Para Roberto Romano, parlamentares se protegem como em sociedade secreta: 'Eles têm o passaporte da impunidade'.
SÃO PAULO - O foro especial dos parlamentares é um dos fatores que
aumentam a insensibilidade na política brasileira em relação ao que é
ético, moral, legal ou normativo. A avaliação é do professor de ética e
filosofia da Unicamp Roberto Romano, para quem os escândalos no
Congresso aumentam o sentimento de impunidade e reforçam a cultura da
apropriação de recursos públicos para aumentar o patrimônio pessoal. A entrevista concedida a Flávio Freire está na edição deste domingo em O GLOBO. (Relembre os escândalos do Congresso)
Como avalia os últimos episódios no Congresso?
ROBERTO ROMANO: Estão aumentando a sensação de impunidade, alheios à
vida civil. É uma espécie de consciência de casta que leva a essa
insensibilidade entre o que é ético, moral, legal, normativo.
Mas o que provocaria esse tipo de atitude dos legisladores?
ROMANO: O ponto crucial está no privilégio do foro. A partir do
momento que foi proclamado o privilégio de foro, a audácia, a
insensibilidade, a grosseria da classe política aumentou. Eles têm
certeza da impunidade. Setores do Ministério Público, quando o
privilégio de foro foi proclamado, se pronunciaram e disseram que
estaria autorizada a vida boa dos improbos. Isso é verdade. Se olharmos o
Supremo Tribunal Federal, o ministro que está encarregado de julgar o
caso do mensalão (Joaquim Barbosa) já disse que considera o privilégio
de foro uma teratologia política, sem razão de ser.
Se fossem julgados como cidadãos comuns, os parlamentares teriam mais cuidado com o dinheiro público?
ROMANO: Há uma coisa problemática do ponto de vista da Constituição,
da moralidade administrativa, já que o próprio STF não é questionado por
quem de direito. Temos a OAB, o Ministério Público, tudo o que deveria
entrar com uma ação de inconstitucionalidade. Aí chegamos à hipocrisia
que se instalou no país. É fácil transformar o Congresso na Geni da
história, mas não perguntamos por que o STF não é interpelado. Não tenho
ilusão de que o fim do foro privilegiado vá acabar com a corrupção, mas
não tem sentido continuar do jeito que está. Além da oportunidade da
delinquência, você dá oportunidade para quem delinque.
O corregedor da Câmara, ACM Neto, disse que a imprensa tenta fechar o Congresso...
ROMANO: Quando o corregedor usa esses termos, imagina o resto. Acabou
a distinção de baixo clero, alto clero. Eles estão no "todos por
todos", têm o passaporte da impunidade. Tudo o que se fizer contra eles
vai parar no STF, e nunca vai ser julgado. Ninguém, até hoje, foi punido
pelo Supremo. A punição que existe é por abuso de autoridade, que levou
dois governadores a perder o cargo, o que é problemático, porque
privilegia o perdedor, abençoando a pessoa não escolhida pelo eleitor.
Há um protecionismo entre os parlamentares para evitar que se denunciem?
ROMANO: É a lógica da sociedade secreta. Não por acaso, o filósofo
Merleau Ponty, analisando Maquiavel, diz que esse mundo político
corrompido lembra muito uma comunhão negra dos santos. Quer dizer, são
santos na luz do dia. Mas a comunhão negra existe, e todos se protegem.
'Virou praxe na política a tese de que a coisa pública é coisa de ninguém'
O debate sobre o uso indevido de recursos públicos por parte dos
parlamentares fica no meio do caminho entre a ausência de regras
normativas e a falta de ética, afirmam cientistas políticos ouvidos pelo
GLOBO. Seja no caso da farra das passagens aéreas ou nos cabides de
emprego sustentados com as verbas indenizatórias, o fato é que a falta
de cerimônia na apropriação de dinheiro do contribuinte para aumentar o
patrimônio pessoal parece ter se transformado, dizem os analistas, num
vício entre legisladores brasileiros, fomentado pelo sentimento de
impunidade.
- Esses últimos acontecimentos refletem um vício antigo que passou a
ser tratado dentro da normalidade, o que é perigoso. A tese de que a
coisa pública é coisa de ninguém se transformou em praxe na política -
analisa o cientista político Dalmo Dallari, para quem a publicidade dos
escândalos pode ajudar a conter a onda de corrupção no Congresso. - A
divulgação deve refletir diretamente nas bases eleitorais, e aí sim eles
(os parlamentares) sentirão o baque - completou.
O "casamento" entre os problemas institucionais e éticos ajuda a
revelar uma situação sombria no Congresso, segundo o presidente do
Centro de Estudos e Pesquisa da Comunicação (Cepac) e professor da
Fundação Getulio Vargas (FGV), Rubens Figueiredo.
- A absoluta falta de normas cria um problema institucional. A falta
de cerimônia dos parlamentares no uso de recursos públicos cria um
problema ético. Quando conjugamos esses dois fatores com uma opinião
pública pouco escolarizada, com a banalização dos escândalos e com a
falta de consequência em relação aos atos de quem infringiu a lei,
chegamos a essa situação lamentável - diz Figueiredo, lembrando que a
impunidade provoca a ousadia dos infratores.
Há também quem acredite que o foro privilegiado de deputados e
senadores, no caso do Congresso, ajuda a fortalecer o crime na política.
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