quarta-feira, 5 de maio de 2010

Correio Popular de Campinas

Publicada em 5/5/2010


Crise e liberdade de expressão




É importante, nas considerações sobre o direito de expressão, refletir sobre a crise da liberdade comunicativa. Um bom estudo, em tal campo minado, encontra-se na revista Europaea Memoria, em número coordenado por Isabelle Koch e Norbert Lenoir. O título é sugestivo: “Democracia e espaço público: qual poder para o povo?” (Zurich/New York, Georg Olms Verlag, 2008). Com este nome, os editores indicam que a crise do espaço público implica a natureza do regime político. Caso ele se queira democrático, qual democracia é nele praticada? A pergunta é similar à feita por Norberto Bobbio em situação igualmente polêmica. O grande jurista se perguntava “qual socialismo” era visado no debate europeu do século 20. Com o fim da URSS, as opções de resposta foram anuladas. Algo próximo ocorre com a democracia. Os seus dilemas se entretecem em outros e se tornam, a cada instante, mais enleados de aporias, perplexidades, surpresas agradáveis e outras nem tanto.

Os autores da coletânea apontam o lado polissêmico da palavra “crise” e sua ampla abrangência em todos os matizes sociais. Quase todos entram em acordo ao constatar que a crise é plural, jamais unívoca. Quem conhece os textos da Medicina Hipocrática e percebe os milênios de suas leituras e interpolações no mundo ocidental, sabe que não é possível usar o conceito de crise no singular, pois ele deve ser inserido numa dimensão temporal em vários ritmos. “Os médicos hipocráticos souberam precisar a noção de crise, de instante crítico, ponto de mudança rumo à cura ou rumo à morte” (Alonso Tordesillas: “L'instance temporelle dans l'argumentation de la première sophistique: la notion de Kayros”, in Le Plaisir de Parler, (Paris, Les Éditions de Minuit, 1968). O mais célebre aforismo da coletânea hipocrática é uma síntese da crise, do acúmulo do tempo e da intervenção humana na finitude. “Vida curta, técnica longa, o tempo oportuno voa, experiência engana, a crise é difícil". (Hippocrates, Aforisma, vol. IV da Loeb Classical Library, trad. W.H. S. Jones, London, Cambridge, 1979), A noção de crise enlaça tempo, saberes, juízo, relações complexas que serviram para os estudos políticos e de expressão. Não existe a crise apenas em um vetor do mundo e do saber: quando as bases dos conhecimentos e práticas estremecem, todo o edifício social e anímico está prestes a se dissolver ou a se integrar em novas formas e conteúdos.

A crise das comunicações e da livre expressão pode ser reconhecida em quatro terrenos: o institucional, o das mentalidades, o dos valores e, last but not least, o da civilização. Se os médicos hipocráticos e a filosofia ocidental tentaram vencer o tempo e atravessar crises, os nossos “sábios”, seguindo o padrão Fukuyama e similares recentes, decretam que o tempo não vigora contra a sociedade na qual a única política é a plena adesão ao estabelecido.

Ouvimos arrazoados sobre o mundo atual nos quais ressoa uma pretensa desilusão na democracia e na possibilidade de mudar o sentido das relações inter-subjetivas e coletivas. Naqueles discursos nota-se a quebra, também retórica, entre a democracia tal como ela deveria ser e como ela é efetivamente. Seria preciso, no caso, citar Jean Paul Sartre e sua avisada crítica de que a democracia - como aliás o ser humano que a produz - não é uma essência alheia ao tempo e ao espaço. Quem finge lamentar os “fracassos” da vida democrática faz um jogo: contrapõe o que o regime do povo deveria ter sido, e nunca foi, e o que ele “realmente” apresenta aos nossos sentidos lógicos e somáticos.

Aqueles supostos desencantados apontam para o modelo que está ou esteve em sua imaginação. E o comparam ao existente. Eles se declaram sem esperanças. Tais lamentos afastam as teses democráticas em prol dos piores regimes tirânicos. Quem diria, tempos atrás, que seitas “democráticas”, como o petismo, apoiariam as piores ditaduras? Entre o modelo e a realidade... elas optam pelo realismo do é dando que se recebe. Bom proveito!