sábado, 1 de dezembro de 2012

A Figura do Leviatã- Roberto Romano


Revista Philosophica, número 9.
A FIGURA DO LEVIATÃ
Roberto Romano

Professor Titular do Departamento de Filosofia, Unicamp. O texto que segue, com o título de “Um paradigma totalitário” foi publicado, em parte mínima, na Revista Cult, n.º 99.

AO CONTEMPLAR A VIRGEM NAS ARTES MEDIEVAIS, notamos a desproporção entre o seu tamanho e o dos pecadores. Os corpos trêmulos abrigam-se sob a mulher que esmaga a serpente do mal. O pagamento do pecado é a morte (Rm 6,23), mas a salvação sempre ocorre de forma gratuita. A Mãe de Deus (Theotokos) mostra que o Eterno pode ser alcançado. Cada um dos fiéis encontra em Maria a sua porta eburnea para deixar o exílio no mundo, hac lacrimarum vale. Os cristãos possuem cidadania celeste. Eles estão no mundo visível mas caminham para o invisível.1 O crente, iletrado ou poeta, percebe os acontecimentos “em constante conexão com um Plano divino do acontecer, para cuja meta os eventos terrestres sempre avançam” (AUERBACH, 1971).

A coroa de Maria garante o triunfo sobre o inferno. No culto à Virgem o tempo dos cristãos vai do agora (nunc) ao instante da morte (in hora mortis nostrae). Sem a proteção do Estado, corroído depois do Império Romano, sem a segurança da Igreja, em luta contra o esfacelamento feudal dos mosteiros e dioceses, os leigos submetem-se ao guante dos barões ou peregrinam em massa pelos centros onde Maria os reconforta.2 Os conflitos entre as duas instituições nascentes — Estado nacional e Igreja centralizada — surgem ao redor do mando soberano. Nas palavras de Georges Duby (1979, p. 156), “a coroação de Maria na catedral celebra, de fato, solenemente, a soberania da Igreja romana”. O tema da Virgem rainha e mãe “concebido na mesma época em que o papa Inocêncio III reivindicava para a Igreja reunida em torno de si a soberania universal (…) espalhou-se muito rapidamente. Em Notre Dame de Paris, cerca de 1200, revestiu as suas formas perfeitas” (Ibid.). Tendo na lembrança os enunciados acima, examinemos a proteção dos homens comuns pela Virgem, enquanto figura da Igreja soberana. Não existem pessoas isoladas, todas se colocam sob o manto de Maria-Igreja, o que lhes dá segurança, paz, certeza da salvação. A imagem seguinte apresenta de maneira perfeita todo esse complexo teológico-político. Na Virgem da Misericórdia, leigos e clérigos são protegidos igualmente pelo manto da Mãe de Deus. Transcorrido algum tempo, com o fortalecimento do poder laico, a soberania da Igreja torna- se apenas uma reivindicação sem base empírica sólida. A Virgem passa a abrigar preferencialmente o clero, pois o Estado lhe retira o domínio da maior parte dos leigos: as batalhas entre a Santa Sé e os Reis (sobretudo os de França e Inglaterra) conduzem a pintura para uma forma de persuasão política estratégica.


La Vierge de Miséricorde, Enguerrand Quarton, 1453 (Chateau de Chantilly)

É preciso recordar alguns elementos da guerra entre o papa e os reis. No documento Sicut universitatis conditor (1198), Inocêncio III proclama que “O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja Universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (estas são os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor” (BETTENSON, 1947, p. 158-59). Os choques entre príncipes e papas começam bem antes. Já Henrique I da Inglaterra queria centralizar a administração e recuperar os direitos régios em matéria eclesiástica, impor a sua autoridade nos campos jurídico e fiscal. Isto causou a oposição de Thomas Becket, com o posterior drama da história política inglesa, marcada pelo assassinato do arcebispo e cujo ápice é a execução de Thomas Morus por Henrique VIII. Das escaramuças sangrentas entre os poderes, surgiram obras importantes para toda a filosofia política, a começar com o Policraticus de Salisbury.3 O poder real, afirma o autor, se quiser escapar ao labéu da tirania, deve ouvir e obedecer a Igreja. Salisbury examina com acuidade alguns fenômenos do Leviatã ainda embrionário. Ressalta na sua análise a premonição de que o Estado exige a força física ilimitada. O filósofo da Igreja aprimorou a imagem da coletividade política enquanto corpo. Tal imagem foi utilizada desde os primórdios do pensamento grego e romano. A comunidade cristã recebeu esta forma nas metáforas de Paulo apóstolo.4 Existem autores que atenuam ou negam o papel de semelhante figura no pensamento de Salisbury (LIEBSCHÜTZ, 1950, 1980, p. 45 et seq.). O corpo social, no entanto, no Policraticus (Livros V e VI) possui relevância porque a dualidade entre os poderes — espiritual e secular — começa a se definir. Se a tarefa do príncipe é manter a boa saúde do corpo estatal, o sacerdote tem a missão de aconselhar neste labor, como se fosse a alma da república. Caso o rei abuse do poder e desobedeça aos mandamentos religiosos, mergulhando a comunidade na injustiça, a sua morte é correta e abençoada.5 A tese de Salisbury vem de Cicero (De officiis) e mostra a importância da metáfora corporal, no instante mesmo em que autoriza a morte do tirano: como num corpo, diz Cicero, importa cortar um membro doente, também na república é vital cortar o governante tirânico.6 Esta ameaça ao mando laico foi temida pelos príncipes, não sem razões, durante séculos de modernidade.7 Com o imaginário religioso foram geradas as imagens mais contraditórias do soberano laico, da monstruosa8 à respeitável. Importante é que as duas imagens, a mística e a civil, não se recobrem perfeitamente, deixando espaço para os cidadãos decidirem sobre a obediência a ser exercida, no caso a religiosa ou a secular. Nem a Igreja moderna, nem o Estado,subsumem os indivíduos numa unidade sem fissuras. A figura da soberania eclesiástica foi mantida até o século XX e pode-se dizer que sem ela não existiria Igreja católica.9 Mas seus momentos cruciais definiram-se no Renascimento. A propaganda eclesiástica ainda foi recolhida em Piero della Francesca. Observe-se o quadro seguinte:

Políptico da Misericórdia, Piero della Francesca, 1445-50. Museo civico, Borgo san Sepolcro

A questão do poder legítimo ocasionou pensamentos jurídicos contraditórios, relativos à obediência da multidão. Para que pudessem ter suas ordens acatadas, papas e reis precisavam mais do que força física e força econômica. Eles tinham necessidade da forma noética definida por Max Weber como essencial à dominação: os valores deveriam ser partilhados pela consciência de líderes e liderados. Tal vínculo garante a permanência dos governantes.10 Bracton11 já define o debate sobre as condições pelas quais os dirigidos devem e podem obedecer aos magistrados. A base da adesão ao ordenamento legal imposto pelo governante e aprovado pela Igreja era a realidade (na consciência cristã) do governante enquanto imitação do Cristo. Essa foi a maneira pela qual Bracton resolveu o problema, que ainda hoje nos assombra, da eficácia que se espera do magistrado posto acima e abaixo da lei. Para cumprir a missão de proteger os súditos, ele deve estar ao mesmo tempo nos dois planos, sem o que não existe legitimidade de seu mando. Na cultura religiosa existem paradoxos semelhantes. A Virgem é mãe e filha de Deus (Nata nati, mater patris). No De legibus et consuetudinibus Angliae Bracton resolve o paradoxo do seguinte modo: “o poder do rei refere-se à geração da lei e não à injúria. E desde que ele é o auctor iuris, uma oportunidade para a iniuria não poderia nascer no mesmo lugar onde nascem as leis”.12 Se o rei é fonte geradora da lei, ele deve ser o seu intérprete maior e tem este poder porque gera a lei e não apenas gere a sua vigência. O paradoxo tem como base o divino, a fonte superior da Lei. Segundo Ernst Kantorowicz, “o rei é filho da lei, mas torna-se pai da lei” e a sua legitimidade exige que se atente para a base teológica que a sustenta. “O rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”. Outra passagem de Bracton é eloqüente: “o próprio rei deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o rei … Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei. Ele deve estar sob a lei porque é vigário de Deus, o que fica evidente pela similitude com Jesus Cristo em cujo nome ele governa sobre a terra”. Cristo, embora Deus, pagou impostos ao César e colocou-se, enquanto homem, sob a lei. O rei, como Jesus, é ao mesmo tempo servus legis e dominus regis. Mas ele só pode ser dito vicarius Dei se for fiel intérprete da lei e a ela submeter-se, mimetizando o Cristo. Neste caso, ele pode ser elevado acima da lei e se torna legislador (auctor iuris) mas de acordo com a lei. Caso oposto será um tirano. Se o círculo da relação do rei como maior et minor se ipso se quebrar e desaparecer a interpretação correta da lei, o governante torna-se tirano. O rei é semelhante a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta. Como o filho de Deus, ele é homem comum (sob a lei) porque a ela se submete. O poder legítimo tem como fonte o divino, o ilegítimo radica no demasiadamente humano. Esse fundamento do governo legítimo condiciona a estabilidade do mando e de suas instituições. O nexo entre rei e Deus assegura que Nullum tempus currit contra regem (o tempo não corre contra o rei) e resulta no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa posse gera o direito). Tudo o que se liga aos bona publica é integrado no registro atemporal e são res quasi sacrae. Para começo, temos o fisco: na teologia jurídica, Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). A questão anterior residia nos “bens de mão morta”, o que pertence à Igreja não deve passar ao Estado.

Da similitude atemporal, extraem os defensores jurídicos do Estado a sua quase sacralidade. O Fisco, como Cristo, nunca morre. Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à prescrição. O sacratissimus fiscus, na língua dos juristas do rei, torna-se a alma do Estado. O fisco, como Cristo, também é onipresente, Fiscus ubique praesens. Esse hibridismo, tal como Kantorowicz o nomeia, liga a Igreja ao poder laico no instante do seu surgimento como potências oponentes, por volta do século XIII e seguintes. O ideal político e religioso, nos estertores da Idade Média, pode ser resumido no pensamento seguinte: a função do rei é fortalecer o sacerdócio, “apoiar a palavra dos padres pelo terror. Tal é a sua raison d’être (…) ele ajuda os sacerdotes inculcando o medo nos governados.” “Sem medo (…) nenhum governo pode existir. O medo aparece como um estímulo ao povo para manter a lei”.13

Quando cresceram as pretensões dos governantes laicos, o Estado tornou-se imitador e concorrente da Igreja. Esta, por sua vez, manteve as tentativas inanes de garantir para si os dois mandos, o espiritual e o terrestre. As imitações e as lutas pelas prerrogativas de mando legítimo definiram, contra o corpus mysticum da Igreja o corpus reipublicae mysticum. Cada uma das coletividades é entendida como persona repraesentata ou ficta.14 Foi dado o passo para se pensar as questões políticas do Estado de modo institucional e não mais pelo carisma do governante em seu vínculo direto com o divino. Medo e proteção formam vocábulos que se exigem mutuamente. As imagens da Virgem da Misericórdia, signos da soberania eclesiástica, mostram o quanto o poder legítimo protege os súditos até a hora da morte. Com a secularização do Estado e da cultura, o ideal do Corpo místico da Igreja passa à República laica, mantendo o elo dos cidadãos sob o soberano. Cada indivíduo só tem segurança se estiver integrado no corpo estatal. Mas o Estado encontra na Igreja e nos mandamentos hierocráticos os limites para a sua perfeita auto- suficiência. Os que pertencem à república e seguem uma fé religiosa, seja ela romana ou protestante, dividem a sua consciência entre o dever para com o príncipe laico e para com a Igreja. Weber analisa este ponto de maneira perfeita: “Não se pode extirpar uma hierarquia bem desenvolvida, com uma dogmática fixa e acima de tudo com um sistema educativo bem elaborado. Seu poder se baseia na sentença (…) de que ‘Deus deve ser mais obedecido que os homens’ o limite mais antigo até a época da grande revolução puritana e dos ‘direitos do homem’, a barreira mais sólida a todo poder político” (WEBER, 1969, II, p. 904- 5).
Com Hobbes, a “barreira” é corroída de alto a baixo, visto que o cidadão perde o direito de seguir a sua consciência religiosa contra o Estado. A causa deste veto encontra-se na ficção do pacto no qual todos os indivíduos contratam a sujeição comum ao soberano, sendo autores do poder. Ir contra este último significa destroçar a si mesmo, o que é ilógico na óptica assumida pelo filósofo.

Constituído o Estado, a personalidade inteira do povo passa sem reserva alguma à do soberano, seja esta a personalidade física de um indivíduo, seja ela a personalidade artificial de uma Assembléia. Só nesta última e por esta última o povo é pessoa, enquanto é apenas uma simples multidão sem ela e, portanto, não pode ser pensado como sujeito de qualquer direito diante do soberano (GIERKE, 1974, p. 85).

Os cidadãos, uma vez definido o pacto, não têm direito contra o soberano. A principal renúncia suposta no pacto determina que eles não possuem direito de professar publicamente, como lhes interessa, a sua religião e tudo o que ela implica, da ética à ciência. O Estado proposto por Hobbes não surge do poder divino, mas é fabricado pela soma das forças humanas. O filósofo traduziu a

Guerra do Peloponeso. No monumento escrito por Tucídides, ele encontrou o episódio suposto nas modernas teorizações sobre a raison d’État, o diálogo ocorrido em Melos (Livro V, 84 e seguintes). Melos, colônia de Esparta, desejava a neutralidade na luta entre as potências gregas. Empurrada pelos atenienses a ilha entrou na guerra. No texto, os embaixadores de Atenas iniciam o diálogo. Eles notam que os líderes de Melos evitaram a multidão no debate, optaram pelo Conselho com receio do poder retórico dos atenienses. Estes propõem aos sitiados questões que deveriam ser respondidas (de modo afirmativo ou negativo) imediatamente. A “sugestão” é uma espécie de luta cujas armas são frases. Os de Melos notam a armadilha da proposta: de nada adianta vencer os atenienses em palavras e, portanto, em direito, se o verbo dos atacantes apenas prolonga, na verdade, a eficácia das armas físicas. Deste modo, os atenienses não são partes no julgamento, mas juízes. O debate simulado desvela-se como interrogatório cuja pergunta única é um ultimato: Melos deve render-se e servir Atenas. 

Os atenienses respondem aos sitiados exibindo-lhes a urgência de sua salvação: ou discutem os termos, ou os invasores abandonam o “debate”. Aceita a condição, Melos escuta o discurso mais duro e franco sobre a razão de Estado na história do Ocidente: “Não usaremos belas frases, não diremos que nosso domínio é justo (…) de sua parte, não digam que recusaram o nosso lado porque são colonos de Esparta ou porque lhes fizemos algum mal”. Os atenienses exigem que o discurso trate de coisas positivas: “sabemos e vocês sabem tanto quanto nós, que a justiça só é levada em conta quando a necessidade é igual. Sempre que uns possuem mais força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se nestas condições, como podem”. Michael Walzer (2000) indica que não apenas Melos estava em necessidade, mas também Atenas, que precisava aumentar seu império ou perderia as terras já dominadas. A neutralidade de Melos evidenciaria fraqueza ateniense para os dominados, erguendo rebeliões contra o império. Walzer

comenta: para os Estados em guerra, a lei é dominar ou submeter-se. Por necessidade de natureza (o termo é usado por Hobbes para descrever a guerra de todos contra todos) os coletivos precisam aumentar o mais possível suas terras e poder.15 Melos prefere a liberdade, apesar da absoluta inferioridade e de suas chances serem restritas à “salvação” ateniense (com o servilismo) ou à morte. Após ouvir que o argumento da “justiça” não seria levado em conta, Melos insiste: a luta será vencida por Fortuna ou Força. Ela têm menor força, “mas em se tratando da Fortuna não seremos inferiores, pois temos os deuses de nosso lado, somos inocentes em luta contra homens injustos. Quanto à Força, o que nos falta será suprido por nossa liga com os espartanos os quais, por necessidade, são obrigados, pelos laços de sangue ou pela sua honra, a nos defender. Eis porque estamos confiantes”. A resposta de Atenas mostra a secularização da cultura. “Quanto ao favor divino, nós o esperamos como vocês; porque não fazemos ou pedimos nada contrário ao que decretou a humanidade (…) os deuses seguem a opinião comum e os homens pensam que alguns, por necessidade de natureza, reinam em toda parte, segundo a força que tiverem. Não fizemos tal lei e nem somos os primeiros a usá-la; mas a encontramos e a deixaremos para a posteridade, para sempre. Assim a usamos, sabendo que vocês também a usariam, e outros que tivessem o mesmo poder que possuímos.” Os deuses não entram em conta, pois eles mesmos decidem as suas lutas pelo critério do mais poderoso. Quanto aos espartanos, ao sangue, à honra, os de Melos são abençoados pelos atenienses pelas suas “mentes ingênuas”, mas loucas. Sem o interesse próprio e a força, nada é feito por um povo em favor de outro. Valores são vazios sem poder. Melos não se rende, os atenienses atacam, Esparta não ajuda os sitiados. Em 416 a.C., após meses de luta, alguns cidadãos entregam a cidade. Os atenienses matam todos os homens em idade militar e vendem como escravas as mulheres e crianças, povoam eles mesmos a cidade, para onde remetem 500 colonos. Os termos usados por Tucídides e traduzidos por Hobbes com muita atenção, consistem nos mesmos que o Renascimento sublinha na luta pelo domínio e instauração do poder. Αν􏰀γκη (força, necessidade) e Τúχη (Fortuna, providência, destino) espalham-se pelos textos de Maquiavel e dos seus contemporâneos. Hobbes os conhecia.16 

A natureza é o reino da força e da necessidade. Quando se passa ao setor religioso surge a Fortuna para consolar os fracos e assegurar os fortes. Mas nada no mundo natural garante algo como o valor, a justiça. O mesmo ocorre em Tucídides no âmbito religioso, porque os deuses vivem “em estado de natureza” onde o mais forte domina. A guerra do Peloponeso ocorre entre

potências estatais e Melos, unida a Esparta, deve submeter-se a Atenas ou morrer. Masespartanos e atenienses integram a Grécia, de maneira que suas batalhas podem ser ditasfratricidas. Elas surgem num terreno indeciso entre o plano internacional e nacional. O resultado do fato bélico foi desastroso para toda a Grécia, não apenas para as duas principais cidades. A sugestão trazida ao filósofo inglês, no texto de Tucídides, encontra-se na excessiva busca de poder de Atenas e de Esparta, na guerra imperial e generalizada, na fraqueza final dos poderes gregos. Para que um poder de Estado impeça a matança dos indivíduos e fortaleça uma determinada comunidade, colocando-a em condições de lutar com força considerável contra outros agrupamentos humanos, é preciso que todos os indivíduos e grupos aceitem abrir mão de sua pleonexia.17 Hobbes investe contra o universo cristão onde a doutrina afirma que a natureza participa da sobre-natureza divina, fundamentando a dualidade dos poderes, o secular e o religioso.18 Se a lei natural é participação dos homens na lei eterna, Deus é a base do poder e o soberano secular encontra limites na lei natural entendida religiosamente. Como indica E. Troeltsch, no entanto, temos aí “uma concepção orgânica, conservadora e patriarcal da Lei da Natureza, a qual está sob a proteção da Igreja e só é inteiramente inteligível para a razão cristã iluminada” (TROELTSCH, 1960, p. 305). 

Hobbes procura uma inteligibilidade da lei natural em algo anterior e mais universal do que o cristianismo da Idade Média.19 Se o poder mortífero é de todos contra todos, é necessário encontrar uma saída que não apele para a consciência iluminada de alguns apenas, sobretudo quando as guerras e rebeliões mais sangrentas ocorrem entre cristãos. A única saída encontra-se fora da salvação oferecida pelo “direito natural” ao modo da Igreja Católica ou das formas protestantes. Se os homens querem atenuar a guerra e a morte, eles precisam aprender com o episódio de Melos. É preciso agir e pensar nos limites do feasible (factível, exeqüível, praticável). Mas o factível pode ser visto na óptica do mais forte (no caso de Melos, os atenienses) e do mais fraco. Se o resultado fosse sempre este, não haveria solução para a guerra de todos contra todos. Como todos estão sujeitos à necessidade e à lei da maior força (mesmo os atenienses) resulta que nenhum poderoso está seguro de que um mais forte não surgirá, aniquilando seu poder. O pacto reúne todos e cada um, não importando o grau de força trazido pelos indivíduos tomados um a um. Se todos sujeitam-se a todos, os que se rebelarem e quiseram um retorno ao status quo anterior ao pacto serão esmagados, mesmo que sejam muito fortes. E agora temos a imagem célebre do Leviatã hobbesiano para definir o nexo entre as pessoas e o coletivo. Vejamos um detalhe da figura monstruosa que reúne a massa, no monumento erguido por Hobbes ao poder:

Para alcançar a novidade política e jurídica do pensamento hobbesiano e o seu contraste com as teorias citadas acima sobre o poder, sobretudo a de Bracton (tendo-se em conta as imagens do mando teológico-político exemplificadas na Virgem da Misericórdia) notemos que no Leviatã os seres humanos integram o corpo do gigante sem nenhum intervalo, dando-se a unidade absoluta das partes no corpo do Estado. No caso da Virgem, percebe-se não apenas a diferença do tamanho (Maria imensa, os súditos pequenos) mas os corpos da Virgem e o dos protegidos são distintos, não se fundem. Esta distância corresponde à transcendência do poder religioso face aos dominados. Maria intercede pelos homens à distância, seu corpo não é formado por eles.

Ela, por sua vez, não é igual ao divino, pois tem origem humana. Paradoxo semelhante, como vimos acima, dá-se com o soberano teológico-político: o rei nunca está no mesmo plano do divino. Sua legitimidade reside no fato de que o seu governo liga o divino ao Estado, o que não diviniza este último. A sua fragilidade vem da forma finita refletida no poder perecível e falível. O rei nunca possui certeza absoluta da vontade divina. Ele recebe apenas sinais dela e semelhantes marcas vêm do exterior celeste ao mundo humano. Assim, em Salisbury, o signo “mostra a si mesmo aos sentidos e mostra à alma algo fora dela e que é diferente daquilo que ele mesmo (signo) é”. Existem signos “que nada mostram aos sentidos corporais, mas freqüentemente inculcam na alma o verdadeiro e o falso, mediante a essência de qualquer coisa, ou sem a

dificuldade do meio”. Os signos, portanto, só adquirem sentido com a semântica: “se uma palavra possui três ou quatro significados, chama-se polivalente (…) algo possui tantos significados quantas semelhanças com outras tiver; mas de tal modo que o maior nunca seja signo do menor, uma vez que os signos sempre são menores” (SALISBURY, 1984, III, cap. 14). A hierarquia semântica determina os limites dos signos e fornece a base para Salisbury defender a soberania eclesiástica sobre o príncipe laico: o sacerdócio é signo direto do divino, o governo civil é signo em escala menor. O signo só pode ser lido quando aberto para a transcendência divina. Ele não remete para o registro humano fechado em si mesmo e auto-suficiente. O soberano hobbesiano — continuando as reflexões sobre os deuses no episódio de Melos — ao contrário do ensinado por Salisbury, não depende de nenhuma transcendência porque expressa de imediato a vontade dos que o constituem e conhece diretamente a vontade coletiva. Não existe intervalo entre

cada um dos que assumiram o pacto de submissão e o coletivo. E se por acaso surgir alguma fissura entre os dois elementos, o indivíduo que a produz é réu de traição a si mesmo, porque deseja o pacto. O poder é imanente em termos absolutos, o que simplifica ou mesmo suspende a questão da legitimidade.20 O Leviatã protege os indivíduos deles mesmos. Ou cada um aceita integrar-se nele, ou assume a guerra primitiva que põe a sua própria existência em risco perene.

Cada um, a partir do pacto de submissão, sente e pensa como um “nós” que domina as veleidades de autonomia e independência individual. O Leviatã diverge do poder teológico-político e das representações alheias à cultura ocidental e cristã. Vejamos a imagem seguinte, recolhida pelo padre Athanasius Kircher, jesuíta dos mais importantes para a teoria e a prática do segredo de

Estado na modernidade: domina as veleidades de autonomia e independência individual. O Leviatã diverge do poder teológico-político e das representações alheias à cultura ocidental e cristã. Vejamos a imagem seguinte, recolhida pelo padre Athanasius Kircher, jesuíta dos mais importantes para a teoria e a prática do segredo de Estado na modernidade:

[Illustrations de China monumentis qua sacris qua profanis, nec non variis naturae et artis spectaculis...] / [Non identifié] ; Le Père Athanasius Kircher, aut. du texte - 44
Ídolo chinês FE. In: KIRCHER, Athanasius. China monumentis, qua sacris quà profanis [...] illustrata. Amsterdam: Jacobum à Meurs, 1667. p. 177. 21
Entre as figuras muito próximas — Leviatã e Ídolo chinês — notamos que embora as duas imagens tenham uma cabeça elevada, ao coletivo compacto dos homens, no primeiro, corresponde apenas a wilderness, no segundo. O Leviatã não se instala na transcendência como o poder teológico-político e nem existe apenas no interior da natureza. Ele é um fato humano finito, “Deus mortal”. Com ele a natureza é submetida ao homem coletivo e Deus segue para o reino das trevas. Voltemos à imagem que representa o Leviatã. Seu corpo é formado pelos corpos dos cidadãos. Sem cada um deles, o Estado inexiste. O coletivo sintetizado na estrutura somática monstruosa tem na cabeça a coroa do reino (atributo de Jesus e Maria, outrora concedido condicionalmente aos reis pela Igreja, quando ela os sagrava e lhes aplicava os santos óleos) e nas mãos uma espada e um báculo episcopal. A luta anterior pela soberania legítima, no fim da

Idade Média, teve como emblema os dois sinais do poder. Tanto o rei quanto o papa disputaram as almas e os corpos, exigiram a espada para a sua soberania que, por sua vez, recebeu o nome jurídico de plenitudo potestatis, superlativa auctoritas, plenaria potestas, summa potestas, etc. Com a premissa de que a sociedade seria inteiramente cristã — a Respublica christiana — o coletivo resumia-se à comunhão religiosa, em especial nos cargos dirigentes. Como os reis cristãos tinham dignidade eclesiástica, sobretudo após instaurada a sagração dos reis franceses em 751 por Pepino o Breve — cerimônia que se espalhou pela Europa — eles deveriam seguir as ordens do papa. A sagração deixava bem clara esta dependência do rei ao pontífice nas próprias roupas que ele envergava cerimonialmente: a túnica do subdiácono, a dalmática do diácono

e a casula do presbítero. O rei estava na Igreja, mas não era superior ao Corpus mysticum. Ele recebia um anel semelhante ao episcopal, mas isto não significava que seu elo com a Ecclesia era semelhante ao do bispo e do papa. Estes últimos, na ordenação, tornavam-se esposos da comunidade, o que explica a fórmula segundo a qual “o bispo está na Igreja e a Igreja está no bispo”. Grandes pensadores na Idade Média e começo da Moderna, no entanto, apontavam a plenitudo potestatis em proveito do poder laico. Como em Guilherme de Ockham: para ele o Estado é legítimo quando aceito pelos cidadãos. A Igreja é infalível em matéria de fé, constituindo a multidão dos fiéis que se retoma do Antigo Testamento aos últimos tempos. Cabe ao príncipe leigo reprimir fisicamente a heresia e defender a Igreja. Mas ele nega os plenos poderes do pontífice nas duas ordens, secular e religiosa. Já Cristo disse: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A Igreja, então é apenas a universitas fidelium não implicando poderes temporais para o papa (OCKHAM, 1999). Com as reivindicações de soberania espiritual do rei acentuou-se a imagem de seu casamento com o Estado, inter principem et rempublicam matrimonium morale et spirituale contrahitur et politicum, no dizer de Lucas de Penna. Tal enlace mimetiza o “matrimônio” do bispo com a Igreja, o que faz Lucca de Penna insinuar, citando Sêneca, que no rei respira a alma da res publica enquanto esta última é o seu corpo (KANTOROWICZ, 1970, p. 214 et seq.).22 Temos a gênese do Estado enquanto corpo místico do rei. Este último não se integra mais na Igreja, sob o papa, mas é a Igreja que a ele seria subordinada. O soberano laico tem o direito de ostentar o báculo porque o uso exclusivo e legítimo da espada ele o conquistara, contra o papa. Ainda em termos religiosos, nota-se a ambição de que o rei seja um com a Igreja, um com o Estado. O signo da plenitudo potestatis é a espada.

A metáfora ainda ocorre no democrático Spinoza. Se não existem condições para que a
democracia impere, que o rei seja “como a alma do Estado, enquanto o Conselho
servirá a esta alma como se dela fosse o corpo e os sentidos exteriores; ele fará o reiconhecer a situação do Estado e será o instrumento para executar o que for
reconhecido como o melhor” (Tratado político, VII, 19). Existe um problema na tradução
do trecho para a nossa língua. O termo latino é mens: “et absolute rex censendus est
veluti civitatis mens, hoc autem concilium mentis sensus externi, ceu civitatis corpus,per quod mens civitatis statum concipit et per quod mens id agit, quod sibi optimum
esse decernit”. Mas traduzir mens por “intelecto”, “mente”, etc. pode trazer contra-
sensos. Cf. MOREAU, Pierre-François. Le vocabulaire psychologique de Spinoza et le
problème de sa traduction. Disponível em: . Acesso em: 02 fev. 2008. Prefiro manter a palavra “alma”,
especialmente porque ela remete para a tradição do absolutismo analisada nas
páginas deste artigo. O assunto pode conduzir a um debate saudável sobre o
spinozismo, mas seja mens, seja anima, o ponto essencial é que na imagem o rei é a
consciência que depende, para saber o que se passa no Estado e no Exterior, do “corpo”
representado pelo Conselho.
20

aproximar-se perigosamente (na óptica da Igreja) do báculo e tem a espada nas
mãos, usando-a contra a Igreja, condição de sobrevivência é criticar o seu poder
absoluto. Na Contra-Reforma esta tarefa foi bem executada por Roberto
Bellarmino e não é sem motivos que Hobbes estabelece com aquele cardeal
uma polêmica cuidadosa e virulenta.23 Com Hobbes, o corpo místico eclesiástico
é atacado porque deve ser submeter-se ao corpo da república, cujo soberano
detém as duas “espadas”, a espiritual e a material.
A figura do Leviatã ameaça o imaginário teológico-político e defende o
predomínio da laicidade sobre a hierarquia religiosa. Esta revolução no
pensamento tenta apagar antigas doutrinas católicas. Em Tomás de Aquino o
universo desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e
passa aos leigos poderosos para atingir os leigos comuns, o que define a
espinha dorsal do catolicismo político. Essa doutrina neoplatônica, vem de
Dionísio, o Pseudo-Areopagita. Deus encontra-se além dos sentidos e apenas por
intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bênçãos. A hierarquia
encontra-se no próprio ser. Segundo Paul Tillich, em Dionísio o “sistema sagrado
possui graus referidos ao saber e à eficácia (…). Isto caracteriza o pensamento
católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também
epistemológico; existem graus no ser e no conhecimento”. Há uma via para cima
e para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e fixo. Deus está
além dos nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa
“indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste
é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d’Ele, mais a entidade é
luminosa, quanto mais distante, mais escura. Note-se que reside nesta doutrina
a tese de Inocêncio III sobre o Papa-Sol e o Rei-Lua. Os homens não podem
perceber a luz divina, porque ela os cega. Os intermediários angélicos são o
caminho para o fulgor Eterno. É impossível quebrar a escala hierárquica dos
anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo
23

“Ambos estão no poder da Igreja, a espada espiritual e a material. Mas a última deve
ser usada para a Igreja, a primeira por ela”. Bonifácio VIII, Bula Unam sanctam (1302),
cf. Bettenson (1947, p. 162-3).
21

pensamento político sobre a teodicéia: “Por que, se Deus fez todas as coisas, ele
não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent
omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada
coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa.
Da hierarquia celeste, segue-se a terrestre e política. Repercutem em
Aquino os escritos de Dionísio, o Pseudo-Areopagita: “um soldado está sujeito ao
seu rei e ao seu chefe de exército; em sua vontade ele pode buscar o bem de
seu chefe, e não o de seu rei, ou o contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do
rei, a vontade do soldado será boa se recusar a vontade do chefe em favor da
real; ela será ao contrário má, se obedece a do chefe contra a do rei, pois a
ordem de um princípio inferior depende da ordem do princípio superior.” O
universo, dos anjos aos governantes, obedece a hierarquia. “A bondade da
criação não seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns
seres são melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam
realizados e nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência
sobre as outras. Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem
feita de distinção e disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos
seres arrastaria a supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que
o outro pelas próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como
o vivente e o inanimado e o racional do não racional”. A escala continua na
soberania política: “a perfeição para todo governo é prover os seus súditos no
que diz respeito à sua natureza, tal é a noção mesma de justiça nos governos.
Do mesmo modo, pois, que para um chefe da cidade, opor-se — se não for
apenas de maneira momentânea em função de certa necessidade — a que os
súditos cumpram sua tarefa, seria contrário ao sentido de um governo humano,
do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do governo divino.”
Horst Bredekamp, estudioso do fascínio pela máquina que assalta a alma
ocidental, escreveu uma bela análise sobre o Leviatã enquanto imagem
inaugural do poder não hierárquico e mecânico no qual se integram os
indivíduos num coletivo puramente finito, contra a transcendência teológico-
política. No livro Estratégias visuais de Thomas Hobbes: o Leviatã como
22

arquétipo do estado moderno (BREDEKAMP, 1996), ele discute a produção
imagética do Estado e a imagem do célebre frontispício. O autor expõe a gênese
das imagens utilizadas pelo filósofo e as suas fontes nas teorias ópticas, na
retórica, e nas tradições místicas, elementos que integram a imagem do Estado
enquanto força que domina os indivíduos. Seu mote encontra-se na segunda
parte do Leviatã: “A causa final, fim, ou desígnio dos homens (que naturalmente
amam a liberdade e o domínio sobre os outros) na introdução daquele controle
sobre si mesmos, no qual os observamos viver nas repúblicas, eles podem
prever a sua própria preservação e uma vida com maior contentamento; ou seja,
colocando-se eles fora da condição miserável da guerra que segue, conforme
mostrado, as paixões naturais dos homens quando não existe um poder visível
para mantê-los no respeito, e prendê-los pelo medo da punição pela ação de
seus covenants, e observação daquelas leis da natureza postas nos capítulos 14
e 15” (Leviatã, Segunda Parte, Of commonwealth).
Hobbes, argumenta Bredekamp, inicia a moderna teoria do Estado a
partir da óptica, matéria que estudou durante anos e inseriu em sua obra
principal com figuras tão cuidadosamente escolhidas que só podem ser o
resultado de estratégias visuais. O autor também observa o De corpore (1655),
onde Hobbes desenvolve sua teoria das marcas e sinais. As marcas ajudam a
memória, enquanto os sinais definem-se por sua publicidade. Eles comunicam
assuntos e podem dar início a ações. Bredekamp dá como exemplo de um sinal
público o colapso das Torres Gêmeas, por ataque terrorista, no 11 de setembro.
O sinal do Estado encontra-se na sua unidade. O contrato que o forma é mais
que um acordo, pois trata-se de uma união real de pessoas (in personam unam
vere omnium unio). Com ele, as vontades são reduzidas a uma só (ut unus homo
vel unus coetus Personam great uniuscujusque singularis, utque unusquique
auctorem se fateatur esse actionum omnium, quas egerit Persona illa, ejusque
voluntati et judicio voluntatem suam submitteret). Vimos acima que ocorreu uma
transposição, embora não totalmente bem-sucedida, do “casamento” entre o
bispo e Igreja para o “matrimônio” entre o rei e o Estado. “O bispo está na Igreja
e a Igreja está no bispo” é fórmula que pode, pela mímica indicada por
23

Kantorowicz, traduzir a unidade do rei e da república. Ao dissolver os laços do
soberano com a transcendência, Hobbes desloca o “matrimônio” que gera o
poder para a multidão dos indivíduos unidos: “O Estado é uma pessoa de cujas
ações um grande número de homens fizeram a si mesmos autores por
consentimento mútuo um com outro, com a finalidade de que ele pudesse usar
o poder de todos eles para a sua própria paz e defesa comum”. Hobbes também
imagina a república como um corpo compacto que se forma da multidão de
indivíduos, mas da qual o soberano forma a alma, a vontade. O Leviatã, soma
dos corpos e alma trazida pelo soberano, potest velle et volle.24 Quando o Estado
se forma, desaparece o direito de consciência, reconhecido pela Igreja
justamente para que o cidadão pudesse analisar o poder estabelecido e decidir,
sob orientação clerical, sobre a sua legitimidade.
24

Cf. GIERKE, 1960, p. 267-68. A temática da alma no corpo político é essencial nas
filosofias contrárias ao poder religioso. Se Deus nada pode fazer na gênese da
república, a “alma” desta última só pode ser imanente ao corpo reunido pelo pacto. Ela
estará no soberano, seja ele um indivíduo, seja ele uma assembléia. Para o mando
teológico-político, no entanto, a alma da república vem do exterior, do ser divino,
representado pela Igreja. No catolicismo esta certeza é conditio sine qua non de sua
própria existência e sem ela a Igreja teria desaparecido. Como afirma a Immortale Dei:
“È necessario che tra le due potestà esista una certa coordinazione, la quale viene
giustamente paragonata a quella che collega l’anima e il corpo nell’uomo (…). È
davvero una grande ingiustizia e una grande sconsideratezza il volere sottoporre la
Chiesa all’autorità civile nell’adempimento dei suoi doveri. Con ciò l’ordine viene
sovvertito, dal momento che si antepongono le cose naturali alle soprannaturali: si
distrugge, o almeno si sminuisce assai la dovizia di beni dei quali, se non ostacolata, a
chiesa colmerebbe la vita terrena; per di più si apre la via ad ostilità e conflitti, e fin
troppo spesso gli eventi hanno dimostrato quanto danno ciò porti sia alla società civile,
sia a quella religiosa”.

Notas
1 Para uma análise da experiência temporal da Igreja na Idade Média, cf. Le Goff (1977).

2 Paris e Chartres, onde a Virgem foi cultuada em santuários, antes do cristianismo eram
centros onde se venerava a deusa Ísis, cf. Baltrušaitis (1967).
3 Cf. Jean de Salisbury (1984) e veja-se também meu “Lembra-te de que és homem”: governantes e juízes no Policraticus de Jean Salisbury. In: ROMANO, Roberto. O caldeirão de Medéia. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 329 e seguintes. Muito importante é a Vida de Becket escrita por Salisbury, na qual encontra-se o pensamento eclesiástico sobre a soberania legítima. Há uma edição italiana excelente: SALISBURY, Giovanni di. Anselmo e Becket: due vite. a cura de Inos Biffi. Milano: Jaca Book, 1990.
4 Por exemplo: “Pôs debaixo dos Seus pés todas as coisas e constituiu-O Cabeça de toda
a Igreja, que é Seu Corpo e o complemento Daquele que cumpre tudo em todos” (Efésios 1, 23).
5 A questão do tiranicídio foi tratada por mim ao apresentar as teses de Salisbury em “Lembra-te que és homem”: governantes e juízes no Policraticus de Jean Salisbury”, cf. Romano (2001).

6 De officiis, Livro III, 32: “Nulla est enim societas nobis cum tyrannis et potius summa distractio est, neque est contra naturam spoliare eum, si possis, quem est honestum necare, atque hoc omne genus pestiferum atque impium ex hominum communitate exterminandum est. Etenim, ut membra quaedam, si et ipsa sanguine et tamquam spiritu carere coeperunt et nocent reliquis partibus corporis, sic ista in figura hominis feritas et immanitas beluae a communi tamquam humanitate corporis segreganda est.” [ Nulo pois é o nosso companheirismo com o tirano, mas a mais amarga separação; e não é contrário à natureza roubar, se podemos, um homem que é
moralmente correto matar; toda aquela raça pestilenta deve ser arrancada do convívio humano. E isso deve ser feito por medidas apropriadas; porque, como alguns membros são amputados se mostram sinais de estarem sem sangue e vida, prejudicando a saúde das outras partes corporais, aquele monstro feroz e selvagem em forma de gente deve ser cortado do que podemos chamar o corpo comum da humanidade. ]
7 O tiranicídio assombrou os governos modernos e, nos dias atuais, renasce piorado pelo fanatismo que o acompanha desde sempre, com o terror agenciado tecnologicamente. As matanças terroristas, em todas as seitas religiosas, usam a desculpa blasfema da tirania a ser abatida pela “justiça divina”. Se a religião, encarnada pelos fiéis e sacerdotes, é a alma do Estado, no caso do tiranicídio pode-se adiantar que a alma está mortalmente enferma de ódio ao gênero humano. Seria importante recolher os casos concretos e analisá-los um a um, para verificar se todos partilham uma essência ou se eles se distinguem. As mortes dos reis modernos e as dos cidadãos que seguem pelas ruas de hoje e, de repente, são aniquilados, se equivalem? O dossier, embora alentado, ainda não foi definido, cf. Mousnier (1964), Lutaud (1973) e Arasse (1988).
8) Sobre a figura monstruosa do governante acusado de tirania, cf. Knoppers & Landes

(2004), em cuja coletânea três ensaios apresentam interesse para o tema: Burke, Peter: “Frontiers of the monstrous: perceiving national characters in early modern Europe” (p. 25-39); Cressy, David: “Lamentable, strange, and wonderful: headless monsters in the English Revolution” (p. 40-63); e o ensaio de Timothy Hampton: “Signs of monstrosity: the rhetoric of description and the limits of allegory in Rabelais and Montaigne” (p. 179-199). No caso da figura respeitável do governante laico, cf. vários autores, em Hepp & Bertaud (1985)
9 Ainda na Concordata com Mussolini, Pio XI defende a “absoluta superioridade da Igreja” e de sua soberania em relação ao poder laico soberano. Cf. Carta de Pio XI ao Cardeal Gasparri (1929), em Utz (1973, v. III, p. 2354).
10 A dominação legítima, segundo Weber, define-se por “um estado de coisas em que uma vontade manifesta (mandato) do ‘dominador’ ou ‘dominadores’ influi sobre os atos de outros (dominado ou dominados) de tal modo que, em grau socialmente relevante, esses atos tenham lugar como se os dominados tivessem adotado por si mesmos e enquanto máximas de seu agir, o conteúdo do mandato (obediência)” (WEBER, 1972, p. 28; WEBER, 1969, p. 43).

11 Jurista do século XIII, que viveu sob o Rei João e morreu sob Henrique III, na aurora da
Carta Magna. Seu escrito, Laws and customs of England (1240 – 1260), constitui uma
enciclopédia jurídica fundamental para o conhecimento do direito na Inglaterra de seu
tempo.
12 Citado por Ernst Kantorowicz (1970, p. 155). Este passo de minhas análises baseia-se
naquele autor.
13 Para o debate jurídico entre Igreja e poder laico, na Idade Média e inícios da urbanização que assegurou o Estado nacional e o Estado cidade, cf. o clássico de W. Ullmann (1955), onde, às p. 29-31, trata do medo e da função do rei.
14 Sobre isto, cf. Watt (1965). Para os choques entre os poderes, cf. Tellenbach (1993) e
Robinson (1990).
15 Este ponto ainda é lido em Fichte, nas suas considerações sobre Maquiavel. São as duas regras da defesa nacional, ambas em termos éticos e políticos, mas definidas pela prudência máxima: 1) O vizinho, a menos que ele seja constrangido a nos considerar como seu aliado natural contra uma outra potência temível para nós dois, está prestes continuamente, na primeira ocasião, desde que ele possa fazê-lo com segurança, a crescer às nossas custas. É preciso que ele faça assim, se ele for prudente, e não pode negligenciar isso, mesmo que fosse nosso irmão. 2) Não basta defender o nosso território mas é preciso conservar imperturbavelmente os olhos abertos sobre tudo o que pode influenciar a nossa situação, e não suportar nunca que algo mude em nossa desvantagem no interior dos limites desta influência, e não hesitar um átimo se pudermos mudar as coisas em nossa vantagem; pois devemos estar certos de que o outro fará o mesmo desde que possa, e se de nosso lado hesitarmos e deixarmos a ele a iniciativa. Quem não cresce, diminui quando os outros crescem” (FICHTE, 1981, p. 197 et seq.).
16 Para os nexos entre Hobbes e Maquiavel, cf. Hobbes (1995).
17 De cive, III, XIV: “Como necessário à conservação de cada homem que ele partilhe alguns direitos seus, não é menos necessário para a mesma conservação que ele retenha alguns outros, como o direito à proteção corporal, livre uso do ar, água, e tudo o que é necessário para a vida. Como muitos direitos comuns são retidos dos que entram num estado pacífico, e muitos direitos peculiares são adquiridos, eleva-se este nono ditado da lei natural, segundo o qual todos os direitos que algum homem exija para si mesmo, ele deve garantir como devido aos outros. Caso contrário ele frustra a igualdade reconhecida no artigo anterior. Pois de que outra maneira é reconhecida uma igualdade de pessoas na produção da sociedade (in the making up of society) senão no atributo de igual Direito e Poder a quem não teria outra razão para entrar em sociedade? Atribuir coisas iguais a iguais é o mesmo que dar coisas proporcionais a
proporcionais. A observância desta Lei é chamada modéstia, a violação pleonexia, e os desobedientes são chamados em latim Immodici et immodesti”.
18 A fórmula desta doutrina foi produzida por Tomás de Aquino: “…Participatio legis aeternae in rationali creatura Lex Naturalis dicitur. Unde patet quod Lex naturalis nihil aliud est, quam participatio legis aeternae in rationali creatura”. Summa, qu. 91a.3.
19 Hobbes “(…) odiava a revolução, porque ela perturbava a ordem e o bem-estar burguês. A este ódio se acrescentava o da Igreja e do fardo que representava a crença dogmática nos milagres, segundo motivo que o fazia venerar a onipotência do Estado. Já existia nele um partidário das luzes que buscava refúgio no Estado, persuadido de que, mesmo se fosse permitido ao Estado todo poder sobre a Igreja e o culto religioso, ele não prejudicaria a liberdade de pensamento, pois a obediência exterior dos cidadãos lhe bastaria perfeitamente” (MEINECKE, 1973, p. 196).
20 “O Estado hobbesiano existe, e não existe, somente a partir do momento e na medida em que ele subsume não apenas todos os poderes e os direitos dos indivíduos, mas ainda suas razões, ele é a Razão, hipostasiada de comum acordo pelas razões particulares para governá-las soberanamente (é a ratio totius civitatis do De cive, XV, 17), para lhes ditar suas leis e se lhes impor sem contestação possível como ‘árbitro’ supremo, ou melhor, este inventor e criador do direito que faltava tragicamente no estado de natureza” (TRIOMPHE, 1994, p. 327).

21 Cf. GODWIN, Joscelyn. Athanasius Kircher: a Renaissance man and the quest for lost knowledge. London: Thames and Hudson, 1979. p. 24.
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