UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
Cidade Universitária, 23 de abril de 2012
Edição nº 522
ARTIGO
Barriga de peixe, ou o estulto ‘foquismo’
Numa
palestra para professores da Universidade Federal do Ceará, acerca dos
elementos estéticos presentes na criação científica, um de meus
comentários foi considerar um equívoco a ideia de que um indivíduo que
tenha elegido um único tema de estudo e pesquisa ao longo de sua vida
acadêmica, desde a iniciação científica até o pós-doutorado, seja alguém
meritoriamente focado, o que o tornaria mais digno de pontos, por
exemplo, num concurso qualquer. Aliás, frequentemente me vi envolvido em
debates com colegas membros de bancas de seleção por advogar exatamente
a opinião contrária: meu apreço por todo aquele que ao longo da vida se
dedicou a pensar diferentes assuntos, mesmo os mais díspares e
distantes entre si.
Após a fala e
aberto os debates uma jovem bióloga declarou que tinha se reconhecido no
meu comentário, dado ter empenhado toda a sua trajetória acadêmica
estudando “barriga de peixe”. E que só havia se dado conta do quão pouco
sabia da vida e do mundo em geral quando um namorado recente acabou
deixando-a porque ela só sabia falar disso, de barriga de peixe.
Obviamente não pude deixar de pontuar que quase sempre é assim que se dá
o conhecimento, sendo ele obtido a partir de um sentimento ou emoção
primordial – no seu caso, uma constatação de sua limitada percepção após
se ver “apeixonada”. Piadas à parte, esta reflexão precisa ser levada a
sério. O quão deletéria e prejudicial tem sido essa tendência cada vez
mais acentuada para uma especialização extrema, incentivada por
mensurações de desempenho que quadriculam a realidade e se tornam um
leito de Procusto no qual devem se acomodar pesquisadores e docentes.
Não
custa relembrar o filósofo e matemático Bertrand Russel, uma das mentes
mais proeminentes e profícuas do século 20. Em sua autobiografia relata
que seu avô (por quem foi criado) repreendeu-o ainda na infância por
tomar e ler aleatoriamente livros dos mais variados assuntos de sua
biblioteca, aconselhando-o a se dedicar apenas a um tema se quisesse ter
sucesso na vida. “Ainda bem que nunca segui esse conselho”, conclui
Russel, cuja vasta obra constitui um amplo leque de reflexões sobre
ciência, filosofia, política, ética, economia e outros temas
fundamentais para o homem e a sociedade humana. Russel se dedicou a
pensar não somente no peixe inteiro como nos demais cardumes, bem como
no rio onde nadavam e na floresta atravessada por ele, com todos os seus
outros habitantes.
Muitos
proeminentes pensadores e produtores de conhecimento podem ser lembrados
como exemplos de indivíduos que tiveram percursos sinuosos por entre
assuntos e temas variados, e com frequência se nota que suas
contribuições mais originais provêm exatamente da capacidade de conectar
aspectos distintos disto que chamamos realidade, os quais aparentemente
se mostram distantes entre si.
Aliás,
o jornalista e escritor Arthur Koestler – que certamente faz parte
desse grupo – em sua obra The act of creation conceitua como bissociação
o processo pelo qual as pessoas criativas conseguem associar
conhecimentos díspares ou pensar simultaneamente em planos distintos de
referência. E não custa encerrar o parágrafo registrando que no presente
século o prêmio Nobel de economia de 2001, Michael Spence, antes de se
doutorar nessa área do conhecimento pela Universidade de Harvard,
concluiu o bacharelado em Princeton e o mestrado em Oxford, ambos
obtidos em artes.
“A ideia de que
as pessoas devem ter uma certa percentagem de seu tempo para fazer
coisas sem nenhuma ligação com sua tarefa talvez seja uma maneira boa de
fazê-las pensar fora do plano.” Afirmação de Joichi Ito em entrevista à
Folha de S. Paulo (de 02/01/2012). Diretor do Media Lab, um dos
componentes do incensado Massachusetts Institute of Technology (MIT),
Ito, além de seu domínio em informática e física, orgulha-se de ser
instrutor de mergulho, ocasião em que vê as crianças, seus alunos,
aprenderem com vontade, alegria e determinação conceitos de física,
química e matemática. Contudo, o que talvez cause mais espécie em nossos
focados e titulados corpos docentes seja a informação de que Ito dirige
o Media Lab do MIT não sendo portador sequer de um diploma de
graduação. E que nunca conseguiu concluir os cursos nos quais se
matriculou justamente por não se adaptar ao “foquismo” daquilo que
tentavam lhe ensinar.
(Nesta altura
temos que abrir um parêntese para registrar um caminho alternativo de
reflexão, o qual, no entanto, não será trilhado aqui. Trata-se do
desprezo que até hoje se devota às Carreiras Especiais dentro da
Universidade, as quais deveriam abrigar pessoas como Joichi Ito, sem
demérito de vencimentos ou incentivos forçados à titulação. Fecha o
parêntese.)
Merece também menção o
editor John Brockman e seus esforços para reunir pensadores das mais
diversas áreas, compilando seus conhecimentos e opiniões sobre temas
específicos em livros sob os mais variados títulos, o que vem fazendo
desde 1998. Em seu entender tão-somente ideias vindas de diferentes
áreas do conhecimento que possam se interligar e se interinfluenciar
poderão conduzir à solução dos principais problemas que assolam a
humanidade. Entretanto, um caso exemplar e deveras significativo é o de
Joseph Needham. Da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, era
bioquímico de formação e se interessou pela China graças a uma namorada
chinesa, que lhe ensinou a língua. Designado para um trabalho naquele
país, acabou por formular a célebre “pergunta de Needham”: se desde
tempos imemoriais aquele povo detinha o conhecimento e a tecnologia para
a produção de tantos artefatos e produtos inovadores (como a pólvora, o
papel e a seda), por que foram os ocidentais e não eles os criadores da
ciência moderna?
Mesmo sem ter
formação em história das ideias, resolveu pesquisar o assunto, no que
foi apoiado pela sua instituição. Planejava escrever, em dez anos, em
torno de sete volumes para responder a sua questão. Gastou, na verdade,
quarenta anos e, até a sua morte (em 1995), já havia escrito quinze mil
páginas de reflexões, construindo uma obra monumental. Nunca mais
escreveu uma linha sequer sobre bioquímica, na qual o pensamento estulto
talvez dissesse que ele deveria se manter focado. E, detalhe
importante, nunca foi cobrado por isso; pelo contrário, foi incentivado e
reconhecido por sua hercúlea tarefa.
Por
todos esses breves fatos e ligeiras reflexões se me afigura cada vez
mais surpreendente que a ideologia do “foquismo” esteja ganhando tantos
adeptos no meio acadêmico. Sem dúvida, o trabalho focado parece
consideravelmente menos desgastante e arriscado, com menor quantidade de
leituras e reflexões a serem levadas a cabo e menores chances de
fracasso. Porém, com ele, reduzidas são também as possibilidades de
grandes saltos e inovações surpreendentes no conhecimento humano,
notadamente a possibilidade de que se obtenham sínteses abrangentes e
seminais.
Obviamente a
probabilidade de surgimento de novos Russels ou Needhams será sempre
baixa, dado serem pessoas acima da média (vide a curva de Gauss).
Todavia, assim como é praticamente nula a probabilidade de rosas
medrarem no deserto, na medida em que se criam ambientes aridamente
“foquistas” se impede a germinação de mentes ávidas pelo trânsito
sinuoso entre os campos do saber humano. E este parece ser
especificamente o caso da norma firmada pela Capes de não atribuir, em
sua avaliação, pontos a trabalhos de pesquisadores que não se restrinjam
à área do programa de pós-graduação no qual estão credenciados. Além de
tal prática ser arrogante, por supor a clarividência e a suprema
sabedoria de seus avaliadores, que conseguiriam detectar de antemão
desvios de rota e práticas dispersivas por parte de uma mente em
processo de criação, ela parece estulta em si própria, preocupada apenas
com a quantidade e não com a qualidade da produção acadêmica.
Note-se,
por fim (mas não em último lugar), que todo e qualquer docente,
pesquisador seja de qual área for, tem, por definição, ao menos mais um
assunto do qual deveria se ocupar diariamente: a educação. Sim, pois sua
prática numa instituição de ensino superior é, de modo precípuo,
educacional, e esse campo de trabalho possui múltiplas vertentes de
abordagem, quais sejam, históricas, econômicas, políticas, sociais,
psíquicas etc. Contudo, pelos padrões avaliativos atuais tão-só os
docentes das faculdades de educação merecem pontuação por seus trabalhos
de reflexão sobre o tema. Essa barriga de peixe só a eles pertence.
(E
num derradeiro parêntese cabem informações complementares. Primeiro,
que “um dos motivos encontrados por Needham para o estancamento da
criatividade chinesa a partir de 1500 foi justamente a aversão de uma
estrutura burocrática acomodada na certeza de sua própria sapiência a
tudo que discrepasse dos padrões impostos”. Citação esta retirada do
artigo do psicanalista e docente da PUC São Paulo, Renato Mezan, “O
Fetiche de Quantidade”, publicado na Folha de S. Paulo – caderno Mais –
de 9 de maio de 2010, ao qual devo as informações sobre Joseph Needham. A
esse respeito, ou seja, acerca de uma alucinada quantificação como
parâmetro unívoco para a mensuração da produção acadêmica, remeto também
o leitor ao meu ensaio The Rotten Papers, ou Adiós Que Yo Me Voi,
publicado em A montanha e o videogame: escritos sobre educação – Papirus
Editora.)
João
Francisco Duarte Junior é docente do Instituto de Artes (IA), com
sinuoso percurso escolar e acadêmico: técnico em química industrial
(nível médio), graduação em psicologia, mestrado em psicologia
educacional, doutorado em filosofia da educação e livre-docência em
artes.