sábado, 1 de março de 2014

Roberto Romano : Fim da Política, do Estado e da cidadania?


 Cadernos IHU ideias





Fim da Política, do Estado e da cidadania ?

Roberto Romano 

 Instituto Humanitas Unisinos /Capes/ 
Ano II, n. 202/ 2013. ISSN  1679-0316

LE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
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Vice-reitor
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Cadernos IHU ideias
Ano 11 – Nº 202 – 2013
ISSN: 1679-0316
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Resumo
 
Hoje, o Estado não exerce com eficácia razoável os três monopólios que lhe deram nascimento. Boa parte dos poderes constituídos sucumbiram à política econômica da privatização das políticas e da ordem pública. Com tal suicídio jurídico, o que resta do setor público não tem o controle inconteste da força física. O monopólio da norma jurídica é quebrado a cada instante pelos setores financeiros e grandes empresas. Leis e normas são mudadas sempre que desagradam aqueles setores privados, que na verdade controlam as políticas públicas. Se nos dirigimos ao monopólio da taxação do excedente econômico, o desastre estatal é ainda maior. Fraudes bilionárias ficam impunes, a circulação de recursos ilegais é incomensurável, nada mostra que os Estados, sobretudo os hegemônicos, consigam recuperar o controle dos capitais gerados e distribuídos pelos mecanismos eletrônicos da lavagem de dinheiro. Palavras-chave: Estado, hegemonia, monopólio privado, cidadania, norma jurídica.
 
Abstract
 
Today, the State does not reasonably exercise the three monopolies that originated it. Much of the constituted powers succumbed to the privatization of public order policies and economic policy. With such legal suicide, what remains of the public sector has not total control of army forces. The monopoly of the legal rule is broken every moment by the major financial and business sectors. Laws and regulations are changed whenever displease those private sectors, which actually control public policy. If we address the monopoly of taxation of economic surplus, the State’s disaster is even greater. Billionaire fraud go unpunished, the circulation of illegal resources is immeasurable, nothing shows that states, especially the hegemonic ones, are able to regain control of the capital generated and distributed by electronic mechanisms of money laundering. Keywords: State, hegemony, private monopoly, citizenship, juridical norm.




Enfrentamos no Brasil uma situação paradoxal em termos simbólicos. Comemoramos os vinte e cinco anos da Constituição vigente, mas entramos no tempo em que se proclama a ruína definitiva dos Estados. Sem estes últimos, Constituições são menos do que letra morta. Vivemos uma era na qual se proclama “o fim da política”. Como as economias dos países passaram a ser movidas por centros de decisão financeira, quase nada sobra aos governos eleitos quando se trata da última decisão sobre a vida pública, emprego, aproveitamento da natureza e mesmo guerras. A política, herança grega, adquiriu novo sentido após a instauração do Estado moderno, visto que na Idade Média ela foi impedida pelos nobres e pela Igreja ainda não centralizada, na plenitude, em Roma. No poder estatal, de início absolutista e depois democrático, agir políticamente fazia sentido, porque se tratava de disputar a hegemonia com base na ordem nova, definida pela aceitação ou recusa do povo soberano. ([1]) Apesar de todos os ensaios, alguns terríveis, para encontrar uma outra forma de união coletiva, o Estado ainda é o mecanismo que oferece alguma proteção aos povos e indivíduos. Segundo um autor que cito mais adiante, “as ONGs começam a constituir um contra-poder, mas não têm legitimidade política. Elas não expressam de nenhum modo o direito dos povos: um debate na internet não equivale a uma eleição legislativa ou referendo” (Henri Guaino).

O Leviatã, “Deus mortal” segundo Thomas Hobbes, que teve seu apogeu  no século XVII –era da raison d’état  foi abalado por muitas crises das quais saiu fortalecido com auxílio das revoluções democráticas. Quando o modelo absolutista de poder mostrou signos letais de ilegitimidade, ([2]) os revolucionários da Inglaterra (ainda no século XVII), dos Estados Unidos e da França retardaram a sua senescência nele injetando as forças vivas da soberania popular, correspondente à responsabilização dos governantes. ([3])

Aquelas revoluções chegaram à radicalidade democrática, mas foram sucedidas por governos fortes em detrimento das massas ou com seu apoio. A Inglaterra, após Cromwell e a Restauração, fortaleceu sua forma de Estado com o princípio representativo dual,  comuns e nobres. Os EUA assumiram a forma republicana e federativa, atenuando a soberania do povo. ([4]) A França, após a radicalização jacobina e da Comuna, com o Termidor, fortaleceu o executivo, posto nas mãos de um soldado e imperador e de governos  autoritários, voltando depois ao comando de um imperador. Com as crises sucessivas, o país viveu no regime presidencial misto.  Nessas metamorfoses –a soberania popular que termina no mando de um indivíduo ou grupo a ele preso– subsistiu, apesar de tudo, um sistema de pesos e contra pesos, técnica idealizada por Platão nas Leis e assumida doutrinariamente por Montesquieu.  ([5])

No século XX o poder executivo se descolou dos outros setores estatais, sobre eles exercendo hegemonia inédita, mesmo se a compararmos ao absolutismo monárquico. Com o nazismo, o fascismo, os regimes fortes da França de Vichy, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar, nas várias ditaduras africanas, asiáticas, sul americanas, a figura do Chefe adquiriu proeminência inconteste. As massas populares, movidas pelo terror policial e militar ou pela propaganda (na verdade, tangidas pela sínteses dos três fatores) apoiaram os poderes  totalitários. ([6]) Postos como líderes naturais e incontestáveis de seu povo, arvorando ideologias baseadas em distorções de ordem biológica (fascismo e nazismo), ou históricas (stalinismo), os dirigentes do Estado usaram rígidas e impiedosas burocracias civis ou militares, ao mesmo tempo em que davam ao judiciário ordens genocidas, recebendo obediência sem hesitações de magistrados em todas as instâncias. [7] Finalmente se efetivou a profecia de Tocqueville, sobre o poder mentiroso, orientado pelo terror e pela propaganda,([8]) na qual o líder tudo decide e ordena, o governante “reduz enfim cada nação a nada mais ser do que um rebanho de animais tímidos e industriosos, do qual o governo é o pastor” ([9])A experiência totalitária reforçou o Estado em plano mundial, atenou ao máximo a prática das democracias e a figura do povo soberano. Com semelhante passo se enfraqueceu a accountability, ocasionando os piores abusos dos Executivos, dentro e fora das fronteiras nacionais.  

Após a Segunda Guerra, em vez de um tempo de paz, veio a sucessão de guerras geradas pelo colonialismo e pela geopolítica imperial: um exemplo estratégico é o golpe no Irã e o regime truculento de Reza Pahlavi em nome de interesses democráticos, mas que reafirmou a era das intervenções bélicas em benefício de empresas pretolíferas “ocidentais”. Recordemos os embates na Argélia e no Vietnam, os golpes militares na Grécia, na América do Sul e do Centro. Tais golpes e guerra foram sempre dirigidos ou provocados pelos Estados que venceram os regimes totalitários. Em vez de encaminhar o plano internacional para formas democráticas, as potências hegemônicas na Guerra Fria, EUA e URSS, irmão gêmeos na política imperial moderna, ([10]) instalaram ditadores e negaram aos povos submetidos pelos exércitos ou agências de espionagem (CIA ou KGB)  ([11]) o mínimo equilíbrio dos poderes, fortaleceram o Executivo contra os outros setores do Estado.

No mesmo passo em que instrumentalizaram os países fracos, os submetendo a doses enormes de corrupção e cinismo, aquelas potências receberam, em ricochete, uma dose letal de aviltamento da sua própria cidadania. Para garantir o segredo de Estado, tática essencial na luta pela imposição planetária de seu domínio, a potência soviética escondeu nos porões das torturas ou no Gulag, as mais comezinhas informações aos habitantes. A imprensa foi garroteada, sendo uma ironia purulenta o nome do jornal mais importante da terra, “A Verdade” (Pravda). A dissolução da sociedade soviética, somadas as corrupções do caráter e da economia, conduziu ao enfraquecimento do Estado oficialmente socialista. Nas potências ocidentais o segredo e a propaganda também foram acentuados, do macartismo à Lei Patriótica, ([12]) a qual restringiu drásticamente os direitos individuais e coletivos no território norte-americano e nas terras aliadas ou submetidas. Com a conivência de seus parceiros, os EUA  praticaram tortura contra prisioneiros acusados de terrorismo de forma ‘terceirizada”, ou seja, assumida nos países parceiros ao arrepio da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. ([13]) Gradativamente foram produzidos dispositivos jurídicos que descolaram a máquina do Estado, com sua poderosa burocracia, dos povos  reduzidos ao estatuto de rebanho. ([14]) A URSS, após décadas de tirania sobre povos imensos, caira de maneira espetacular dando origem à uma federação poderosa, mas infestada de grupos marginais à lei, e a pequenos Estados carentes dos mínimos recursos para manter a soberania.  Os EUA, em sua perene idealização de um  destino imperial, acreditaram-se com a tarefa de impôr ao planeta a democracia nos moldes definidos pelos que o governam em sentido autoritário. ([15])

Em toda essa crônica, ressalta sempre o reforço do Executivo em detrimento dos outros integrantes do Estado. E outro ingrediente se acrescenta na receita democraticida, com o processo mundial da economia, na chamada globalização e o domínio do capital financeiro. Países submetidos a ditaduras ferozes, como o Chile, impuseram medidas de “flexibilização”, abolindo entraves ao capital, com  normas contrárias aos direitos trabalhistas. ([16]) Assim, mesmo com um Executivo endógeno forte e truculento, a soberania nacional foi abalada até os alicerces, no mesmo fôlego em que os direitos humanos e cidadãos foram pisados sem escrúpulos. Os chefes ditatoriais, tutelados pelas finanças, entregaram seus povos à racionalidade ditada pelas bolsas de valores, pelas agência de cálculos de riscos, pela especulação sem peias no trato das dívidas públicas, pelo endividamento oriundo de empréstimos, não raro impostos pelos mesmos agentes do campo financeiro.

Hoje, o Estado não exerce com eficácia razoável os três monopólios que lhe deram nascimento. Boa parte dos poderes constituídos sucumbiram à política econômica da privatização das políticas e da ordem pública. Com tal suicídio jurídico prolongado,  o que resta do setor público não tem o controle inconteste da força física (as próprias nações hegemônicas, em suas guerras, terceirizam os atos bélicos, pagam milhões para firmas privadas de segurança) tanto no campo externo quanto no interno (países onde guerilhas se desenvolvem há décadas, como a Colômbia, são obrigados a dividir o controle territorial com setores opostos ao Estado). Além disso, o narcotráfico, o contrabando, a pirataria, todos esses movimentos desafiam a força militar dos Estados ocidentais, sem que se anteveja algum progresso na sua repressão. O monopólio da norma jurídica é quebrado a cada instante pelos setores financeiros e grandes empresas, como é o caso de Wall Street e de poderosas empresas como a  Monsanto,([17]) sem mencionar outros integrantes da gigantesca indústria química e farmacêutica. Leis e normas são mudadas sempre que desagradam aqueles setores privados, que na verdade controlam as políticas públicas. Se nos dirigimos ao monopólio da taxação do excedente econômico, o desastre estatal é ainda maior. Fraudes bilionárias ficam impunes, a circulação de recursos ilegais é incomensurável, nada mostra que os Estados, sobretudo os hegemônicos, consigam recuperar o controle dos capitais gerados e distribuídos pelos mecanismos eletrônicos da lavagem de dinheiro. ([18])

Uma característica comum de todos esses atentados aos monopólios estatais é a lógica fria do lucro, posto acima dos interesses coletivos. Outra marca que eles ostentam é a do anonimato que não responde diante de ninguém. Populações inteiras são postas no desamparo e no desemprego, para que sejam “honrados” serviços da dívida pública e privada, quase sempre determinados pelos principais interessados, os grandes bancos e orgãos privados de investimento especulativo. A midia, quando se acumplicia aos interesses financeiros globais, administra uma grave campanha de terror contra os povos e dirigentes que não obedecem os ditames de empresas. A primeira palavra que vem nos textos de boa parte da imprensa é “calote” e ausência de accountability, sempre que dívidas são questionadas. Sequer auditorias de tais dívidas são permitidas aos dirigentes que ainda têm uma parcela de responsabilidade diante dos governados. É esquecido intencionalmente que o conceito de accountability surgiu como a obrigação de prestar contas, em primeiro lugar, à cidadania. Este é um exemplo apenas da perversão dos termos políticos, quando a hegemonia é garantida aos interesses privados.  Massas imensas de imigrantes enfrentam desertos, mares e o preconceito insuflado pelas direitas nacionalistas, enfrentam a morte na miséria. Ninguém responde pelo genocídio.

Como resultado do enfraquecimento estatal, surgem na Europa e no mundo movimentos que retomam a inspiração fascista, com a chamada extrema direita. ([19]) Mesmo não chegando a tal extremo, governos patrocinados pelas finanças internacionais e tendo nas mãos a midia, das quais não raro o mandatário possui a propriedade, reinstauram práticas discriminatórias contra imigrantes, sobretudo os de cor negra, os árabes, etc. Os casos Sarkosy, Berlusconi e outros são demasiadamente conhecidos.

 Seria possível imaginar, assim, que a democracia e a política podem ser garantidas? Não me refiro à democracia segundo o modelo de Wall Street. Mas à baseada na soberania nacional e popular, eludida pelos propagandistas da globalização. Desprovido de soberania popular o Estado regride ao absolutismo, não mais sob a égide de ministros onipotentes, como Richelieu, ou de reis idem. Agora o poder absoluto se aninha nos escritórios de investimento financeiro, numa ditadura anônima que, à semelhança do absolutismo, não presta contas a ninguém. Se Tiago I afirmava só dever contas a Deus, na hora da morte, os novos senhores desconhecem direitos humanos e divinos, são plenamente unaccountables. Com semelhante status, a política como expressão das contraditórias vontades populares, desaparece. E segue-se de imediato  o requiém para a defesa dos direitos, a começar com os direitos humanos. ([20])

Temos o ressurgimento de ditaduras ao mesmo tempo caricatas e trágicas. E precisamos refletir sobre a vida política, econômica e intelectual na atualidade. Com a ruptura revolucionária diante do poder absoluto (supostamente de direito divino, embora a Igreja sempre tenha negado tal prerrogativa aos governantes), ([21]) no mesmo passo em que se definiu o princípio da responsabilidade para os administradores, surgiu a regra da impessoalidade no trato da coisa pública. Com as Luzes, tais princípios se tornaram verdadeiros imperativos categóricos para a política democrática.

Ocorre que o mesmo princípio da impessoalidade foi dirigido, em outra perversão sintomática,  para o campo do anonimato das forças que dirigem os poderes estatais nas últimas décadas. Não existem ou resistem líderanças pessoais que defendam a cidadania. Os partidos, a cada vez mais oligarquizados, só aceitam líderes que distribuam o espólio da riqueza nacional em benefício dos financiadores de campanhas, quase sempre empresas industriais e financeiras. As lideranças são marionetes nas mãos daqueles verdadeiros donos do poder.

Jean Claude Monod, um analista de nossos dias, em livro que merece leitura urgente e atenta, procura verificar os limites da democracia “sem líder” no momento em que forças internacionais controlam os Estados sem maiores obstáculos. Ao partir do carisma, tal como estudado por Max Weber, em confronto com o poder anônimo das burocracias civis e militares, Monod assinala que o alerta contra o poder democrático moderno veio na pena de um “discípulo sulfuroso de Weber, Carl Schmitt, que logo cedo enunciou esta tendência à ‘eliminação da dominação subjetiva do político sobre a objetividade da vida econômica’, onde ele via um traço típico do liberalismo”. Schmitt enfatiza tal elemento: “nada é mais moderno do que a luta contra a política. Os financistas norte-americanos, os técnicos da indústria, os socialistas marxistas e os revolucionários anarco-sindicalistas se unem para reivindicar a eliminação da dominação subjetiva do político sobre a objetividade da vida econômica. Só devem subsistir as tarefas técnicas e oragnizacionais, sociológicas e econômicas, mas sem problemas políticos”(Teologia Política). ([22])

Mas o juízo negativo de Schmitt sobre a predominância econômica e o fim da política é partilhado, em outros parâmetros, por escritores relevantes de sua época, situados à esquerda da paleta ideológica. Serge Tchakhotine,

Da constatação acima, da qual aceita apenas uma parte, discordando da “solução”schmittiana sobre o poder do Presidente, Monod aduz: “parece difícilmente negável hoje que o liberalismo econômico vença a democracia entendida como possibilidade do povo decidir coletivamente sobre sua sorte e a de seus dirigentes, como soberania popular”. ([23]) O autor fornece dois casos estratégicos. Na crise financeira internacional, a partir de 2008, iniciada nos gabinetes de Wall Street e da City londrina, a Grécia e a Itália foram conduzidas à quase falência, com taxas terríveis de desemprego. O primeiro ministro Papandreu tentou submeter ao referendo o plano europeu para que fosse outorgada uma ajuda ao Estado grego, desde que cortes drásticos fossem efetuados nas suas despesas.  A violenta campanha contra Papandreu nos centros de poder europeu e norte-americano levou à sua substituição por Papademos, “velho funcionário europeu que tinha sido conselheiro para a Europa do banco de negócios americano Goldman Sachs”.  No mesmo ano, com a queda do direitista e notório usuário de bens públicos para fins alheios ao bem comum, Berlusconi, foi nomeado como primeiro ministro da Itália Mario Monti, “abridor de portas do…Banco Goldman Sachs”.  Síntese de Monod : “notamos que aqui e alí o primado do econômico sobre o político não se embaraça com as complicações da legitimação eleitoral e democrática tradicionais, e que a ‘soberania do povo’ é tratada, a cada vez mais abertamente, como uma velharia incongruente”.

Durante a ditadura civil e militar instaurada em 1964, os bispos brasileiros editaram um documento no qual se atribuam ser a  “voz do que não têm voz”. Apontei em meu trabalho sobre Igreja e Estado ([24]) em nossa terra o perigo de semelhante ventriloquismo de boas intenções. Na democracia, arrazoava,  a voz do povo soberano não precisa de intermediários, sejam eles movidos pela transcendência ou por motivações mundanas. A prática da democracia representativa está suspensa ao fio da legitimidade. E o fio que a garante é muito fino. Quando, em vez de defender os interesses mais amplos da sociedade,os executivos e parlamentares assumem interesses particularíssimos, ou na verdade operam como lobistas daqueles interesses no Parlamento, o elo entre soberania popular e os que operam o Estado em seu nome se rompe. ([25]) Tal fratura pode ser iniciativa dos dirigentes, e temos o golpe de Estado, brando ou violento, dissimulado na maioria das vezes. Se a iniciativa é de movimentos políticos populares, tem-se a revolução, que pode ser violenta ou se encaminhar para soluções institucionais pacíficas e pacificadoras.

Mas o Estado, após a ruptura do pacto político que une representantes e representados, deve se modificar na forma e no conteúdo.  Com o golpe dos palácios, as garantias cidadãs são supressas ou adiadas. No processo revolucionário, as leis fundamentais devem mudar, para exprimir novos termos políticos. A democracia revolucionária não opera milagres nos costumes. Boa parte dos movimentos que transformaram o Estado rumo ao poder popular, antes de serem vencidos pelas forças contra revolucionárias, sofreram com a corrupção de suas próprias lideranças e quadros intermediários. É o que se deu na França de 1789,([26]) é o que ocorreu na URSS. ([27])

A política desaparece entre a burocracia, a representação parlamentar corrompida e os interesses econômicos e financeiros. Como sair dessa aporia dramática ? Com líderes revolucionários carismáticos, ou na antiga linguagem da teoria institucional, estadistas, surge uma nova orientação da própria idéia representativa. Levando adiante as teses weberianas, Monod examina os termos que unem a profissão de advogado e a vocação do líder carismático. Advogado e vocação se ligam etimológicamente.  Segundo Weber o advogado tem como alvo ganhar causas, mesmo que as bases empíricas e lógicas sejam frágeis.  O mesmo ocorre se ele, advogado, opera na política. Nesta última, dada a sua antiga marca teatral própria à dissimulação a voz, advocare, se divorcia da convicção.  Nos tribunais e na política o agente é autônomo diante da causa a ser defendida.  Mas Weber, adianta Monod, se inquieta menos com a qualidade advocatícia e mais com a subida ao poder de funcionários que, desprovidos da capacidade usual nos advogados, transformam causas “boas”em perversas devido a certeza em técnicas errôneas. O burocrata que dispensa a voz em defesa de causas, justifica seus atos por saberes infalíveis, usa o universo público como campo de manobras de aparelhos. A cidadania se reduz a um laboratório de experiências das quais os operadores não precisam justificar, advogar o bem fundado ou o fracasso. Eles não são políticos, mas cientistas. Para eles, a noção de justiça que atravessa a política deve ser afastada para não perturbar o status quo.

Mas aqueles técnicos podem se escorar em personalidades carismáticas que supostamente advogam os interesses populares. Tais líderes, por sua vez, dependem de oligarquias que manipulam as suas “bases” num regime perenemente plebiscitário. Uma frase é importante no raciocínio de Weber, tal como acolhido por Monod : “uma ‘verdadeira’  democracia, entendida como poder direto do povo, nunca chegou a criar sua própria ‘legitimidade’ no sentido de uma garantia de obediência e estabilidade duradouras”.  A democracia, em boa parte, consiste em uma ficção, pois é menos o ‘povo’ que governa, e mais um pequeno grupo dirigente e, nos casos das democracias plebiscitárias, um chefe de governo ou  presidente que reveste as roupagens de um Cesar, periodicamente aclamado. Além desse poder que se cobre com o nome de democracia, Weber indica a gerência do Estado pelos burocratas, que impede a expressão da vontade popular pois o poder dos escritórios tende à sua própria perpetuação. Ele é o automatismo da máquina racional cujos fins são estranhos ao carisma, à política, às massas. Se os escritórios são dominados por funcionários presos a empresas que buscam o lucro acima de tudo, a exploração e a opressão das massas ignora limites e regras

Como, então, falar em direitos quando nos referimos aos cidadãos? Weber, contrário ao liberalismo apologético que prega a harmonia expontânea entre os interesses dos dominantes e dominados, indica que a síntese entre democracia e e capitalismo é conto de fadas. Citando o próprio Weber : “É totalmente ridículo atribuir uma afinidade eletiva da democracia, ou mesmo da liberdade em qualquer sentido em que a tomemos, com o capitalismo avançado  –esta inevitabilidade de nosso desenvolvimento econômico– tal como hoje ele é importado (em 1905) na Rússia e tal como existe nos Estados Unidos. A questão certa é a seguinte: como a democracia e a liberdade podem ser mantidas em longo prazo sob o domínio do capitalismo avançado? “ ([28])

Em nosso tempo de capitalismo financeiro global, vemos a colusão da burocracia e dos interesses que privilegiam a abstração do dinheiro puro, sem o controle do Estado em procedimentos anônimos. Tal é a fonte dos espiões que vigiam governantes e governados. Como salvar os direitos humanos diante da hegemonia absoluta do econômico sobre o político? Após a vaga do tradicionalismo contra revolucionário dos séculos 19 e 20, como encontrar fôlego e lideranças nacionais e internacionais que, ou retomem os meios do Estado até hoje (força física, norma jurídica e impostos nas mãos do poder público) e os fortaleçam, ou radicalize a tese da soberania popular e dos direitos, imanentes à prática política? “O político”, diz Monod, “que tenha vocação deve sempre responder diante do povo”.  Este pressuposto é sempre preferível ao de uma suposta democracia sem cabeça. A exigência essencial, após tantos líderes que transformaram as massas em gado de corte e de lucro, é que o carisma democrático “implica que o portador desse carisma seja igualmente portador de um ethos de transformação social, rumo à redução das desigualdades, avanço da justiça, institucionalização de mecanismos jurídicos protetores”. ([29])

Termino: a política, no sentido mais amplo de operação que visa ampliar a vida humana em regime democrático, tende a desaparecer com as novas forças hegemônicas da economia, do narco-tráfico, da guerra terceirizada, da espionagem contra a cidadania. Vivemos hoje numa situação denominada por Norberto Bobbio como o “labirinto do anti-Estado”.  Nela, os direitos são negados porque sem política responsável e, por enquanto, sem Estados responsáveis,  não existem direitos humanos, ou melhor, direitos.  


[1] Na Grécia democrática o poder não era concentrado numa única pessoa, mas “seguindo um ciclo regulado, a soberania passa de um grupo a outro, de um indivíduo a outro, tanto que comandar e obedecer, em lugar de se oporem como dois absolutos, se transformam em dois termos inseparáveis da mesma relação reversível. Vernant, J-P. : Les origines de la pensée grecque (Paris, PUF, 1962), p. 99.
[2] Da literatura imensa, sublinho os trabalhos recentes sobre o poder absoluto. Cf Le Roux, Nicolas : Le roi, la cour, l ‘État, de la Renaissance à l ‘absolutisme (Paris, Champ Vallon, 2013); Pierre, Benoist : La monarchie ecclésiale, le clergé de cour en France à l ‘é poque moderne (Paris, Champ Vallon, 2013). O clássico sobre tema é de Cornette, Joël : La monarchie, entre Renaissance et Révolution, 1515-1792 (Paris, Seuil, 2000). Petitfils, Jean-Christian : Louis XIV (Paris, Perrin, 2002); Halem John : La civilisation de l ‘Europe à la Renaissance (Paris, Perrin, 2003); Erlanger, Philippe : Richelieu (Paris, Perrin, 1985) ; Lacôte, Hélène Fernandez : Les procès du cardinal de Richelieu, droit, grâce et politique sous Louis le Juste ((Paris, Champ Vallon, 2010); Bonnet, Stéphane : Droit et raison d’ État (Paris, Garnier, 2012); Viroli, Maurizio : From politics to reason of state, the acquisition and transformation of the language of politics 1250-1600 ((Cambridge, University Press, 1992).
2013)
[3] Lutaud, Olivier: Les deux Révolutions d’Angleterre, documents politiques, sociaux, religieux (Paris, Aubier, 1978); do mesmo autor , Des Révolutions d’Angleterre à la Révolution Française (LA Haye, Martinus Nijhoff, 1973).
[4] Cf. Kramnik, Isaac : “Apresentação”  aos Artigos Federalistas, 1787-1788 (RJ, Nova Fronteira, 1987), p. 46 e seguintes.
[5] Cf. Morrow, Glenn R. : “Plato and the Rule of Law”in Vlastos, Gregory : Plato, a collection of critical Essays, ethics, politics, and philosphy of art and religion (Notre Dame, University Press, 1971, v. II), p. 144 e ss. Cf. o clássico sobre a soberania popular no pensamento de J. Althusius : Gierke, Otto: Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechten Staatstheorien. Tradução italiana : Giovanni Althusius e lo svilupo delle teorie politiche giusnaturalistichem contributo alla storia della sistematica del Diritto (Torino, Einaudi, 1974).
[6] Cf. Nicolet, Claude (Ed.) Dictature, absolutisme et totalitarisme, Colloque des 15 et 16 mai 1997, Fondation Singer-Polignac, Revue francaise d’Histoire  des idées politiques, numero 6, 1997.
[7] Voegelin, Eric : Hitler e os Alemães (São Paulo, É Ed. 2008); Duverger, Maurice , (Ed.) : Dictatures et légitimité (Paris, PUF, 1982); Boutin, Christophe e Rouvillois, Frédéric : Le coup d’État, reccours à la force ou dernier mot du politique? (Paris, F.X.  de Guibert, 2007); Gainche, Marie-Laure Basilien :  État de droit et états d’exception, une conception de l État (Paris, PUF, 2013).
[8] Cf. o clássico de Serge Tchakhotine: Le viol des foules para la propagande politique (Paris, Gallimard, 1952). Também clássico, Domenach, Jean Marie : La propagande politique (Paris, PUF, 1973). Sá Martino, Luis Mauro : “A estética da propaganda política em Goebbels, um estudo sobre a produção da publicidade a partir de seus Diários”in Comunicação & Política, v. 25, n 2, pp 35-53
[9] De la democratie en Amerique, Quarta Parte, capítulo VI (Paris, Laffont, 1986).
[10] Cf. Dukes, Paul: The USA in the making of the URSS, The Washington Conference, 1921-1922, and “Univinted Russia” (New York, Routledge, 2004).
[11] Cf. Avakov, Alexander V. : Plato’s dream realized, surveillance and citizen rights from KGB to FBI (New York, Algora, 2006).
[12] Cf. Teixeira Júnior, Geraldo Alvez : Razão de Estado e política antiterrorismo nos Estados Unidos (Unicamp, tese de doutoramento orientada por mim em 2011), o texto pode ser lido na edição eletrônica da SIBU, Biblioteca Digital Eletrônica da Unicamp. http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000835637

[13] Pelo menos, dentre os países que se acumpliciaram aos EUA, temos: Filipinas, Paquistão, Afeganistão, Jordania, Egito, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Marrocos, Chupre, Indonésia, Nigéria, El Salvador, Libia, Dinamarca, Polônia, Bulgária, Albânia, Alemanha, Escócia. A lista é bem maior. Alí, a Convenção de Genebra foi desrespeitada, sob as orden diretas de agentes norte-americanos. Do grande número, na bibliografia, cf. Harbury, Jennifer K. : Truth, torture, and the American Way, the history and consequences of  U.S. involvement in torture (Boston, Beacon Press, 2005).

[14] Não examino aqui as reflexões sobre o “pastoreio”e outras formas autoritárias, tal como discutidas por teóricos como Michel Foucault, G. Agamben e outros. Pesquisadores como Oswaldo Giacóia Júnior publicaram textos importantes sobre o tema. Eles são supostos por mim agora. De Giacóia Júnior, cf. o excelente “Sobre Jürgen Habermas e Michel Foucault” Revista Transformação (Departamento de Filosofia da Unesp), volume 36, número 1, 2013. P. 19 e seguintes.
[15] Mesmo os que se dedicaram à tarefa de espionar outros Estados e os próprios cidadãos norte-americanos, criticam a atitude imperial dos EUA. Cf. Scheuer, Michael : Imperial Hubris, Why the West is losing the war on terror (Washington, Brassey’s Ed., 2004). Scheuer é ex-dirigente da CIA. Para uma análise dos projetos de hegemonia imperial, cf. Mearsheimer, John J. : The tragedy of Great Power Politics ((New York, Norton & Company, 2003).
[16] Bidstrup, Scott: Free Market Fundamentalism: Friedman, Pinochet and the “Chilean Miracle” (Hypertexto) em http://www.bidstrup.com/economics.htm

[17] Com alguns senões de informação, Cf. Dorel, Gérard : Atlas de l ‘empire américain (Paris, Autrement, 2006).
[18] Advertência severa de Thomas Hobbes : “A (…) doctrine that tendeth to the dissolution of a Commonwealth is that every private man has an absolute propriety in his goods, such as excludeth the right of the sovereign. Every man has indeed a propriety that excludes the right of every other subject: and he has it only from the sovereign power, without the protection whereof every other man should have right to the same. But the right of the sovereign also be excluded, he cannot perform the office they have put him into, which is to defend them both from foreign enemies and from the injuries of one another; and consequently there is no longer a Commonwealth.” Leviathan, Chap. XXIX, “Of those things that weaken or tend to the dissolution of a Commonwealth”(Ed. C.B. Macpherson (Penguin, 1977), p. 367.
[19] Cf. Ignazi, Piero : L’estrema destra in Europa, da Le Pen a Haider (Blogna, Il Mulino, 2000).
[20] Pensamento contrário é sustentado por Henri Guaino. Em extenso artigo sobre o tema, ele argumenta que o predomínio do mercado financeiro e da globalização tem sido uma desculpa para não se encarar os desafios da política. Ao fazer a retrospectiva de momentos históricos anteriores cita Ferdinand Braudel, que expõe os movimentos econômicos do passado e sua importância para a vida estatal.  “A teoria do fim da história (o autor refere-se ao livro de Fukuyama,RR) e da política é uma ideologia, mas é uma ideologia eficaz: ‘a mercantilização’ do mundo avança no mesmo passo que o imperialismo americano se impõe como como o último refúgio da política. Mas não é inelutável. Não podemos recusar o progresso técnico ou o comércio. Mas sempre podemos recusar uma ideologia”. Cf. “La Mondialisation, nouvel alibi du renoncement politique”, na Internet : www.societe-de-strategie.asso.fr/pdf/agir03txt3.pdf

[21] Bourdin, Bernard: The theological-political origins of the Modern State, the controverse between James I of England & Cardinal Bellarmine (The Catholic University of America Press, 2004).
[22] Não apenas nas hostes conservadoras, das quais Schmitt é um representante, mas também no setor liberal e progressista o fato da hegemonia do econômico sobre o político foi analisado criticamente dado que ele teria servido, inclusive,  para o advento do fascismo. Cf. Brady, Roberto A. : Business as a system of power (New York, Columbia University Press, 1943); do mesmo autor, The  spirit and structure of German fascism (New York, H. Fertig, 1969).
[23] Sobre as críticas schmittianas ao sistema parlamentar, cf. Bianchini, Fernando Novelli : A democracia parlamentar na crítica de Carl Schmitt (tese de mestrado orientada por mim na Unicamp) o texto, que oferece alternativas ao atual estado da política, pode ser lido integralmente  na SBU/Unicamp, http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000837916

[24] Romano, Roberto : Brasil, Igreja contra Estado (São Paulo, Kayrós, 1979).
[25] Cf. Rufin, Jean-Christophe : La dictature libérale, le secret de la toute puissance des démocraties au XXe siècle (Paris, Ed. Jean Claude Lattès, 1994).  Uma causa da não aprovação da lei que regulamenta o Lobby é que muitos parlamentares operam em lobbies. Quando se fala em “bancada X”ou “Bancada y”, falamos de políticos que, ou são financiados por determinados setores, ou a ele pertencem. Eles não aceitam ser disciplinados, exercem os lobbies e as funções de representantes legislativos.
[26] Cf. Benoit, Michel : 1793, la republique de la tentation, une affaire de corruption sou la Ie République (Paris, Editions de l ‘Armançon, 2008). Cf. também Badiou, Alain, “Quest-ce qu’un Thermidorien?”in Kintzler, Catherine (Ed.) La République et la Terreur (Paris, Kimé, 1996).
[27] Cf. Kramer, Johon M. : “Political corruption in the URSS” in The Western Political Quarterly, vol. 30, juin 1977. Cf. tamb;em Owen, Thomas C. : Russian Corporate Capitalism from Peter the Great to Perestoika (Oxford, University Press, 1995).
[28] Weber, Max : “Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland”(1905), in Gesammelte politischen Schriften, Tübingen, J.C. Mohr, 1971, p, 64.
[29] Monod, Jean-Claude : Qu’est-ce qu ‘un chef en démocratie? Politiques du charisme (Paris, Seuil, 2012), p. 221.