CARTA A SPINOZA DE NISE DA SILVEIRA
Meu caro Spinoza,
Estou lendo agora um livro sobre sua filosofia - Spinoza et l'imaginaire,
que me tem agradado muito. Há inumeráveis livros eruditos sobre sua
filosofia, tantas leituras diferentes, interpretações contraditórias de
seu pensamento, as vezes até irritantes, que prefiro ir à fonte de seus
próprios escritos, procurando entendê-los segundo minhas intuições.
Permito-me essa liberdade, como permito-me a liberdade de escrever-lhe
(...)
Voltando a Spinoza et l'imaginaire.
A instância racional sempre foi glorificada, enquanto o imaginário
atraía pouco os filósofos. Assim, fiquei feliz aprendendo com Michèle
Bertrand, sempre baseada em seus textos, a estudar mais de perto seus
pontos de vista sobre o imaginário. Esse tema me apaixona, pois está no
próprio centro do trabalho que vem me ocupando quase a vida inteira.
Você
distingue na dinâmica da psique, entre tantas outras coisas que seu
olho de longo alcance percebeu, diferentes tipos de configuração de
imagens.
Vou enumerá-las para tê-las bem presentes diante de mim:
a)
Imagens configuradas em decorrência de perturbações do corpo, isto é,
febre e outras alterações orgânicas; essas são imagens rudimentares e
desconexas;
b)
Imagens das coisas exteriores, percebidas graças às modificações que
essas coisas exercem sobre o próprio corpo daquele que as observa.
Portanto a percepção não é uma reprodução, um clichê da coisa percebida
(...). Já aqui você faz um grande avanço, pois concede ao observador
importância de relevo face aos objetos percebidos, coisa que ainda hoje
muitos psicólogos não conseguem assimilar;
c)
Idéias imaginativas ou imaginações do espírito, criadas por faculdade
própria da psique: o poder de imaginar em toda liberdade, independente
de imposições exteriores (...).
A
elaboração do imaginário seria comparável à elaboração do pensamento
racional, sem lhe ser, entretanto, idêntica; imaginário e pensamento
racional possuindo cada um sua ordem e sua produtividade peculiares.
Surge
então a pergunta: a linguagem do imaginário seria traduzível em termos
racionais? Ou seria radicalmente heterogênea ao discurso racional?
Colocar esse problema parece-me muito atual para a psicologia e para a psiquiatria.
O
imaginário seria perfeitamente legítimo, gozando da liberdade de
encadear, segundo sua ordem própria, as imagens que configura. Apenas
uma restrição você lhe faz: o espírito não erra pelo fato de imaginar,
mas se assume nas imaginações como algo realmente existente no mundo
exterior.
É
aqui que vem se inserir muito daquilo que acontece nos estados do ser
chamados loucura. Imagens visualizadas no mundo interno apresentam-se
com força tão convincente, que dominam o indivíduo seja pelo terror ou
pelo deslumbramento (...).
Caríssimo, é triste ver o que acontece em nossos dias quanto à posição face ao imaginário.
Na
área das letras houve movimentos de revolta. Inconformados contra as
maquinações racionais usadas pelo poder econômico durante a Primeira
Guerra Mundial, poetas e escritores buscaram o imaginário. Lemos no
Manifesto Surrealista de 1924: "Forçaras portas daquilo que era até
então convencionado chamar hermetismo, fazendo tabula rasa da visão
racional das coisas para substituí-las por conhecimento irracional e de
certo modo primário dos objetos". Os surrealistas exageraram. Esse
movimento foi válido na sua tentatíva compensatória, mas não poderia
suster-se. As claridades do pensamento racional são muito belas. Não
seriam abandonadas.
Evidentemente
você jamais cogitou em substituir o real pelo imaginário. Creio que não
fiz qualquer confusão! Compreendo que a ordem do imaginário e a alta
ordem do pensamento racional são diferentes. E também que o imaginário
não seria redutível a termos racionais. Aí está o nervo da questão.
Um
grande mestre da psicologia do século xx, Sigmund Freud, influência
comparável a Descartes, fez a cabeça das últimas gerações.
Paradoxalmente, ele, que abriu as portas da psique inconsciente, onde se
configuram as imagens primordiais, os rnitologemas, enfim o imaginário
sob suas múltiplas formas, inclusive aquelas que nutrem as raízes das
teorias científicas, mesmo as mais racionais, rebaixa os produtos da
imaginação e dirige sua técnica no sentido de traduzí-lo em linguagem
verbal. É que ele permaneceu fiel às concepções filosóficas do fim do
século XX, racionalistas inveteradamente.
Daí
decorre que, para os muitos seguidores de Freud, as imagens pintadas
livremente nos hospitais psiquiátricos serviriam apenas de "médium" para
associações verbais, unicamente essas capazes de trazer o material que
acreditam esteja disfarçado, oculto nessas imagens até o nível
consciente. Não constituíram em si mesmas e em sua ordenação peculiar
uma linguagem independente. Deveriam sempre ser traduzidas e termos
verbais.
Sem
dúvida o imaginário estará mais próximo do inconsciente que a ordem
racional. Mas coisa diferente será negar-lhe valor próprio, não vendo
outra maneira de entendê-lo senão esfrangalhando as imagens até
esvaziá-las de sua presente substância própria.
Trabalhando
em hospital psiquiátrico, sempre procurei abrir aos doentes, que
freqüentavam nossos ateliês de pintura e modelagem, oportunidade para
livre expressão de seus processos imaginativos. Esses indivíduos habitam
um mundo de imagens tão vivas, que se lhes afiguram absolutamente reais
(...).
Muitas
vezes me perguntaram se as imagens pintadas ou modeladas em nossos
ateliês serviam como ponto de partida para insistirmos junto a seus
autores, a fim de que as traduzissem em palavras. Nunca recorri a esse
método.
Ao
contrário, esforcei-me para estudar a linguagem do imaginário, seus
arcaísmos, seus símbolos condensadores de intensos afetos não raro
contraditórios. Isso me parecia menos difícil que transpor tais formas
de expressão para nosso falar cotidiano.
Cada
vez fui mais me convencendo que as imagens poderiam permitir
vislumbrar-nos ocultas vivências sofridas para aqueles seres que se
haviam afastado da nossa realidade, que tornaram "o invisível visível',
ou quase. Começaríamos possivelmente a comunicarmo-nos.
Mas
a ciência entrincheirada na ordem racional não aceita esses caminhos.
Médicos e psicólogos passavam diante das imagens livres, nascidas do
imaginário de homens e mulheres hospitalizados, sem lançar-lhes um golpe
de vista, sequer por curiosidade. Entretanto, aquelas imagens eram
retratos autênticos da atividade psíquica, que se havia configurado e
haviam sido cuidadosamente dispostos sobre as paredes da sala do grupo
de estudos do Museu de Imagens do Inconsciente com a intenção de ajudar
possíveis estudiosos a enxergar o desdobramento, a peculiar ordenação de
enigmas, do mundo interno. Mas nunca lhes despertava interesse
pesquisar, nas longas séries de imagens, um fio subjacente, indo e vindo
através de percursos labirínticos.
O ensino universitário, o clima geral de opinião de nossa época, impermeabilizara-os, coitados, para esse tipo de leitura.
Às vezes ficava triste, confesso a você.
(...)
Felizmente tive a sorte de encontrar um grande mestre: C. G. Jung.
Embora nem sempre ele estivesse de acordo com suas posições, caro
Spinoza, Jung era um homem que, como você, navegava na contracorrente de
seu tempo. Assim, divergindo dos seus contemporâneos, Jung atribui
grande importância à imaginação, polarizando-a como atividade psíquica
legítima. Atividade caracterizada pelo poder de configurar imagens.
Imagens interiores que apreendem conteúdos profundos da vida psíquica,
inacessível ao pensamento racional. Jung frisa ainda que a atividade
imaginativa não tem em si caráter patológico, segundo lhe é de ordinário
atribuído na área médica, pois se origina de dados objetivos inerentes
aos básicos fundamentos da psique de todos os homens.
Agora,
aqui em segredo, ouso supor que você tenha descoberto os poderes do
imaginário e de suas possibilidades de organização, admirando,
contemplando longamente as pinturas de seu contemporâneo Rembrandt.
Decerto não lhe escapou que Rembrandt não se prendia à realidade
objetiva segundo preferiam grandes mestres da pintura holandesa de sua
época. Não estaria ele buscando no claro-escuro do imaginário segredos
muito antigos, aspirações inefáveis?
Se
numa tela célebre Rafael representou Platão com o indicador voltado
para o alto e Aristóteles, o indicador voltado para a terra, Rembrandt
exprimiu talvez coisas mais distantes, pintando Aristóteles com a mão
respeitosamente pousada sobre a cabeça de um busto de Homero cego.
Ainda
ontem à noite pensei muito em você, mergulhando na contemplação do
Doutor Faustus, ou imóvel, diante do Filósofo com o livro aberto, olhos
perdidos, muito além das letras impressas, tranqüilo, sentado ao lado de
uma escada que se alonga em movimento espiralado não se sabe para onde.
Perdoe tanta ousadia.
A sua menor discípula,
Nise.
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