodo a dissimulação política, um eixo da razão de Estado. Adrianna Bakos cita Machon em passagem estratégica: “Luis XI disse ao seu filho Carlos VIII que ele sabia latim o bastante, e que ele (Carlos) saberia o suficiente quando soubesse entender a seguinte máxima: não sabe reinar, quem não sabe dissimular. O imperador Tibério não amava tanto outras virtudes quanto a dissimulação, como a mais útil e necessária”. (75) 

É relevante notar que a imagem do “rei aranha” foi elogiada por escritores que defendiam o Estado católico galicano e por doutrinadores jurídicos huguenotes, sendo que Maquiavel teria sido um divisor de águas. Bakos cita uma dessas divergências com seus respectivos diagnósticos. Machon e Gentillet o elogiam, mas por motivos opostos : o segundo porque seu modo de governar não dependeria dos métodos maquiavélicos, o primeiro porque ele seria bom aluno de Maquiavel. (76)

Bibliografia citada. 
—-
1 Mind Wars. Brain Research and National Defense (New York, Dana Press, 2006).
2Autor importante: Norbert Wiener, cujo livro Cybernética e Sociedade está parcialmente na internet : http://www.ciren.org/artifice/artifices_4/Actes/wiener.html ; outro livro de Wiener (Cybernetics or control and communication in the animal and the machine) está disponível em parte no Google Books. Seguir principalmente o capítulo VIII do livro: “Information, Language, and Society”, pp. 155 e seguintes.
3 New Model Army Soldier Rolls Closer to Battle, The New York Times.
By TIM WEINER- Published: February 16, 2005. The American military is working on a new generation of soldiers, far different from the army it has.”They don’t get hungry,” said Gordon Johnson of the Joint Forces Command at the Pentagon. “They’re not afraid. They don’t forget their orders. They don’t care if the guy next to them has just been shot. Will they do a better job than humans? Yes.”The robot soldier is coming. The Pentagon predicts that robots will be a major fighting force in the American military in less than a decade, hunting and killing enemies in combat. Robots are a crucial part of the Army’s effort to rebuild itself as a 21st-century fighting force, and a $127 billion project called Future Combat Systems is the biggest military contract in American history. The military plans to invest tens of billions of dollars in automated armed forces. The costs of that transformation will help drive the Defense Department’s budget up almost 20 percent, from a requested $419.3 billion for next year to $502.3 billion in 2010, excluding the costs of war. The annual costs of buying new weapons is scheduled to rise 52 percent, from $78 billion to $118.6 billion.
Military planners say robot soldiers will think, see and react increasingly like humans. In the beginning, they will be remote-controlled, looking and acting like lethal toy trucks. As the technology develops, they may take many shapes. And as their intelligence grows, so will their autonomy. The robot soldier has been a dream at the Pentagon for 30 years. And some involved in the work say it may take at least 30 more years to realize in full. Well before then, they say, the military will have to answer tough questions if it intends to trust robots with the responsibility of distinguishing friend from foe, combatant from bystander. Even the strongest advocates of automatons say war will always be a human endeavor, with death and disaster. And supporters like Robert Finkelstein, president of Robotic Technology in Potomac, Md., are telling the Pentagon it could take until 2035 to develop a robot that looks, thinks and fights like a soldier. The Pentagon’s “goal is there,” he said, “but the path is not totally clear.” Robots in battle, as envisioned by their builders, may look and move like humans or hummingbirds, tractors or tanks, cockroaches or crickets. With the development of nanotechnology – the science of very small structures – they may become swarms of “smart dust.” The Pentagon intends for robots to haul munitions, gather intelligence, search buildings or blow them up. All these are in the works, but not yet in battle. Already, however, several hundred robots are digging up roadside bombs in Iraq, scouring caves in Afghanistan and serving as armed sentries at weapons depots. By April, an armed version of the bomb-disposal robot will be in Baghdad, capable of firing 1,000 rounds a minute. Though controlled by a soldier with a laptop, the robot will be the first thinking machine of its kind to take up a front-line infantry position, ready to kill enemies. “The real world is not Hollywood,” said Rodney A. Brooks, director of the Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory at M.I.T. and a co-founder of the iRobot Corporation. “Right now we have the first few robots that are actually useful to the military.” Despite the obstacles, Congress ordered in 2000 that a third of the ground vehicles and a third of deep-strike aircraft in the military must become robotic within a decade. If that mandate is to be met, the United States will spend many billions of dollars on military robots by 2010. As the first lethal robots head for Iraq, the role of the robot soldier as a killing machine has barely been debated. The history of warfare suggests that every new technological leap – the longbow, the tank, the atomic bomb – outraces the strategy and doctrine to control it. “The lawyers tell me there are no prohibitions against robots making life-or-death decisions,” said Mr. Johnson, who leads robotics efforts at the Joint Forces Command research center in Suffolk, Va. “I have been asked what happens if the robot destroys a school bus rather than a tank parked nearby. We will not entrust a robot with that decision until we are confident they can make it.” Trusting robots with potentially lethal decision-making may require a leap of faith in technology not everyone is ready to make. Bill Joy, a co-founder of Sun Microsystems, has worried aloud that 21st-century robotics and nanotechnology may become “so powerful that they can spawn whole new classes of accidents and abuses.”
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4 Le Silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité, Paris, Fayard, 1999.
5 Horst Bredekamp: Thomas Hobbes. Der Leviathan. Das Urbild des modernen Staates und seine Gegenbilder. 1651-2001. (Akademie Verlag, 2006).
6 Retiro tais notas do artigo “L´ automate spirituel leibnizien: une préfiguration de la complexité contemporaine” de Jean-Jacques Wunenburger, publicado na Revista Metabasis (www.METABASIS.IT), março de 2007, Ano II, número 3.
7 Tomasi di Lampedusa, Il Gattopardo (Milano, Feltrinelli, 2005, manuscrito de 1957), página 50.
8 Paris, Allia, 1993.
9 Cf. Laura Toppan : “Leopardi et Montale: deux cris dans le désert” in Gerard Brey e Marita Gilli (diretores) Sceptiques et Détracteurs Face à la Cité Idéale (XVIIIe -XXe siècles), Franche Comté, Presses Universitaires de Franche-Comté, 2009, páginas 161 e seguintes.
10 Cf. Victor Davis Hanson, The Western Way of War, infantry battle in classical Greece. Uso a edição francêsa : Le modele occidental de la guerre. Paris, Les Belles Lettres, 1990, pp. 160 e ss.
11 Cf. Douglas L. Cairns: Aidós: the psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature (Oxford, Clarendon Press, 1993, pp. 320 e ss.
12 Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude volontaire. Paris, Payot, 1976. Há uma edição em português, publicada pela Ed. Brasiliense.
13 Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por Paul Bonnefon. In Revue d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. Paris. Librairie Armand Colin, 1917.
14 La Boétie, Etienne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
15 Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni, op. cit. p. 141.
16 Michel l ´Hospital (1505-1573), Chanceler da França.
17 Para a documentação dessa passagem, cf. François Hotman, La vie de Messire Gaspar de Colligny, Admiral de France. Ed. Fac. símile aos cuidados de Emile-V. Telle (Genève, Droz, 1987). O texto original foi redigido, compreensivelmente, em latim.
18 Citado por Telle, Vie de Messire…”, Ed. cit. “Introduction”, página 35.
19 Em Shakespeare, o tema é onipresente nas peças políticas. O erro fatal de Lear foi a divisão territorial de seu Estado pelas filhas que o adularam e seguiram a sua ordem tirânica. Ele usou de maneira estulta a lei da razão de Estado que ordena Divide et impera. O soberano que perde seu espaço, tudo perde e nada garante aos súditos, salvo guerras civís. O núcleo da peça surge nos primeiros instantes. “Lear. Meantime we shall express our darker purpose./Give me the map there.Know that we have divided/In three our kingdom: and ’tis our fast intent/To shake all cares and business from our age;/Conferring them on younger strengths, while we/Unburden’d crawl toward death./Our son of Cornwall,/And you, our no less loving son of Albany,/We have this hour a constant will to publish/Our daughters’ several dowers, that future strife/May be prevented now. The princes, France and Burgundy,/Great rivals in our youngest daughter’s love,/Long in our court have made their amorous sojourn,/And here are to be answer’d./Tell me, my daughters,/Since now we will divest us both of rule,/Interest of territory, cares of state,/Which of you shall we say doth love us most?/That we our largest bounty may extend/Where nature doth with merit challenge”. A peça liga-se à adulação, na linha do escrito de Plutarco Como distinguir o amigo do adulador do qual existe tradução em português (São Paulo, Scrinium Ed., 1997). Analiso tal problema com detalhes no meu livro Silêncio e Ruído. A sátira e Denis Diderot (Campinas, Unicamp Ed., 1997).
20 Carta de Albert Burgh a Spinoza, 11 de setembro de 1675.
21 “Mas porque, sobre a qualidade mencionada acima eu falei o mais relevante, desejo falar brevemente sob tal generalidade, que o principe pense, como disse acima em parte, fugir as coisas que o tornem odioso e desprezado; e sempre que alguém fuja disto, terá feito a sua parte, e não encontrará nas outras infamias nenhum perigo. Ele se torna odioso, como se diz, sobretudo se for voraz e usurpar as coisas e as mulheres dos súditos: ele deve se abster daquilo. E todo aquele que volta à universalidade dos homens não tolhe nem rouba honras ou coisas, vivem contentes, e só precisam combater a ambição de poucos, a qual, em muitos modos, e com facilidade, pode ser refreada. Se ele faz o contrário, é tido por vário, leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto. E tal coisa um principe deve evitar como de um obstáculo, e deve cuidar para que sua ação sugira grandeza, animosidade, gravidade, fortaleza, e faça entender aos súditos que sua sentença é irrevogável; e se mantenha os súditos em tal opinião, e que ninguém pense enganá-lo ou envolve-lo com intrigas”
(…)
22 “A melhor fortaleza é não ser odiado pelo povo; porque mesmo que habites a fortaleza, se o povo te odeia, não podes salvar-te; porque nunca faltam ao povo armas estrangeiras que o socorram”.
23 “Dos principes que nada tem a não ser o que usurparam, os mais fortes dão a lei aos mais fracos e tomam o que lhes faz bem; os soberanos acreditam ser justo o que lhes é util, e os Estados não têm outros limites que sua própria conservação, mas em prejuízo de seus vizinhos”. Louis de Machon. Apologie pour Machiavelle en faveur des princes et les ministres d´estat (1643). Bibliothèque Nationale de Paris, Mss. Fr. 19046, 19047, cit. por Bakos, op. cit. p. 128; Cf. também Jean Pelissier : Morale Internationale, ses origines, ses progrès (Monaco, Institut International de la Paix, 1912, página 83, nota 1.
24 Editado nos últimos tempos por Christian Lazzeri, nas Presses Universitaires de France, PUF, 1995.
25 “Sein Buch vom Fürsten insbesondere sollte ein Not- und Hilfsbuch sein für jeden Fürsten in jeder Lage, in der sich einer befinden könnte, und er legt, besonders von der Beschaffenheit seines Vaterlandes und seines Zeitalters geleitet, den Plan umfassend genug an. Die eigene Herzensangelegenheit, welche bei der Abfassung desselben ihn leitete, war der Wunsch, einige Festigkeit und Dauer in das in unaufhörlichem Schwanken sich befindende Staatenverhältnis von Italien zu bringen. Als die erste Pflicht des Fürsten steht demnach da die Selbsterhaltung; als die höchste und einzige Tugend desselben, die Konsequenz. Er sagt nicht: sei ein Usurpator, oder, bemächtige dich durch Bubenstücke des Regiments; vielmehr empfiehlt er in Absicht des Ersteren, dass man vorher wohl bedenke, ob man es auch werde durchführen können, und von dem Letzten spricht er nie empfehlend. Wohl aber sagt er: bist du denn nun einmal ein Usurpator, oder bist du nun einmal durch Bubenstücke zum Regiment gekommen, so ist es doch immer besser, dass wir dich, den wir nun einmal haben, behalten, als dass ein neuer über dich kommender Usurpator oder Bube, neue Unruhen oder Bubenstücke anrichte; man muss daher wünschen, dass du dich behauptest, aber du kannst dich nur auf die und die Weise behaupten. Es wird auch in Beziehung auf diese Beratung Jeder ihm die Gerechtigkeit widerfahren lassen müssen, dass er immer noch die sanftesten Mittel, und diejenigen, bei denen das gemeine Wesen noch am Besten bestehen kann, in Vorschlag bringt. In diesem Zusammenhange wird man hoffentlich weniger zurückschrecken, wenn man hört, dass Macchiavelli z.B. den Cesar Borgia als Muster aufstellt. Wegen seiner Grausamkeit hatte er ihn schon aus der Reihe der Vortrefflichsten ausgestrichen; worin er ihn aber als Muster empfiehlt, dass er in einer völlig verwilderten Provinz in kurzer Zeit Ruhe, Ordnung und öffentliche Sicherheit eingeführt, dass er sich der Untertanen angenommen u.s.w., das ist in der Trat lobenswürdig, um so mehr, da es höchst selten war in jenem Zeitalter”. “Intellektueller und moralischer Charakter des Schriftstellers Machiavelli” in Über Machiavelli als Schriftsteller (1807). Cf. a tradução de Luc Ferry e Alain Renaut : Machiavel et autres écrits philosophiques et politiques de 1806-1807 (Paris, Payot, 1981), página 42.
26 A maioria das informações acima é extraída do clássico publicado por Ernst Kantorowicks, The King´s two Bodies ( New Jersey/Princeton, Princeton University Press).
27 Cf. para todo o tema, Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae” in Lazzeri, Christian e Dominque Reynié, Le pouvoir de la raison d´État (Paris, PUF, 1992), página 135 e seguintes.
28 “Passions de l´âme, III, article CLXXXII” in Les Passions de l´âme. Le monde ou Traité de la lumiere, par René Descartes, nouvelle edition. (Paris, Charles Le Clerc Ed. MDCCXXIII, páginas 206-207.
29 Descartes, Article CXCV, op.cit. ed. cit. páginas 217-218.
30 Ética, livro III, Proposição 24, escólio.
31 Descartes, Blackwell Publishing, 2007, página 71 e seguintes. Cf. tradução brasileira Descartes, Introdução (Porto Alegre, Artmed, 2009), página 106 e seguintes.
32 “ὣς φάτο, μείδησεν δὲ θεὰ γλαυκῶπις Ἀθήνη, χειρί τέ μιν κατέρεξε: δέμας δ᾽ ἤϊκτο γυναικὶ καλῇ τε μεγάλῃ τε καὶ ἀγλαὰ ἔργα ἰδυίῃ: 290 καί μιν φωνήσασ᾽ ἔπεα πτερόεντα προσηύδα: “κερδαλέος κ᾽ εἴη καὶ ἐπίκλοπος ὅς σε παρέλθοι ἐν πάντεσσι δόλοισι, καὶ εἰ θεὸς ἀντιάσειε. σχέτλιε, ποικιλομῆτα, δόλων ἆτ᾽, οὐκ ἄρ᾽ ἔμελλες,οὐδ᾽ ἐν σῇ περ ἐὼν γαίῃ, λήξειν ἀπατάων 295μύθων τε κλοπίων, οἵ τοι πεδόθεν φίλοι εἰσίν. ἀλλ᾽ ἄγε, μηκέτι ταῦτα λεγώμεθα, εἰδότες ἄμφω κέρδε᾽, ἐπεὶ σὺ μέν ἐσσι βροτῶν ὄχ᾽ ἄριστος ἁπάντων βουλῇ καὶ μύθοισιν, ἐγὼ δ᾽ ἐν πᾶσι θεοῖσι μήτι τε κλέομαι καὶ κέρδεσιν: οὐδὲ σύ γ᾽ ἔγνως 300″ tradução inglesa do Projeto Perseus: “And she spoke, and addressed him with winged words: “Cunning must he be and knavish, who would go beyond thee in all manner of guile, aye, though it were a god that met thee. Bold man, crafty in counsel, insatiate in deceit, not even in thine own land, it seems, wast thou to cease from guile [295] and deceitful tales, which thou lovest from the bottom of thine heart. But come, let us no longer talk of this, being both well versed in craft, since thou art far the best of all men in counsel and in speech, and I among all the gods am famed for wisdom and craft”.
33 Uma excelente inspeção do teatro ideado por Molière encontra-se nas Oeuvres complètes de Molière, Ed. Pleiade, sobretudo nas considerações de Georges Couton (Cf. Oeuvres complètes, Bibliotheque de la Pléiade, Paris, Gallimard, 1971). Dalí, retiro as considerações acima.
34 Para a carreira de Richelieu, veja-se a biografia recente de Philippe Erlanger : Richelieu, l´ambitieux, le révolutionnaire, le dictateur (Paris, Perrin Ed., 1985, última edição em 2006).
35 [ὑποκριτής, hupokritēs, um ator que assume tal ou qual caráter (artista no palco), ou seja, figurativamente, um fingidor (hipocrita), na Carta a d´Alembert sobre os Espetáculos, o bom puritano que é Rousseau mostra ter lembranças diretas desta diatribe, sobretudo no campo da condenação das obras, algo estratégico na Reforma, desde Erasmo e de Lutero. No caso de Erasmo, ele se baseia na cultura católica anterior à Reforma, por exemplo em São Gregório Magno que ataca a hipocrisia da cultura mundana (sapientia huius mundi), invectivando a lingua mentirosa que faz perder o sentido das coisas. Tal sabedoria consiste, segundo o santo, em “maquinar coisas no coração, ocultar o sentido das palavras, exibir o falso como verdadeiro, demonstrando falácias como verdade”. A verdadeira sapiência, no seu entender, é “nada fazer por ostentação fingida, buscar o sentido das palavras, cuidar das coisas verdadeiras, evitar as falsas”. Cf. Cl. Dagens, “Grégoire le Grand et la culture, de la sapientia huius mundi à la docta ignorantia” (Révue des Études Augustanes, 14, 1968, 19, n. 9 e 21, n. 17). Erasmo foi muito sensível à hipocrisia da lingua e dos atos religiosos, sendo crítico feroz do amor de si mesmo (philautia) que acompanha a ordem hipócrita. Basta ler o Elogio da Loucura, em especial na crítica das profissões, e no Adágio Sileno de Alcibíades (como Sócrates, Cristo seria um Sileno, fraco e pobre por fora, e infinitamente poderoso por dentro). O caminho da distinção interior e exterior é um dos mais importantes no estudo da ética renascentista e moderna. Cf. sobre Erasmo, Georges Chantraine : ´Mystère” et ´Philosophie du Christ´ selon Erasme (Faculté de Philosophie et de Lettres de Namur, 1971) página 77.
36 Para maiores análises, cf. Thierry Lenain, “Mensonge, mauvaise foi, mystification: les mésaventures du pacte fictionnel” in Vários, Mensonge, Mauvaise Foi, Mystification (Paris, Vrin, 2004).
37 Cf. Koenraad Oege Meinsma: Spinoza et son cercle: étude historique sur les heterodoxes hollandais. (Paris, Vrin, 1984), página 285.
38 A partir desse ponto, sigo a Ética, Quarta Parte, Proposição 18, escólio. Trad. Tomaz Tadeu (BH, Ed. Autêntica, 2007), página 287 e seguintes.
39 Cf. André Corten: Misère, religion et politique en Haïti: diabolisation et mal politique (Ed. Karthala, 2001) página 22, nota 34.
40 Fichte, J.G. : Cf. Machiavel et autres écrits philosophiques et politiques de 1806-1807. Paris, Payot, 1981, página 59. Texto em alemão Uber Machiavelli als Schrifteller (1807) in http://www.textlog.de/9382.html.
41 Existem lugares comuns renitentes quando se escreve sobre Spinoza, a natureza e o pensamento. Um deles acusa o filósofo de panteísmo, no qual desapareceria o indivíduo em proveito da Substância una, absoluta. Nos debates ao redor da leitura diferente de Spinoza quanto ao Cogito, o autor da Ética teria caído numa espécie de abismo do absoluto, sem saída. A passagem que estamos examinando, no entanto, apresenta problemas para a leitura unitarista. Não existe elo direto entre o pensamento como atributo natural e cada sujeito pensante, como ocorreria numa relação mística. Para exercer o pensamento, devo fazê-lo com os demais indivíduos humanos, o que supõe mediações e cautelas bem afastadas de um vínculo dogmático ou místico. Não irei examinar tais pontos aqui. Apenas indico um trabalho onde encontram-se somados e citados todos os pontos do lugar comum referido, com direito aos lugares comuns do idealismo alemão, da sua leitura por H. Bergson e ouutros. O estudo que menciono passa, inclusive, pela crítica de um moderno como Derrida ao Cogito solipsista cartesiano. Para quem se interessa pelo tema, o livro é saboroso. Cf. Jean-Christophe Goddard : La philosophie fichtéenne de la vie: le transcendantal et le pathologique (Paris, Vrin, 1999), sobretudo o primeiro capítulo, “La méditation cartésienne du Fichtéanisme, le Cogito comme possession originaire de la vie”, página 53 e seguintes.
42 Etica, I, prop. 28, e escólio.
43 Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République (Paris, Les Belles Lettres, 1972), página 23 e seguintes. Ao longo do trabalho o autor acentua o peso da palavra, essencial na vida jurídica até os nossos dias.
44 Para análises fundamentais sobre o problema do “útil” aos indivíduos e para a sociedade, o trabalho de Alexandre Matheron ainda é o mais completo. Cf. Individu et Communauté chez Spinoza (Paris, Ed. Minuit, 1988), sobretudo a página 150 e seguintes. Outro estudo interessante foi publicado por Charles Ramond : “Qu´est -ce qui est ´utile´ ? A propos d´une notion cardinale de la philosophie de Spinoza” in Lazzeri, D. e Reynié (Ed.) Politiques de l ´interêt. Annales littéraires de l úniversité de Franche-Comté (Besançon, 1998), volume 679, páginas 233-260.
45 Tratactus Thologico- politicus, uso a edição eletrônica da Gallica, BNF.
46 Para as várias ressonâncias do maquiavelismo no mundo moderno, conferir Claude Lefort: Machiavel et le travail de l ´oeuvre (Paris, Gallimard, 1973).
47 Cf. K.T. Butler: “Louis Machon´s ´Apologie pour Machiavelle”—1643 and 1668″. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 1940, página 208 e ss.
48 Cf. Sophie Gouverneur, Prudence et subversion libertines, la critique de la raison d´État chez françois de la Mothe Le Vayer, Gabriel Naudé et Samuel Sorbière (Paris, Honoré Champion, 2005), página 157 e seguintes.
49 “Eu via que nenhuma das coisas que eram para mim causa ou objeto de medo, nada contêm em si que seja bom ou máu, a não ser na proporção do movimento que elas excitam na alma (…) resolvi buscar se existiria algum objeto que fosse de verdade, capaz de se comunicar e pelo qual a alma, renunciando a todo outro, pudesse ser afetada unicamente, um bem cuja descoberta e posse tivesse por fruto uma eternidade de alegria continua e soberana”. Tratado da Reforma do Intelecto, prólogo. Os bens incertos são captados pela imaginação, o bem duradouro é conhecido pela razão. No mundo social e político, a maioria vive segundo as representações do imaginário, cuja certeza é quase nula. Daí o jogo.
50 Gabrielis Naudaei Bibliographia Politica, Ac nobiliss. & erudittiss. Virum Iacobum Gaffarellum, D. Aegidii Priorem, & Prothonotarium Apostolicum (Venitiis, Apud Franciscum Baba, M. DC. XXXIII). O texto pode ser lido na Gallica, BNF.
51 A tradução francesa do tempo, citada por Gouverneur (op. cit. p. 160) é a seguinte: “Or toute ceste administration Politique des Royaumes et des États, que l ´on peut apeller justement ordinaire tant qu´elle a pour but, l ´équité et la justice, par le moyen dequoy comme la deesse des larrons ceste caverne d´Horace elle puisse couvrir d´une nuict et d´un nüage les fraudes (fraudibus) et les crimes (peccatis), consideré principalement trois choses ausquelles tendent et visent directement toutes les deliberations et toutes les ordonnances: la premiere, c´est d´affermir l´Estat naissant; la deuxieme de le conserver quando il est estably; et de troisieme de la soustenir et de le remettre lors qu´ il panche et qu´il este prest de tomber”.
52 Sigo sempre, quase literalmente, as análises de Gouverneur, op. cit.
53 Politicorum sive civilis doctrinae libri sex (Lugduni Batavorum, 1589, livro I, cap. 7;
54 Citado por Émile Amiel Amiel : Un publiciste du XVIe siècle: Juste Lipse (Paris, A. Lemerre, 1884) página 216. O livro pode ser lido na Gallica, BNF.
55 Considérations politiques sur les coups d´État, cit. por Gouverneur, página 166.
56 Cf. Gouverneur, op.cit. página 167, nota 1.
57 Les politiques, ou doctrine civile de Juste Lipse, trad. francesa (quarta edição), Paris, 1598. Cit. por Janet, páginas 85 e seguintes.
58 Uma bibliografia muito bem feita sobre a simulação, a dissimulação, as fraudes, da antiguidade aos tempos modernos, foi elaborada por Jean- Pierre Cavaillé : « Mensonge, tromperie, simulation et dissimulation »in http://dossiersgrihl.revues.org/2103
59 Gouverneur, op. cit. páginas 168-1689.
60 De la sagesse, III, 1., citado por Gouverneur, op. cit. página 169.
61 Considerations politiques sur les coups d´État, capítulo II, página 7 (edição de 1667 citada por Paul Janet, Histoire de la science politique dans ses rapports avec la morale, Paris, Libraiie Philosophique de Ladrange, 1872, Tome secon, página 96).
62 Cit. por Janet, op. cit. página 98.
63 Para uma análise minuciosa da política francesa no período, incluindo os fatos e feitos da Liga, cf. Corrado Vivanti : Lotta politica e pace religiosa in Francia fra Cinque e Seicento (Torino, Einaudi, 1963).
64 Raison d´État et pensée politique à l´époque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 2000), página 321, nota 1.
65 Cf. Laurie Brun (Aix-Marseille Université): “Les premières traductions de Don Quichotte : le lexique de l’invention” Endereço eletrônico : e-lla.univ-provence.fr/pdf/article3.pdf (acessado em 20 de maio/2010, 11:00 AM.
66 De Oratore, I, 25, 113, citado por Laurie Brun.
67 Francis Bacon, The Advancement of Learning (1605) Book I:
68 “Ab illo vero licet omnia ferme mutuatus Aristoteles; nescio tamen quomodo sic ista propria fecit, Magistri sui rationes praecipuas aut clarius aut subtiliter et acute refellendo: ut non minus in istis quam in caeteris operibus suis manifestum fecisse censeatur, quantus ipse Philosophus fuerit”. Na tradução de Challine, citada por Estelle Boeuf (La Bibliothèque parisienne de Gabriel Naudé en 1630: les lectures d´un libertin érudit, Genève, Droz, 2007, página 52), “Embora Aristóteles tenha emprestado dele (Platão) quase tudo o que escreveu sobre política, não sei conduto como, ao propor as razões de seu mestre mais clara e facilmente e refutando sutil e retamente ele se tornou tão correto que fez ver por esta obra (A Política,RR) e pelas demais o quanto era um grande filósofo”. Naudé possuia a República (comentada por Fox Morcillo) e com certeza As Leis (tradução de Marsilio Ficino). Mas admira sobretudo Aristóteles, lhe atribuindo a dissimulação própria ao maquiavelismo: Aristóteles “não escreveu sua Política apenas para os sábios como Platão, mas também para os mais finórios e mais astutos, como devem ser os chamados ao governo dos Estados” (Bibliografia Política).
69 Segundo seu amigo G. Patin, “Naudé elogiava muito as práticas finórias do Gabinete dos Príncipes e Tacito, que é cheio delas; ele apreciava muito Maquiavel e dele dizia: ´Todo mundo o critica, mas todo mundo o segue e pratica, e principalmente os que o criticam, como os monges, os superiores da religião, os teólogos, o papa e toda a corte romana”. Citado por Boeuf, op. cit. página 70.
70 Naudé, Gabriel : O Marforo (Le Marfore, Paris, 1620) cit. por Boeuf, op. cit. página 65.
71 Cf. Paolo Rossi : “Ants, Spiders and Epistemologists”, in Francis Bacon, Seminario Internazionale, (Marta Fattori, Roma, 1984).
72 Elogiar o “rei aranha” já define uma leitura favorável à razão de Estado. Voltarei ao ponto, por enquanto basta citar o excelente trabalho de Adrianna Bakos: Images of Kingship in Early Modern France, 1560-1789 (New York, Routledge, 1997). A autora segue leituras várias, em diferentes séculos, do monarca francês que mais se parece com o tema do segredo, da traição e do ato dissimulador em termos políticos. A figura de Naudé é examinada por ela, de modo tal que se torna inequívoca a linha maquiavélica da apologia feita por Naudé em favor de Luis XI.
73 Com as cautelas necessárias, é preciso aqui recordar o maior decisionista do século 20: ”soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Em tal ideário está subsumido o golpe de Estado como instrumento do poder numa situação em que se avalia o amigo e o inimigo. Se o primeiro falha, é preciso tratá-lo como se fosse o segundo e a ele se adiantar nas tarefas de impor nossa própria Weltanschauung. As bases desta relação entre Naudé e Carl Schmitt podem ser notadas desde o livro A ditadura, onde o primeiro autor a ser citado é Justus Lipsius cujos escritos são “muito importantes na literatura política” (Ditadura, capítulo primeiro, nota 1). A técnica do golpe de Estado, subjacente em toda a explanação de A Ditadura é dada por Clapmar “que, à semelhança de Maquiavel, não deixa de propor toda uma série de receitas a serem aplicadas para a manutenção do poder político nem se subtrai à concepção do povo como grande fera multicolorida a ser tratada com prudência” (Ditadura, primeiro capítulo). Dita a coisa pelo próprio Clapmar: tratamos aqui dos “magistros dominationis, hodie vulgus Machiavellistas” (De arcanis rerum publicarum, Leiden, 1644, De iure publico, XXXVIII, citação mais completa logo abaixo). Schmitt, na nota 25 do mesmo primeiro capítulo cita Clapmar, com um comentário interessante: “Ao povo revoltoso pode-se prometer tudo, depois retirar a promessa: ´populo tumultuanti et feroci satius est ultro concedere vel ea quae bonos mores postulant, quam Rem publicam in periculum vocare. Nam postea sedato populo retractari possunt´. ” (Schmitt corta o enunciado de Clapmar, sem muitos danos para o sentido do texto). Cf. Clapmar, Arnold: De arcanis rerum publicarum, Leiden, 1644, De iure publico, Disputatio I, CXVIII, páginas 35-36.) Interessante porque Schmitt interpreta a tese de Clapmar segundo o modelo socialista (ele cita Mehring na História da Social Democracia Alemã), o da luta das classes onde é mais aguda a noção de amigo e inimigo. Ele finaliza a citação com a fórmula de Lipsius sobre o povo: “falle, falle potius quam caede” Cf. Six Books of politics or political Instruction, Ed. e Trad. de Jan Waszink, The Hague, Van Gorcum, 2004, livro VI, página 687. Todo o programa de Naudé sobre a prudência, a dissimulação em momentos de perigo decisivo encontra-se nesta passagem estratégica de Schmitt.
74 Clapmar, Arnold : De arcanis rerum publicarum (Leiden, 1644), Disputatio I, XLVII. páginas 441-442.
75 Apologie pour Machiavelle en faveur des princes et les ministres d´estat. Bakos, op. cit. páginas 129 e 221. O juízo sobre Tácito e sua descrição do poder principesco em Roma atravessou o Renascimento e o século 17. Em nossos dias, um autor chega a enunciar que “Os Annales são reflexo de uma sociedade cujo modelo político tinha sofrido uma enorme mudança e que procurava ainda adaptar-se ao novo regime, dominado por príncipes que chegam ao poder como resultado de operações de bastidores. A simulação é a característica mais visível, pois é com uma aparência enganosa que as personagens actuam, num regime que é ele mesmo de cosmética.” Cf. Ricardo Nobre: Intrigas Palacianas nos Annales de Tácito. Processos e tentativas de obtenção de poder no Principado de Tibério. Universidade de Lisboa/Universidade Aberta, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, primeira edição, 2010. Classica Digitalia Universitatis Conimbrigensis. Estudo estratégico para a análise da simulação e dissimulação política. Voltarei a ele em tempo certo. Desde já, passagens como a seguinte são preciosas. “Os críticos de Augusto têm ainda outra perspectiva acerca do movimento concêntrico de aquisição de poder, pois usurpação, corrupção e extorsão aparecem como isotopias que corrigem a ideia de unanimidade e solidariedade com o projecto de Augusto anteriormente demonstrada: corruptas (1.10.1), inuaserit, machinator doli, occupauisse, extortum (1.10.2). Pela corrupção, chega-se a uma atitude dissimulatória, denunciada pelos seus críticos, como o narrador refere após a morte de Augusto: obtentui sumpta, simulatam gratiam (1.10.1), imagine pacis, specie amicitiae (1.10.3). Passa a acreditar-se que o passado era algo perigoso, por oposição à segurança que o presente oferecia (1.2.1, 1.4.1). As províncias também preferiam o regime instaurado por Augusto à situação administrativa anterior, vista como corrupta e pouco favorável (1.2.2). E de facto já ninguém se lembrava da República (1.3.6) e todos esperavam as ordens do príncipe, exuta aequalitate (1.4.1). A dicotomia dissimulação-aparência aparece ainda na operação de cosmética à máquina do estado: nada estava na mesma (1.4.1), mas os nomes das magistraturas eram os mesmos (eadem magistratuum uocabula, 1.3.7)29. Augusto apenas os mantém em aparência, como se vê na decisão de usar o título de princeps para designar as suas funções, em vez de rei ou ditador, ou seja, aquilo que realmente era:
non regno tamen neque dictatura, sed principis nomine constitutam rem publicam (1.9.5; cf. 1.1.1).”, página 46.
76Cf. Innocent Gentillet : Anti-Machiavel, edition de 1576, avec commentaires et notes para C. Edward Rathé (Geneve, Droz, 1968). Cf. Antonio d´Andrea : “The political and ideological context of Innocent Gentillet´s Anti-Machiavel” in Renaissance Quarterly (The University of Chicago Press, 1970. Volume 23 , número 4), página 397 e seguintes. : Jstor : http://www.jstor.org/stable/2859079. Para o comentário de Bakos, op. cit. páginas 128-129.