'Ainda há juízes em Brasília'
04 de fevereiro de 2012 | 3h 04
Miguel Reale Júnior - O Estado de S.Paulo
Quinta-feira o Supremo Tribunal Federal (STF), pelo
apertado placar de 6 a 5, decidiu manter a competência do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) - órgão composto por nove representantes do
Judiciário e seis alheios à carreira, sendo dois advogados, dois
promotores, um membro indicado pela Câmara dos Deputados e outro pelo
Senado - para diretamente receber, conhecer e julgar reclamações contra
magistrados por descumprimento de deveres funcionais. Rejeitou-se pedido
da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), acolhido pelos cinco
votos perdedores, segundo os quais o CNJ só deveria atuar em caso de
falhas das corregedorias dos tribunais. Assim, por este entendimento só
poderia o CNJ apurar a falta funcional dos magistrados de forma
subsidiária, quando os tribunais agissem com simulação investigativa,
com inércia.
Duas razões motivaram a maioria dos ministros em sentido contrário,
reconhecendo o poder originário, e não subsidiário, do CNJ de julgar
reclamações: a clareza da Constituição e o ranço corporativista de
muitos tribunais em favor de seus membros. Lembro as manifestações de
alguns ministros: para a estreante Rosa Weber, a competência do CNJ é
originária e concorrente, e não meramente supletiva e subsidiária, sob
pena de retirar a própria finalidade do controle a ele conferido; para
Cármen Lúcia, a competência constitucionalmente estabelecida é primária e
se exerce concorrentemente com a dos tribunais; observou Joaquim
Barbosa que quando as decisões do conselho passaram a expor situações
escabrosas no seio do Poder Judiciário nacional veio essa insurgência
súbita, essa reação corporativista; segundo Gilmar Mendes, até as pedras
sabem que as corregedorias estaduais não funcionam quando se trata de
investigar os próprios pares.
Efetivamente, o texto constitucional é claro: o artigo 103B, § 4.º,
III, atribui ao CNJ "receber e conhecer das reclamações contra membros
ou órgãos do Poder Judiciário (...) sem prejuízo da competência
disciplinar e correcional dos tribunais", indicando haver competência
concorrente, e não subsidiária, com os tribunais. Além do mais, o poder
de rever decisões dos tribunais é matéria do inciso V, com técnica
legislativa a mostrar haver a regulação de duas matérias diversas:
investigar reclamações diretamente e rever decisões dos tribunais.
Mais evidente ainda fica o poder de o CNJ receber reclamações
diretamente ao se especificar, no inciso I do § 5.º do artigo 103B, como
atribuição do corregedor desse órgão "receber as reclamações e
denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos
serviços Judiciários". Soma-se, também, o disposto no § 7.º do mesmo
artigo 103B: "A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios,
criará ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e
denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder
Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando
diretamente ao Conselho Nacional de Justiça".
Deflui, portanto, da Constituição o poder de qualquer interessado
representar diretamente ao CNJ por via da sua Ouvidoria. Esta constitui o
canal de comunicação com a sociedade, pelo qual o cidadão reclama,
denuncia, elogia.
Diante da exatidão do texto constitucional, foi impossível para a
maioria do STF reconhecer que ao CNJ caberia, apenas, o poder de
conhecer denúncias em situações anômalas, em grau de recurso. Seria
mesmo um absurdo o conselho receber diretamente e admitir denúncias, mas
não ter competência para investigá-las. Se assim fosse, o CNJ viraria
mero guichê de reclamações, um Poupatempo dos tribunais.
O segundo motivo que fundamentou a orientação da maioria foi o
reconhecimento do corporativismo, da autoproteção de alguns tribunais,
aliás, acentuado no julgamento pelo procurador-geral da República. O
corporativismo desarma o jurisdicionado ante o descumprimento dos
deveres funcionais pelos magistrados, tais como a proibição de nomeação
de parentes, a necessidade de manter conduta irrepreensível na vida
pública e particular e a obrigação de tratar com urbanidade as partes e
os advogados.
Comprova-se a imprescindibilidade de órgão de controle isento de
corporativismo, como o CNJ, na não observância pelos tribunais do artigo
37 da Constituição, consagrador do princípio da impessoalidade. Não
bastou a Carta Magna vedar a pessoalidade: foi preciso a Lei Federal n.º
9.421/96 proibir, especificamente, o nepotismo no Judiciário. E, ainda
assim, não foi suficiente: o CNJ teve de editar a Resolução n.º 7 em
2005 para vedar "a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos do
Poder Judiciário". Essa resolução, tão óbvia no seu conteúdo, teve
anteriormente sua constitucionalidade contestada (felizmente, sem
sucesso) pela mesma AMB, a demonstrar a inconformidade do corporativismo
com um princípio democrático essencial.
A título de exemplo, lembro que em Pernambuco, conforme pesquisa da
Fundação Joaquim Nabuco, havia em outubro de 2005, mês da edição dessa
resolução, 99 parentes de desembargadores comissionados no tribunal.
Malgrado tantas regras, em junho de 2009 o CNJ fez diligências no
tribunal do Espírito Santo, encontrando casos de nepotismo; em 2011 a
OAB representou ao CNJ em face de casos de nepotismo cruzado no Estado
do Pará. Como deixar aos próprios tribunais apurar o nepotismo por eles
criado?
O STF, ao reconhecer a competência do CNJ para apurar quebra dos
deveres funcionais dos juízes, garantiu ao Judiciário toda a
credibilidade como uma instituição passível de investigação isenta. O
STF consolidou a via de comunicação e de aproximação da Justiça com o
povo.
Ainda há juízes em Brasília, parafraseando famosa expressão de um
moleiro diante do rei da Prússia, em conto de François Andrieux.