sábado, 1 de dezembro de 2012

Do Blog Praça em Diagonal.

CARTA A SPINOZA DE NISE DA SILVEIRA

Meu caro Spinoza,

Estou lendo agora um livro sobre sua filosofia - Spinoza et l'imaginaire, que me tem agradado muito. Há inumeráveis livros eruditos sobre sua filosofia, tantas leituras diferentes, interpretações contraditórias de seu pensamento, as vezes até irritantes, que prefiro ir à fonte de seus próprios escritos, procurando entendê-los segundo minhas intuições. Permito-me essa liberdade, como permito-me a liberdade de escrever-lhe (...)
Voltando a Spinoza et l'imaginaire. A instância racional sempre foi glorificada, enquanto o imaginário atraía pouco os filósofos. Assim, fiquei feliz aprendendo com Michèle Bertrand, sempre baseada em seus textos, a estudar mais de perto seus pontos de vista sobre o imaginário. Esse tema me apaixona, pois está no próprio centro do trabalho que vem me ocupando quase a vida inteira.
Você distingue na dinâmica da psique, entre tantas outras coisas que seu olho de longo alcance percebeu, diferentes tipos de configuração de imagens.
Vou enumerá-las para tê-las bem presentes diante de mim:
a) Imagens configuradas em decorrência de perturbações do corpo, isto é, febre e outras alterações orgânicas; essas são imagens rudimentares e desconexas;
b) Imagens das coisas exteriores, percebidas graças às modificações que essas coisas exercem sobre o próprio corpo daquele que as observa. Portanto a percepção não é uma reprodução, um clichê da coisa percebida (...). Já aqui você faz um grande avanço, pois concede ao observador importância de relevo face aos objetos percebidos, coisa que ainda hoje muitos psicólogos não conseguem assimilar;
c) Idéias imaginativas ou imaginações do espírito, criadas por faculdade própria da psique: o poder de imaginar em toda liberdade, independente de imposições exteriores (...).
A elaboração do imaginário seria comparável à elaboração do pensamento racional, sem lhe ser, entretanto, idêntica; imaginário e pensamento racional possuindo cada um sua ordem e sua produtividade peculiares.
Surge então a pergunta: a linguagem do imaginário seria traduzível em termos racionais? Ou seria radicalmente heterogênea ao discurso racional?
Colocar esse problema parece-me muito atual para a psicologia e para a psiquiatria.
O imaginário seria perfeitamente legítimo, gozando da liberdade de encadear, segundo sua ordem própria, as imagens que configura. Apenas uma restrição você lhe faz: o espírito não erra pelo fato de imaginar, mas se assume nas imaginações como algo realmente existente no mundo exterior.
É aqui que vem se inserir muito daquilo que acontece nos estados do ser chamados loucura. Imagens visualizadas no mundo interno apresentam-se com força tão convincente, que dominam o indivíduo seja pelo terror ou pelo deslumbramento (...).
Caríssimo, é triste ver o que acontece em nossos dias quanto à posição face ao imaginário.
Na área das letras houve movimentos de revolta. Inconformados contra as maquinações racionais usadas pelo poder econômico durante a Primeira Guerra Mundial, poetas e escritores buscaram o imaginário. Lemos no Manifesto Surrealista de 1924: "Forçaras portas daquilo que era até então convencionado chamar hermetismo, fazendo tabula rasa da visão racional das coisas para substituí-las por conhecimento irracional e de certo modo primário dos objetos". Os surrealistas exageraram. Esse movimento foi válido na sua tentatíva compensatória, mas não poderia suster-se. As claridades do pensamento racional são muito belas. Não seriam abandonadas.
Evidentemente você jamais cogitou em substituir o real pelo imaginário. Creio que não fiz qualquer confusão! Compreendo que a ordem do imaginário e a alta ordem do pensamento racional são diferentes. E também que o imaginário não seria redutível a termos racionais. Aí está o nervo da questão.
Um grande mestre da psicologia do século xx, Sigmund Freud, influência comparável a Descartes, fez a cabeça das últimas gerações. Paradoxalmente, ele, que abriu as portas da psique inconsciente, onde se configuram as imagens primordiais, os rnitologemas, enfim o imaginário sob suas múltiplas formas, inclusive aquelas que nutrem as raízes das teorias científicas, mesmo as mais racionais, rebaixa os produtos da imaginação e dirige sua técnica no sentido de traduzí-lo em linguagem verbal. É que ele permaneceu fiel às concepções filosóficas do fim do século XX, racionalistas inveteradamente.
Daí decorre que, para os muitos seguidores de Freud, as imagens pintadas livremente nos hospitais psiquiátricos serviriam apenas de "médium" para associações verbais, unicamente essas capazes de trazer o material que acreditam esteja disfarçado, oculto nessas imagens até o nível consciente. Não constituíram em si mesmas e em sua ordenação peculiar uma linguagem independente. Deveriam sempre ser traduzidas e termos verbais.
Sem dúvida o imaginário estará mais próximo do inconsciente que a ordem racional. Mas coisa diferente será negar-lhe valor próprio, não vendo outra maneira de entendê-lo senão esfrangalhando as imagens até esvaziá-las de sua presente substância própria.
Trabalhando em hospital psiquiátrico, sempre procurei abrir aos doentes, que freqüentavam nossos ateliês de pintura e modelagem, oportunidade para livre expressão de seus processos imaginativos. Esses indivíduos habitam um mundo de imagens tão vivas, que se lhes afiguram absolutamente reais (...).
Muitas vezes me perguntaram se as imagens pintadas ou modeladas em nossos ateliês serviam como ponto de partida para insistirmos junto a seus autores, a fim de que as traduzissem em palavras. Nunca recorri a esse método.
Ao contrário, esforcei-me para estudar a linguagem do imaginário, seus arcaísmos, seus símbolos condensadores de intensos afetos não raro contraditórios. Isso me parecia menos difícil que transpor tais formas de expressão para nosso falar cotidiano.
Cada vez fui mais me convencendo que as imagens poderiam permitir vislumbrar-nos ocultas vivências sofridas para aqueles seres que se haviam afastado da nossa realidade, que tornaram "o invisível visível', ou quase. Começaríamos possivelmente a comunicarmo-nos.
Mas a ciência entrincheirada na ordem racional não aceita esses caminhos. Médicos e psicólogos passavam diante das imagens livres, nascidas do imaginário de homens e mulheres hospitalizados, sem lançar-lhes um golpe de vista, sequer por curiosidade. Entretanto, aquelas imagens eram retratos autênticos da atividade psíquica, que se havia configurado e haviam sido cuidadosamente dispostos sobre as paredes da sala do grupo de estudos do Museu de Imagens do Inconsciente com a intenção de ajudar possíveis estudiosos a enxergar o desdobramento, a peculiar ordenação de enigmas, do mundo interno. Mas nunca lhes despertava interesse pesquisar, nas longas séries de imagens, um fio subjacente, indo e vindo através de percursos labirínticos.
O ensino universitário, o clima geral de opinião de nossa época, impermeabilizara-os, coitados, para esse tipo de leitura.
Às vezes ficava triste, confesso a você.
(...) Felizmente tive a sorte de encontrar um grande mestre: C. G. Jung. Embora nem sempre ele estivesse de acordo com suas posições, caro Spinoza, Jung era um homem que, como você, navegava na contracorrente de seu tempo. Assim, divergindo dos seus contemporâneos, Jung atribui grande importância à imaginação, polarizando-a como atividade psíquica legítima. Atividade caracterizada pelo poder de configurar imagens. Imagens interiores que apreendem conteúdos profundos da vida psíquica, inacessível ao pensamento racional. Jung frisa ainda que a atividade imaginativa não tem em si caráter patológico, segundo lhe é de ordinário atribuído na área médica, pois se origina de dados objetivos inerentes aos básicos fundamentos da psique de todos os homens.
Agora, aqui em segredo, ouso supor que você tenha descoberto os poderes do imaginário e de suas possibilidades de organização, admirando, contemplando longamente as pinturas de seu contemporâneo Rembrandt. Decerto não lhe escapou que Rembrandt não se prendia à realidade objetiva segundo preferiam grandes mestres da pintura holandesa de sua época. Não estaria ele buscando no claro-escuro do imaginário segredos muito antigos, aspirações inefáveis?
Se numa tela célebre Rafael representou Platão com o indicador voltado para o alto e Aristóteles, o indicador voltado para a terra, Rembrandt exprimiu talvez coisas mais distantes, pintando Aristóteles com a mão respeitosamente pousada sobre a cabeça de um busto de Homero cego.
Ainda ontem à noite pensei muito em você, mergulhando na contemplação do Doutor Faustus, ou imóvel, diante do Filósofo com o livro aberto, olhos perdidos, muito além das letras impressas, tranqüilo, sentado ao lado de uma escada que se alonga em movimento espiralado não se sabe para onde.
Perdoe tanta ousadia.
A sua menor discípula,
Nise.