domingo, 15 de abril de 2012
Portugal, 25 de abril...
14.4.12 de Joana Lopes, Portugal, dias antes de 25 de abril...
do Blog Entre as brumas da memória...
Ó mãe, eu não posso faltar!! Eu hoje tenho prova escrita!
Este blogue vai publicar, nos próximos dias, posts relacionados com o 25 de Abril. Este é o primeiro, da Rita Veloso, e é divulgado hoje porque nele se refere uma carta escrita há exactamente 41 anos.
Há 38 anos a minha mãe acordou-me era noite cerrada e disse-me que me ia deixar em casa dos meus tios.
Protestei muito, porque ia ter uma prova escrita e toda a gente sabe que as provas na 1.ª classe são muito importantes.
Não me ligou nenhuma e não me levou à escola...
Desde então tenho protestado por não me ter levado com ela para o Largo do Carmo.
Acompanhei a família a seguir os
noticiários, o Fialho Gouveia a fumar desalmadamente enquanto dizia
coisas totalmente incompreensíveis, para mim, pelo menos. Era uma
revolução, uma revolução, diziam os meus tios
histérico-nervoso-jubilantemente!
Mas só percebi bem o que isso
queria dizer passados dois dias, quando cheguei a casa depois de umas
rotineiras compras e o meu pai estava sentado no sofá... Aqui? Nesta
sala? Em casa?? Neste sofá vermelho?? O lugar natural do meu pai era o
Forte de Peniche, quando muito o Hospital-Prisão de Caxias. Preso
político desde os meus dois anos e meio, ele estar em casa era
improcessável.
(Ah!, preso político queria
dizer que tinha sido preso por política e política não queria dizer
roubar carros nem bancos, como a minhã irmã em vão tentava explicar aos
colegas na escola.)
Ao fim de cinco anos a vê-lo
através dos quadradinhos dos vidros do parlatório ou na sombria sala
vigiada das visitas comuns, ter direito a um colo no MEU sofá vermelho
foi muito bom!
Obrigada, MFA, Salgueiro Maia, também por isso!
Nas semanas seguintes já
organizava as manifs do colégio (com direito a porrada dos esquerdistas e
tudo!), fornecendo as letras das músicas da revolução. A minha
preferida era o Hino de Caixas; assim lia eu até a minha mãe me
corrigir...
Há 6 anos, no Rossio depois da
manif "furtaram-me" a mala. Lá dentro tinha o meu caderno da 1.ª classe,
do período Março-Abril. Era um registo enternecedor daquela época, com
um desenho fabuloso do primeiro 1.º de Maio, outros com dois burros
copiados do livro de leitura, com as legendas de Marcelo Caetano e
Américo Tomás e um Sol a rir às gargalhadas, ou ainda aquele do aquário
com peixes, em que só um terço da água tem cor e ao lado tem a legenda
rebelde "Agora não pinto mais, porque fiquei sem tinta". Como apanha
também Março, o antes era visível em respostas dos TPC:
P: Qual a profissão do teu pai?
R: O meu pai de momento não trabalha.
P: Gostarias de ter a mesma profissão?
R: Eu cá não gostava nada!
Nunca recuperei esse caderno,
nem outros documentos idênticos que levava... E eram a única coisa que
de verdadeiro valor estava na mala.
Há pouco tempo ganhei coragem
para abrir a caixa das cartas que o meu pai enviou à minha mãe durante
aqueles cinco anos. Permitiu-me ouvi-lo com ouvidos de adulto, tão
diferentes dos que tinha quando morreu... Partilho um excerto, longo, de
uma delas, escrita a 14 de Abril de 1971, ou seja, há 41 anos. Diz que
escreve como gostaria um dia de falar com as filhas. Nós ouvimos.
Há meses que ando a ler uma
história universal mediocre, em 20 volumes. (Vê lá tu! Ainda me sucede,
como ao personagem do Eça, dizer depois "escapou-se-me tudo") Ao longo
de páginas e páginas, vão sendo engolidas gerações e gerações. Cartas
quase iguais às que hoje se cruzam, foram já escritas. Transcreve a
tradução duma, gravada em placas de argila há não sei quantos milhares
de anos: um homem escreve a uma mulher perguntando-lhe dum filho, dos
parentes, falando-lhe do seu amor, dos seus projectos e das suas
preocupações. Montanhas anónimas de pó! Para quê? Às vezes, estremeço e
caio no Pessoa: "Sempre uma coisa defronte da outra / Sempre uma coisa
tão inutil como a outra / Sempre o impossível tão estúpido como o real /
Sempre o mistério do fundo tão certo como sono de mistério da
superfície / Sempre isto e sempre outra coisa ou nem uma coisa nem
outra!" Mas não é exacto: não foram pó que ao pó regressou; não foram
nada acumulando-se sobre coisa nenhuma. Tudo isto, até estes versos de
Pessoa, até estas palavras, até esta inquietação angustiada, até estas
grades, criaram e acumularam. Estão aqui connosco, todos, neste nosso
mundo e em nós. Lembro uma frase (...) sobre as tendências "naturais" do
homem. (...) É do século XVIII essa óptica de que a "civilização"
afasta o homem do que lhe é natural! Pura idealização a substituir uma
outa mística! A história do homem não é senão a história natural duma
espécie animal: a espécie humana. Bicho sui generis, a sua história é
complexa, mais rápida, multiforme, sujeita a leis também específicas.
Mas ainda e sempre uma história "natural": que outra coisa poderia ser?
Dito doutra forma, a natureza do homem constroi-se num processo
histórico; não é qualquer coisa de fixo, transcedente: é o que
historicamente vai sendo. É tolo - e é mau - reduzir a natureza do homem
à bestialidade primitiva: ao viver em hordas, à meia dúzia de gritos
guturais, à promiscuidade, à ainda animalidade do comer, do habitar, do
sentir, do amar, do pensar. Natural também não se confunde com
instintivo: negaríamos a realidade palpável do que melhor construímos e
somos - ou podemos ser. À (...) citação contraponho esta: «é numa fase
adiantada da história do homem que se desenvolve e se produz pela
primeira vez a riqueza sensorial "humana", o ouvido musical, a vista
sensível à beleza formal, em suma, os sentidos capazes de gozos já
"humanos". O homem constroi-se a si próprio humano"» Outras citações
ainda mais explícitas eram possíveis. O erro é empobrecer a natureza
humana fixando-a num certo homem duma dada étape histórica. O crime é
cobrir com o manto do "natural" (logo inevitável, logo bom) intuitos ou
sensibilidades ou erros ou caracteristicas grosseiras e mesquinhas -
quantas vezes, afinal, apenas a própria imagem; ou, dito doutro modo,
mascarar de "natural" o que é já rejeitado pelo próprio homem, o que é
já hoje historicamente desumano. Abre-se o caminho ao que se quer e a
tudo...
Em quase todas as épocas,
grupos de homens buscam para a vida um sentido alheio ao facto essencial
de pertencerem à espécie humana - ao que chamamos humanidade. E
encontram-se sós, angustiados perante a morte. Alguns atiram-se à
conquista cega duma felicidade a curto prazo, agora e aqui, porque a
morte é imprevisivelmente certa. Foge-lhes a juventude, fogem-lhes os
dias. Velhos, velhos, fazem constantemente as contas ao que ganharam ou
perderam: e sempre se perdem por inteiro. Desenfreados (com mais ou
menos verniz supra-espiritual ou supra-sensível), afundam-se em qualquer
ópio: no haxixe ou na sensualidade ou no vinho ou no jogo ou em
qualquer coisa, mais ou menos idêntica. Tentam atafulhar em cada momento
uma eternidade que lhes foge. Revelam por vezes a lucidez de quem sabe
que apenas se atordoa, de quem se sabe um produto alienado e quase sem
culpa duma humanidade que se constrói dividida. "Cadáveres adiados que
procriam" - ainda F. Pessoa. O fenómeno atinge, porém, expressões mais
significativas e complexas em dados momentos históricos: na decadência
grega ou romana, no século XVII da Inglaterra ou XVIII da França, etc;
um pouco em toda a parte, quando esta história tumultuosa que fazemos
põe em causa valores estabelecidos e simultaneamente aliena e destrói os
laços dos homens com o humano; quase sempre, precisamente nas épocas de
rotura em que, num outro pólo, transparece um homem mais humano, se
afirma mais rica e exemplar a construção da grandeza inequívoca do
homem. Hoje, também e mais do que nunca: é o mundo marginal dos hippies,
dos provos, dos blusões negros, e o resto - que, afinal, apenas
condensam com maior virulência, como num abcesso, a desorientação de
largos estractos. Mas as caracterísitcas são ainda idênticas: a
desumanização, agora desenfreada, a solidão vazia vazia, o esgotamento, a
loucura, o suicídio - fisico ou não. Alienados no individualismo vazio,
no gozo epidérmico, saltitantes e instáveis na busca do prazer fácil,
acordam cada vez mais sós, mais mortos, mais condenados. Não é uma
conclusão moralizante que formulo; é a constatação do logro, da total
ineficácia para construir mesmo e sobretudo uma qualquer felicidade
pessoal, possível apesar de tudo. O homem só se recupera humano
identificando-se com os objectivos naturais (historicamente naturais) da
própria espécie: a ética humanista é válida porque é a única senda
possível para essa identidade (contraditória, turtuosa e turturada,
embora) do homem com a sua humanidade. Eu sei: só se vive uma vida.
Individualmente é muito importante, mas não conduz a nada dar-lhe um
qualquer significado imediatista, de superficie, de flor-da-pele. O
encontro com a morte é irrelevante para pedaço duma humanidade que essa
sim se constrói e perdura. Que construímos e em que perduramos.
Naturalmente humana, breve radicalmente humana.
Escrevo-te aos supetões
porque estou de faxina. Não, com certeza, com palavras abertas, não
medidas, como gostava de te escrever. Mas acredita que te escrevo como
gostaria um dia de falar à R e à S, isento, convicto, rebuscando
dizer-lhes qualquer coisa de muito importante para a sua própria vida.
Não palavras para me esconder, não palavras para cobrir fraquezas ou
erros ou qualquer outra coisa. Palavras esforçadas para comunicar com
exactidão o que aprendi neste "trânsito mortal". Porque contraditório,
complexo, com isto ou com aquilo, tal como sou - não faço contas.