Sobre o físico e o metafísico
Um dicionário dedicado ao corpo e um livro que trata da consciência corporal promovem o debate em torno das filosofias que defendem o papel político do homem como construtor do seu destino
06 de abril de 2012 | 21h 00
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
A noção do 'corpo glorioso' elaborada na Idade Média,
que reflete a crença dos cristãos na ressurreição dos mortos, suscita
perguntas que nem de longe passariam por mentes medievais, mas fazem
sentido na sociedade contemporânea, laica e hedonista. Afinal, um corpo
divino alimenta ao mesmo tempo uma especulação teológica e uma abordagem
materialista. O corpo - visível, como o humano, ou invisível, como o de
Cristo, precedente do corpo ressuscitado - é um tema tão fascinante e
abrangente que a filósofa e professora italiana Michela Marzano,
identificada com o pensamento libertário de Michel Foucault, resolveu
reunir 190 profissionais de diversas áreas para criar mais de três
centenas de verbetes do seu Dicionário do Corpo, lançamento da Loyola e Centro Universitário São Camilo. Simultaneamente, a editora É Realizações publica outro estudo, Consciência Corporal, do filósofo norte-americano Richard Shusterman, que, de certo modo, complementa o dicionário.
Reprodução
'Dicionário do Corpo' reúne 300 verbetes, escritos por 190 especialistas
Shusterman, que falou ao Sabático, aborda em seu livro a
obra de pensadores que são verbetes do dicionário de Michela Marzano:
Foucault e Merleau-Ponty. Além deles, o pensador analisa Wittgenstein,
Simone de Beauvoir e dois filósofos pragmatistas do século 19 que se
dedicaram a criar teorias sobre o corpo, William James e John Dewey.
Shusterman, conhecido por suas contribuições à filosofia estética (ele
teve o seu Vivendo a Arte lançado pela Editora 34), cunhou o
termo "somaestética", apropriando-se do conceito grego de corpo (soma)
para criar essa subdisciplina filosófica. Com ela, Shusterman propõe uma
nova concepção da estética a partir da experiência corporal - "sem as
conotações negativas que corpo e carne têm em nossa tradição filosófica,
ligada à depreciação cristã do corpo".
Shusterman, judeu secular que trabalhou para o serviço de
Inteligência de Israel nos anos 1970, diz que não se ocupa muito da
religião, mas lembra, em plena Semana Santa, que o cristianismo "não faz
o menor sentido sem o corpo". Seu argumento: "Como, então, explicar a
encarnação de Cristo e seu sofrimento na cruz se for de outro modo?" Uma
das possíveis respostas está no dicionário de Michela Marzano (os
verbetes mais extensos são sobre o corpo de Cristo) ou no novo livro de
Shusterman, que ele acaba de lançar pela Cambridge, Thinking Through the Body: Essays in Somaesthetics.
"Nele, não confino minha discussão sobre religião às três religiões
abrâmicas que emergiram do Oriente Médio (cristianismo, judaísmo e
islamismo), até porque as religiões asiáticas foram mais importantes na
formação de minha prática somaestética."
De fato, em Consciência Corporal, Shusterman invoca ideias
confucionistas sobre o corpo e fala de seu treinamento com um mestre zen
num mosteiro japonês, onde passou um ano fazendo pesquisas para
escrever o livro. Ele defende que sua "somaestética" não deve ser
confundida com a defesa hedonista do prazer corporal. "É um projeto que
visa prioritariamente ao desenvolvimento de nossa percepção sensorial,
valorizando o corpo como fonte de informação." Filósofos - e Foucault
foi exceção - não são propriamente atletas que pensam o corpo. A
maioria, segundo Shusterman, segue a tradição idealista dominante,
reforçada pelo credo cristão, "focado na alma imortal, e não no corpo
mortal". Ele tampouco é fã do modelo terapêutico convencional, quase um
substituto da religião. "Terapia vem da palavra grega cura, que implica a
existência de uma doença que precisa ser curada, algo errado que
precisa ser consertado." Seu approach, diz ele, é mais "positivo e
enriquecedor".
Se a somaestética de Shusterman, convertido da filosofia analítica
para o pragmatismo, parece destinada à polêmica, o dicionário de Michela
Marzano deve provocar barulho maior pelos conceitos nele defendidos por
profissionais convidados a escrever os verbetes, a começar pelo
primeiro, ‘abjeção’, tema explorado na literatura por Borges e Joyce,
entre outros modernos. A própria organizadora dá o pontapé inicial, ao
se concentrar nos orifícios corporais. Michela recorre tanto ao Levítico bíblico
como à psicanálise de Lacan, passando pela abjeção feminina freudiana
(e ela descreve o desgosto de Freud ao ver uma paciente de boca aberta).
Os verbetes são os mais inesperados: falam tanto do "corpo glorioso"
quanto de movimentos artísticos radicais, como o "acionismo vienense" -
criado em 1962 contra o formalismo, ele teve no austríaco Rudolf
Schwarzkogler (1940-1969) seu exemplo mais trágico, morto por
defenestração, após inúmeras performances que sugeriam automutilação.
Todas a áreas artísticas são contempladas no Dicionário do Corpo:
há um verbete para a pintura do inglês Francis Bacon, que distorceu o
corpo ao ponto da deformação, outro para o homem de teatro francês
Antonin Artaud, que exaltou o corpo selvagem e acabou num hospício,
tomando eletrochoques, e até um para o cineasta canadense David
Cronenberg, em cartaz com seu Um Método Perigoso, sobre a
relação Freud/Jung. O objetivo de Cronenberg, segundo a organizadora do
dicionário, autora do verbete, é mostrar no cinema o nascimento do homem
tecnológico - meio carne, meio máquina - como o casal entediado do
filme Crash (Estranhos Prazeres, 1996), que se entrega
a uma forma pervertida de sexualidade ligada à mutilação, após um
acidente de automóvel. O diretor fala de uma mutação antropológica
provocada pela obsessão doentia com o carro.
A filósofa Michela Marzano adora cinema. Dedica outro verbete ao
italiano Fellini, "o cineasta da ambivalência humana". Seus personagens
desmedidos, monstruosos, disformes, segundo a organizadora, não têm
muito a ver com os freaks de Tod Browning. Antes, essa disformidade
"nunca se inscreve em um estrito dualismo belo/feio", argumenta,
concordando com o escritor Italo Calvino quando ele diz que o
monstruoso, em Fellini, é recuperado pelo humano. Longe de ser uma
simples caricatura, um "monstro" de Fellini "obriga-nos a ficar face a
face com o homem em tudo o que ele tem de sublime e de bárbaro", conclui
Calvino.
Essa palavra, barbárie, era muito cara ao também cineasta italiano
Pier Paolo Pasolini, outro verbete destinado à controvérsia, com o do
filósofo Foucault. Curiosamente, o verbete "barbárie" precede o de
"Barbie" no dicionário. Pasolini dizia que o único sistema ideológico
possível numa sociedade laica como a nossa seria o consumismo - e sua
profecia, afinal, revelou-se verdadeira. Contra esse tipo de civilização
agressiva, que faz do consumo seu deus, se justifica até uma nostalgia
da barbárie primitiva, um "traço indestrutível" do ser humano, segundo o
verbete. Barbie, um ícone desses corpos modernos e sem alma - vítimas
das plásticas, do botox e do silicone - transformou-se num bizarro
tecnocorpo sem transcendência. Contra o conformismo da sociedade
consumista que adotou a Barbie como modelo, Pasolini defendeu uma
"política do corpo" semelhante ao "biopoder" de Foucault - e essa
aproximação não escapa ao filósofo e professor René Schérer, irmão do
cineasta Eric Rohmer, que assina o verbete sobre o diretor de Teorema.
Schérer elege esse longa como o "mais gnóstico" dos filmes
pasolinianos, por evocar um primeiro paraíso, onde o seio acolhedor
seria não o da mãe, mas o do pai (bissexuado, antecessor da
diferenciação sexual). Por política do corpo, entenda-se que esse credo
um tanto herético - e Pasolini nunca negou ser um herege - não impediu
que o cineasta italiano realizasse o mais belo dos filmes sobre a paixão
de Cristo (O Evangelho Segundo São Mateus). Ou exaltasse o mito dionisíaco em Medeia.
Foucault, igualmente, se insurgiu contra os poderes constituídos, que
tiranizam o corpo, para formular sua ideia de um biopoder. "Ele mostrou
que o corpo não é simplesmente um objeto que o sujeito tem ou usa, mas
um elemento central na construção de nossa subjetividade - nós nos
tornamos os sujeitos que somos pelo modo como nossos corpos são
formatados, disciplinados, treinados e cultivados", diz Richard
Shusterman na entrevista ao Sabático.
Ao defender o prazer carnal, diz Shusterman, Michel Foucault - que
era homossexual - desafiou toda uma tradição intelectual no Ocidente
ligada à ascética negação do corpo. No livro, Shusterman não deixa de
observar que Foucault também ignorou algumas formas de prazeres
somáticos que podem ser obtidas sem recorrer à violência ou à
transgressão. Alguém alienado em relação ao corpo, completa, está
propenso não apenas à decadência, mas impossibilitado de ajudar o
próximo, se atingido por alguma doença. E o dicionário enumera uma série
delas. Sem moralismo, como convém ao saber enciclopédico.
Trechos - Dicionário do corpo
Fellini, Federico
"Seu cinema é sempre uma maneira de
encarnar a desordem e a falta de forma da vida. Mas ao fazê-lo, Fellini
nunca se afasta da realidade de seus personagens e mantém um constante
compromisso com o real. Ele não olha para seus heróis de um ponto de
vista exterior e frio; ele sempre está junto com eles. Daí a facilidade
com a qual ele permite que os espectadores vivam cada pulsão e cada
decepção, fazendo a 'queda' ser sentida tanto por aquele que a sofre
como por aquele que a provoca. Daí, por fim, seu recurso constante ao
mundo do circo como metáfora da própria existência humana."
Freud, Sigmund
"Seria preciso um longo percurso para dar
conta do desenvolvimento freudiano, mas é suficientemente claro que esse
caminho é incompatível com toda espécie de oposição mente/corpo ou
psique/soma. A partir da distinção princeps -percepção/traços mnésicos
dessa percepção -, as oposições que Freud faz trabalhar nunca são mais
que facetas de uma mesma realidade, que faz do corpo um vasto campo
significante. Isso vale para a pulsão, conceito-limite entre o psíquico e
o biológico, ou para a angústia, presa entre os jogos complexos do
afeto e da representação."
DICIONÁRIO DO CORPO
Organização: Michela Marzano
Tradução: Lúcia Pereira de Souza, Maria Stela Gonçalves, Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha e Nicolás Nyimi Campanário
Editoras: Loyola/Centro Universitário São Camilo (1.096 págs., R$ 230)
Tradução: Lúcia Pereira de Souza, Maria Stela Gonçalves, Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha e Nicolás Nyimi Campanário
Editoras: Loyola/Centro Universitário São Camilo (1.096 págs., R$ 230)
CONSCIÊNCIA CORPORAL
Autor: Richard Shusterman
Tradução: Pedro Sette-Câmara
Editora: É Realizações (352 págs., R$ 69)
Tradução: Pedro Sette-Câmara
Editora: É Realizações (352 págs., R$ 69)