O Cachoeira e a gota d'água
22 de abril de 2012 | 3h 04
LUIZ WERNECK VIANNA, professor-pesquisador da PUC-Rio; e-mail: lwerneck096@gmail.com - O Estado de S.Paulo
Não há teoria que subverta a convicção de que as coisas
humanas andem ora tangidas por nossas ações, conscientes ou não dos
resultados que delas advirão, ora como que animadas por movimentos
internos, como que autopoieticamente, categoria que a sociologia, na
obra clássica de Niklas Luhmann, importou da biologia, hoje incorporada
ao léxico da moderna teoria social. A mudança de bastão de Lula da Silva
para Dilma Rousseff, celebrada como uma prestidigitação em que a
segunda deveria representar, no exercício do poder, a continuidade
corporal do seu antecessor, como que em comunicação demiúrgica com ele -
o corpo metafísico do rei -, omitiu no seu ritual a transmissão do
carisma para a sucessora, como se ela estivesse fadada tão somente à
missão litúrgica de zelar pelo culto do fundador da sua dinastia.
O fato é que, sob o governo Dilma, o ímpeto da expansão do
capitalismo no País segue o seu curso, evidentes, a esta altura, os
sinais de que esse movimento não obedece apenas a uma simples lógica
naturalística, mas que já se constitui num processo politicamente
orientado. Mais do que gestora, Dilma investe-se do papel de primeira
executiva em geral do capitalismo brasileiro, concebido como um projeto
nacional a ser implementado de modo decisionista pelo Poder Executivo e
sua sofisticada tecnocracia. Entre vários outros, mais um indicador
dessa inovação em termos de estilo de exercício de poder está na sua
diplomacia presidencial, centralmente orientada para a projeção da
economia do País no cenário internacional e refratária, sem alarde, a
postulações político-ideológicas. Se coube antes, não lhe cabe mais a
imagem de uma simples gerente da administração pública, porque já está
aí o esboço de um perfil forte de dama de ferro do capitalismo
brasileiro.
De outra parte, a expansão da experiência capitalista no Brasil não é
mais apanágio do Centro-Sul, o agronegócio abriu-lhe o hinterland,
introduzindo mutações irreversíveis na sua composição demográfica e na
sua estrutura social. E por toda a imensa região da fronteira ela ativa e
energiza a iniciativa dos seus setores subalternos, cria e expande
mercados.
Essa vigorosa difusão da vida mercantil, contudo, se afirma num
cenário desértico quanto à estruturação do político e à difusão de
valores cívicos. Nas ciclópicas obras da construção de usinas
hidrelétricas, que ora têm lugar nessa região de fronteira -
empreendimento de grandes empreiteiras, financiado, em boa parte, com
recursos estatais -, são mobilizadas centenas de milhares de
trabalhadores, a maior parte deles conhecendo o seu primeiro emprego
formal e a sua primeira exposição às leis trabalhistas e à vida
sindical, que agora começa a chegar-lhes, em meio a greves selvagens e a
atos tumultuados de protesto contra as precárias condições de trabalho
com que se defrontam.
Por cima, a emergência de novas elites que fizeram a sua história à
margem das lutas pela democratização do País. Por baixo, a presença
multitudinária de trabalhadores e de homens em busca de oportunidades de
vida, um capitalismo de faroeste que tem forçado, às vezes com sucesso,
as portas de entrada da política, como neste Goiás de Carlinhos
Cachoeira - personagem tão expressivo desse mundo quanto o foi, em Serra
Pelada, o major Sebastião Curió -, espécie refinada de um gângster de
bons modos e de bom gosto que parece saído de um romance de Scott
Fitzgerald.
A natureza quasímoda do nosso sistema político - tradicional
composição heteróclita do moderno com o atraso, este, no caso,
representado pelas oligarquias tradicionais, filhas do nosso secular
exclusivo agrário - torna-se ainda mais aberrante com a incorporação,
como se tem apurado nas investigações em curso, dessa floração de um
capitalismo sem lei, que, com métodos de máfia, se infiltra em grandes
empresas, nas estruturas do Estado e do Ministério Público - lugar de
origem da escalada política do senador Demóstenes Torres - e também na
sede do Poder que representa a soberania popular.
As coisas humanas andam, e o seu andamento sinaliza, para o governo
Dilma, o que talvez fosse ainda pouco visível para o seu antecessor: o
presidencialismo de coalizão, na forma como vem sendo praticado,
converteu-se numa política de alto risco para a democracia brasileira. O
presidencialismo de coalizão, decerto, tem-se mostrado, entre nós, como
uma via institucional adequada a fim de afiançar governabilidade,
especialmente após a experiência frustrada do governo Collor, que se
pretendeu pôr acima dos partidos. Mas a reiteração acrítica da sua
prática, em particular no segundo mandato de Lula e na articulação da
composição ministerial do governo Dilma, cuja montagem original não
resistiu sequer a poucos meses de operação, não deixa mais dúvidas
quanto à necessidade da revisão do seu modo de operação. O affaire
Demóstenes-Cachoeira, com a CPI "do fim do mundo" ou sem ela, bem que
pode ser a gota d'água.
Nessa forma de presidencialismo, a coalizão deve-se dar em torno de
políticas, e não de interesses avulsos e fragmentados, como na nossa
experiência atual, a qual, ao ratear benefícios e prebendas a granel,
com a pretensão de garantir insulamento para a política decisionista e
tecnocrática do Executivo, franqueia as estruturas do Estado à
apropriação por parte de particularismos privatísticos, quando não do
crime organizado por meio de redes de estilo mafioso.
A História contemporânea é farta em exemplos no sentido de mostrar
que, por trás da projeção nacional dos Estados bem-sucedidos, há uma
República, destino para o qual nos tangem os fatos, já desavindos com
essa democracia de interesses que converteu a política num processo
penal sem fim.