terça-feira, 31 de janeiro de 2012


Marta Bellini.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Be quiet!

Konstantin Simonov (1915-1979) é a figura central e talvez (dependente do ponto de vista do leitor) o herói trágico de Sussurros. Nascido de uma família nobre que sofreu repressao do regime soviético, Simonov refez-se como "escritor proletário" na década de 1930. Apesar de praticamente esquecido hoje em dia, Simonov foi uma figura importante no establishment literário soviético - tendo recebido seis prêmios Stalin, um prêmio Lenin e um prêmio de Herói do Trabalho Socialista. [...] Simonov tornou-se uma figura importante na União dos Escritores entre 19545 e 1953, período em que os líderes da literatura soviética foram convocados pelos ideógos de Stalin para participar da perseguição aos colegas que fossem considerados excessivamente liberaiss e para se juntar ao coro da campanha contra os judeus nas artes e nas ci6encias. Uma das vítimas desse antissemitismo oficial foi a família Laskin, mas àquela altura já estava envolvido demais com o regime stalinista para ajudá-la. De todo o modo, talvez não houvesse nada que pudesse fazer.

Excerto do excelente livro que leio SUSSURROS.  a vida privada na Rúsia de Stalin, de Orlando Figes. Editora Record.

  "...uma fascinante enciclopédia das relações humanas' (Andrei Kurkov) cf blog de Rui Bebiano

Degenerescência européia...

Blog de Joana Lopes AQUI

Desbragada humilhação


Qualquer que venha a ser o resultado da proposta da transformação da Grécia em protectorado, feita (obviamente…) pela Alemanha, toda a indignação possível nunca é demasiada, nem sequer suficiente. Chegou-se, como muitos já escreveram, ao «fim da linha». E onde está «Grécia», leia-se amanhã «Portugal».

Um dia, talvez a Europa acorde gerida por um funcionário de um outro continente. Se não estivéssemos a falar de coisas muito sérias e desgraçadas, apetecia dizer: «Bem feito!».

A reter, dois textos de hoje:

«A história da decadência da União Europeia entrou num novo estádio e a mais desbragada humilhação está em curso. (…)
A soberania já tinha sido hipotecada a troco do empréstimo externo. Agora a Alemanha espera que lhe seja oferecida de boa-vontade – como se houvesse uma espécie de quinta coluna em todos os países europeus prontos a facilitar a ocupação alemã sem resistência. (…)
O que é espantoso é a naturalidade com que a Alemanha – a quem a Europa perdoou a dívida da Segunda Guerra – acorda agora todos os monstros possíveis sem tremer. (…)
A degenerescência europeia atingiu o seu ponto de não retorno.»

Manuel António Pina, Passa para cá a soberania
«Os olhos cobiçosos da sra. Merkel não são substancialmente distintos, senão nos processos, dos que uma outra Alemanha deitou há décadas à soberania dos países vizinhos, Grécia incluída. Taxas de juro usurárias e batalhões de burocratas com "certos poderes de decisão" que reforcem "o controlo dos programas e das medidas 'in loco'" são coisa mais discreta mas não menos arrasadora do que "panzers" e exércitos de ocupação. O seu efeito prático é, porém, o mesmo: a sujeição de um país e de um povo.»

Segunda-feira, 30 de Janeiro de 2012

A ética indolor

Será que nesta época em que vivemos o cumprimento do dever foi ofuscado pela fruição do prazer individual, que nos tornámos indiferentes ao sofrimento alheio, que as atitudes altruístas se esfumaram?
Lipovetsky, na obra O crepúsculo do dever: A ética indolor nos tempos democráticos (1994) afirma que as lições intransigentes da moral desertaram do espaço público e privado, o imperativo maximalista do coração puro, os apelos à dedicação absoluta, o ideal hiperbólico de viver para o outro, todas estas exortações deixaram de ter ressonância colectiva; a hora é da desvitalização da forma-dever, do estiolamento do mandamento moral infinito (p. 147).
Porém, se olharmos para a realidade circundante constatamos uma pluralidade de acções humanitárias e de beneficência. Em particular, os media, com destaque para a televisão, lançam constantemente campanhas de solidariedade, sempre que ocorrem catástrofes naturais ou outras, bem como desnortes económicos. Este olhar não pode deixar de nos dar ânimo: afinal não vivemos num quadro apocalíptico configurado pelo vazio axiológico total. Lipovetsky talvez esteja errado.
Um pouco mais adiante (p. 148-150), este autor esclarece esse quadro: a “ética beneficia de uma legitimidade readquirida, isso não significa a reinserção, no coração das nossas sociedades, da boa e velha moral dos nossos pais, mas sim a emergência de uma regulação ética de um tipo inédito”. Aquilo a que assistimos é uma pós-moralidade, traduzida na substituição do “imperativo altruísta” pela agitação caritativa, assente, esta, numa “moral sem obrigações nem sanções”.
O sujeito não tem relutância em afirmar o desejo de viver prioritariamente para si, de afirmar o seu hedonismo narcisista, o qual, por mais acentuado que seja, não aparece como imoral e, ao contrário de ser censurado, é legitimado pelo contexto individualista. Nesta cultura pós-moralista o sujeito tem sobretudo direitos subjectivos e não deveres de abnegação.
Mas, voltando acima, será que o sujeito contemporâneo recusa fazer o Bem? A opinião de Lipovetsky é que esse sujeito, cada um de nós, não renuncia à dádiva e à solidariedade, mas apenas em situações excepcionais de urgência, de vida ou e morte, e na condição disso não representar um grande sacrifício ou uma renúncia aos seus próprios prazeres. A “generosidade é circunstancial”, exteriorizada somente em situações de grande sofrimento humano”, a “preocupação ética, gera, no mais fundo de si mesmo, um altruísmo indolor de massas” (p. 153 e 157).
Deixámos de louvar a exigência permanente de nos consagrarmos ao outro. E aqui Lipovetsky socorre-se de Jankélévitch: “o tempo do imperativo categórico deu lugar a uma ética minimal e intermitente da solidariedade compatível com a primazia do ego” (p. 157).
Será pertinente agora perguntar se a moral tradicional, caracterizada pelo “espírito de disciplina uniforme e autoritária” fez perder todos os critérios éticos, tornando quaisquer atitudes e acções aceites e toleráveis.
A resposta de Lipovetsky é também negativa (p. 167): embora seja incontestável o desgaste de muitos referenciais seguros, continuamos a defender um conjunto de valores consensuais que apontam para critérios transsubjectivos, para exigências morais mínimas.
Continuamos a repudiar os comportamentos que ponham em causa a integridade e a segurança, “a escravatura, os crimes de sangue, a crueldade, a espoliação, a humilhação, as mutilações sexuais, a violação, as sevícias psicológicas e físicas” (p. 168). A nossa capacidade de indignação moral não morreu.

Helena Damião e Dulce Silva

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Um texto meu, editado pelo CAFIL (Centro Acadêmico de Filosofia, IFCH Unicamp).


Entre a ética e a Estética. Arte, política e crítica social em Diderot

Ao analisar a Divina Comédia, especialmente as passagens sobre o Purgatório, Erich Auerbach (1) afirma que aos habitantes daquele lugar, como têm a alma separada dos corpos, Dante concede um corpo espectral tornando-os reconhecíveis para que posssam se exprimir e sofrer (2) A relação dos referidos entes com a vida terrena limita-se à memória. O poeta acrescenta que eles possuem conhecimentos do passado e do futuro, os quais ultrapassam as medidas terrenas. Todos enxergam com nitidez como se fossem hipermétropes. Acontecimentos ocorridos na terra num passado longinquo estão ao seu alcance. Eles podem predizer o futuro mas permanecem cegos para o presente terreno, pois vivem uma experiência parada no tempo. Os mortos estão privados do presente terreno e das suas mudanças, mas a memória e a participação no mesmo mundo é imaginada por Dante de tal modo, que a paisagem do além está cheia dele. Existem filósofos que vivem como se estivessem no purgatório dantesco, porque exibem visão aguda, conhecimento do passado e do porvir, mas seu juízo sobre o presente em que vivem é quase nulo. Diderot abriu caminhos para o pensamento filosófico, político, cientítico e artístico no século 18. Seu diagnóstico do mesmo século, no entanto, deixa muitas sombras para a crítica. Quase todos os testemunhos severos do pensador sobre seus dias vieram a lume post mortem. É o caso, em especial, do Sobrinho de Rameau. Os manuscritos sobre o Projeto de uma Constituição, acerba crítica do pretenso “despotismo esclarecido” de Catarina 2 mostram o quanto era violenta a inconformidade que residia na mente diderotiana em relação aos usos e costumes políticos contemporâneos. Mas é sobretudo no



campo do relacionamento entre ética e estética que os textos diderotianos mostram sua maior zona de sombras. Defensor da liberdade e das procedimentos técnicos em todas as áreas do espírito, ele ajudou muito na tarefa emancipatória da modernidade. Mas a sua apologia das artes foi definida por valores transcendentes ao campo artístico, a ele impondo amarras que não lhe cabem. “O sestro de Horácio era versejar, o meu, moralizar”. Esta frase diz bem o problema herdado pelos comentadores de Diderot: sua idéia da arte, liberadora tendo-se em conta os costumes do século 18, é marcada por preocupações de ordem ética. Não estaria aí uma pista para se entender os idéarios do século 19 e 20 que pretenderam domesticar a estética em prol de alvos doutrinários ? Para efetivar um juízo seguro sobre tal ponto é preciso um trabalho amplo e objetivo de cotejo dos textos e da vida cultural moderna. Existem tentativas ligadas a fases posteriores da história européia, nas quais elos são estabelecidos, por exemplo, entre doutrinas políticas e visões estéticas. Os escritos de Paul Benichou, como o fundamental Le temps des prophètes, doctrines de l ´âge romantique, entram nesta linha de pesquisa. No caso do século 18 e principalmente de Denis Diderot, existem os materiais no canteiro de obras, mas poucos trabalhos analisaram sistemáticamente a importância da hegemonia ética sobre as reflexões estéticas do enciclopedista.

Um traço fundamental do pensamento diderotiano encontra-se na tentativa, só prosseguida com intensidade igual ou superior no romantismo do século 19, de encontrar conexões entre os sentidos humanos, o que Diderot chama de “tradução” na tarefa de buscar atalhos entre as artes, as



ciências, as técnicas. A Encyclopédie traz os materiais para semelhante tarefa. Em textos de crítica literária ou sobre a pintura, a música, a poesia, Diderot apresenta muitas pistas, mas é necessário, evidentemente, indicar as fontes inglêsas e francêsas —além das gregas antigas e romanas— da tarefa empreendida pelo filósofo. Não é possível esquecer John Locke e Berkeley, que deram tanto a base epistemológica quanto o aguilhão a ser vencido para que o pensamento diderotiano se explicitasse. Também não é possível olvidar Condillac, sobretudo o do Ensaio sobre os conhecimentos humanos. Importa, no entanto, sublinhar a exploração da sinestesia, algo que se encontra entre o sonho e o delírio —e por tal motivo, apreciado pelos românticos— para se compreender o quanto importa, na ética e na estética formuladas por Diderot, a tentativa de abrir passagens entre os sentidos e as
artes, como pressuposto da reforma da sociedade e do Estado.

Herder fez notar que os sentidos, cada um deles, “tem a sua linguagem específica, os seus sinais, os seus tipos e esquemas. E com eles, também um diferente potencial de conhecimentos e mobilização afetiva. Cada sentido tem a sua ontologia específica. Sendo o mais universal e o mais amplo, a vista tem limites, pois depende das condições da luz e da visibilidade. Mas onde falha a luz e a visão, ainda resta lugar para outras modalidades da percepção humana”. (3) Tal doutrina deve-se a Diderot. O pressuposto da pesquisa com base visual era a permanência do objeto verdadeiro. Diderot recusa ao mesmo tempo o símile optico para o conhecimento e a idéia de ordem para o mundo físico e humano. O caos é anterior e sucede a todo conhecimento. (4) “O universo” diz R. Nicklaus ao comentar a atitude filosófica diderotiana, “desde toda a eternidade toma formas diferentes num devir incessante sem começo nem fim, enquanto nosso mundo finito segue



lenta mas inelutavelmente rumo ao seu próprio fim numa ‘depuração geral’”. (5) A partir da Carta sobre os cegos e da Carta sobre os surdos e mudos não existe supremacia dos olhos, os demais sentidos não imitam a vista. É preciso a tradução de um sentido para outro.

Seguidor de Francis Bacon, Diderot assume a idéia do pensador inglês segundo a qual a visão sinótica em ciência é modificável pelo trabalho do pesquisador. A comunicação entre os sentidos corresponde a uma arte. A sua junção permite dizer que não há mais a idéia de espaço único, mas pelo menos de cinco espaços: o optico, o tátil, o sonoro, o cinésico, o olfativo. Cada um deles possui estrutura própria e descontínua em relação a todos os demais. Só a tradução de uns aos outros permitiria captar a simultâneidade entre nós e nós mesmos, entre nós e os demais seres humanos. “Nossa alma é um quadro que se move, segundo o qual nós pintamos sem cessar…o pincel executa em longo prazo o que o olho do pintor abarca num só golpe”. Torna-se preciso “tatear” a alteridade a ser conhecida sob pena de reduzí-la ao idiotismo do sujeito ou de uma função subjetiva posta arbitráriamente como superior (é o caso do imperialismo do olhar, na tradição metafísica) às demais. O próprio sujeito é uma reunião instável de sentidos : “todos os nossos órgãos são apenas animais distintos que a lei da continuidade mantém numa simpatia, numa unidade, numa identidade geral”. O eu, segundo Diderot, “resulta da memória, a qual liga um indivíduo à sequência de suas sensações”. A ciência e a cultura, assim, tornam-se mais árduas, mais exigentes, mais incertas. Não é mais possível aceitar a suposta harmonia, ou o cosmos. O conhecimento pode ser atingido, mas o dogmatismo é refutado na sua raíz. (6)



Cito Laurent Versini, o editor abalizado das obras diderotianas, que analisa o tema indicado acima. Como são constituidos o nosso conhecimento dos objetos e a linguagem? “A partir das percepções simultâneas ou sinestesias. Como o artista poderia expôr essas percepções simultâneas? Ele deve ser ao mesmo tempo pintor, músico e poeta, e jogar com as correspondências e sinestesias como um simbolista. O pintor, condenado ao instantâneo, é o primeiro distanciado, mesmo se escolhe bem o seu ‘momento’. O poeta, que pode desenrolar todo um fresco no tempo, sai vencedor do confronto, idéia que sempre atormentou Diderot, quando ele quis muito honestamente homenagear os pintores nos Salões”. Mas o enciclopedista não desistiu também, nunca, de encontrar analogias que permitissem “reunir as belezas comuns da poesia, da pintura e da música”.

Tal procura o levou a examinar projetos como o do Padre Castel, com o invento do cravo ocular em cujas teclas seriam executadas sinfonias coloridas. Além de mergulhar nos mais obscuros campos da raison d´État e da ética, Diderot dedicou seu tempo à busca da beleza na literatura e nas artes. O pensador desempenhou um papel essencial na história crítica da arte. (7) É claro que ele teve antecessores imediatos como Roger de Piles, do qual conheceu o Abrégé de la vie des peintres (1699) e o Cours de peinture par principes (1708). Nos escritos sobre os Salões, Diderot apoiou-se em Charles Lebrun (8). Consultando-se o livro fundamental de Lebrun, Expressions des passions de l ´âme (1727) (9) é possível notar a relevância
dada ao rosto humano, seguindo Lebrun explicitamente André Alciati (10) e Giambattista Della Porta (11). Pela escolha dos autores, pode-se aventar a hipótese de que Diderot busca na pintura a passagem do mundo interior das


paixões para a visibilidade representada artísticamente. Como indica Laurent Versini, Diderot conhece, além de livros sobre a referida arte, obras importantes sobre as técnicas antigas e modernas como as seguintes: Laocoonte, o Gladiador que morre, o Hércules de Farnesio, a Venus de Médicis, etc. Tais modelos, copiados milhares de vezes com menor ou maior perícia no mundo artístico e comercial que reproduzia originais, encontram- se na memória de Diderot. Além disso, ele viu quadros da Renascença e do século XVII nas coleções do Duque de Orleans (Palais-Royal) e de outros colecionadores, entre os quais o barão d´Holbach. Como grande parte dos pensadores europeus, ele sempre desejou viajar pela Itália, mas não conseguiu. À semelhança de Imanuel Kant, compensou a falha com livros que descrevem aquele país, por exemplo a Description de l ´Italie do padre Richard (1760). (12) Quando esteve na Russia, Diderot passou por Leyde onde viu, maravilhado, os quadros de Rembrandt. E também esteve no Hermitage. Assim, sua pena fez um apanhado considerável de informações técnicas que lhe serviram bastante quando descreveu quadros de excelente, média ou medíocre qualidade.

Com isso, ele penetrou a cultura mais ampla e o campo pictórico que determinaram a Europa do século dezoito, tempo em que Rafael torna-se um paradigma, seguido de Rubens, de La Sueur (assuntos religiosos), Tenier para a pintura de gênero e de Lorrain, Vernet, Robert. Aqueles modelos alarmam, como diz Versini, “os pigmeus” da época diderotiana. Como todo serviço em estado inicial, Diderot começou sua empreitada no mundo da pintura de maneira frouxa. Em 1767, no entanto, apresentou um balanço profundo e extenso daquele ofício na França.



O método diderotiano de trabalho reúne técnica e estética e com ele se inicia a união, na crítica, de arte e literatura tal como exercida por escritores como Baudelaire (13) e os irmãos Goncourt. (14) A exemplo de seus adversários, Fréron em especial, (15) Diderot trabalhou como jornalista que remete textos (16 ) para um periódico, com o alvo de informar o leitor. Desse modo, ele forneceu elevação ao jornalismo, afastou-o das práticas cotidianas (libelos, crônicas da corte, sensacionalismos, notícias das bolsas, etc.).

Diderot, bem antes dos Salões, se interessa pelas artes plásticas. Como lembra Pierre Lepape, desde 1758 ele compreendeu as dificuldades da tarefa que reside em entender a pintura. Contra os dilentantes literários que julgavam os quadros com soberana ignorância, ele diz que tais críticos nada sabem “do desenho, das luzes, das cores, nem da harmonia total, nem das pinceladas…”. Como é o seu procedimento habitual, o teórico vai “ao encontro dos pintores, com eles discute os problemas de estética e de técnica”. (16) Os seus comentários mais célebres, os Salões, foram escritos a pedido de Grimm, que mantinha a Correspondência Literária, jornal cujos leitores eram os poderosos europeus (reis, nobres, ricos). Diderot precisava descrever fielmente o que via nos quadros para atrair a atenção dos distantes “observadores” para os procedimentos, os assuntos, a maestria ou ineficácia dos artistas, etc. Já ao dirigir a Encyclopédie ele mergulhara no aprendizado trazido pelos métodos de pintura ao frequentar os próprios artesãos (o que ele fez com quase todos os verbetes que editou ou redigiu). No artigo de sua lavra sobre a composição, pode-se encontrar algumas das bases programáticas dos Salões.



Vejamos por exemplo o que ele entende por composição na Enciclopédia. (17)  Em primeiro lugar, trata-se de uma parcela da arte que representa na tela um assunto qualquer, da maneira mais vantajosa. “Vantagem” aqui significa “emprego eficaz segundo os fins da pintura” e não o jeito de agradar os olhos do observador ou requerer dispêndio monetário do seu bolso. A composição exige que se conheça bem, seja na história ou no interior da natureza, ou ainda na imaginação, tudo o que supõe o assunto. Não basta conhecer, é preciso possuir o gênio (génie) que usa tais dados com o gosto conveniente. Conhecimento e gênio não dispensam a disciplina e o hábito do trabalho duro. Tais são as condições subjetivas para o trabalho artístico. Um quadro bem composto é “um todo fechado num só ponto de vista, no qual as partes concorrem para o mesmo fim e formam por sua correspondência mútua um conjunto tão real, quanto os dos membros num corpo animal, de modo que um pedaço de pintura feito por um grande número de pinceladas ao acaso, sem proporção, sem inteligência ou unidade, não merece o nome de verdadeira composição, tanto quanto estudos esparsos de pernas, nariz, olhos, na mesma cartolina, não merecem o nome de retrato ou mesmo de figura humana”. Os termos desse trecho denunciam, em alguém cujo apelido é Tonpla, Platão invertido, a leitura direta do filósofo grego. 

Mas se Diderot conhece os Diálogos na ponta da lingua, ele inverte em sentido materialista as teses platônicas. A figura do corpo indicada acima é extraída do Fedro (238a) e nela faz-se referência ao discurso “que deve ser constituido como



um ser vivo, com um corpo próprio, de tal modo que não lhe falte cabeça ou pés, mas possua um meio e extremidades em relação umas com as outras partes, redigidas para um todo”.(18) Não apenas na pintura ou na escrita o preceito platônico é seguido por Diderot. Ele o assume, como sagaz leitor da República, no ordenamento político: o Estado deve ser um todo cujos membros devem ser harmonizados de modo vital : “se o corpo é bem composto, se os seus membros são bons, honestos e bravos cidadãos, patriotas zelosos, homens justos e esclarecidos, que bela coisa é aquele corpo!”. (19) O bom, próprio da ética, encontra-se com o belo, mais apropriado à estética. Ambos são requisitos do convívio entre os seres humanos. Como enuncia Jacques Chouillet: “por mecânico que seja o ´corpo social´, por corpórea que seja a sociedade humana, ela sempre será resolvida numa soma de vontades livres, que o filósofo materialista e determinista que se chama Diderot considera como o último resíduo definível do fenômeno humano”. (20 )

Platão indica o discurso e a grafia, Diderot aponta para a pintura, numa sequência que une, ainda no espírito platônico, a grafia enquanto escrita e arte pictórica. (21) Mas também é clara a presença da Epistola aos Pisões.(22) Diderot a adapta mas não esquece o símile entre pintura e poesia, essencial no texto horaciano. (23 ) É o que afirma o mesmo Diderot logo a seguir: “o pintor é sujeito em sua composição às mesmas leis que o poeta na sua”. A observação das três unidades (ação, lugar, tempo) não é menos essencial na pintura histórica do que na poesia dramática.



A lei da composição é mais vaga em gêneros de pintura diferentes da histórica, a esta última deve-se ater o crítico. E Diderot indica que a unidade do tempo representa uma exigência mais severa para o pintor do que para o poeta. “Concede-se vinte e quatro horas ao último. Ele pode, sem pecar contra a verossimilhança, reunir num intervalo de três horas que dura uma representação, todos os acontecimentos que puderem se suceder naturalmente no espaço de um dia. Mas o pintor possui apenas um instante quase indivisível. É a este instante que todos os movimentos da composição devem se relacionar: entre os movimentos, se noto alguns do instante que precede e do instante que segue, a lei da unidade de tempo é transgredida. No momento em que Calcas levanta o cutelo sobre o peito de Ifigênia, o horror, a compaixão, a dor, devem mostrar-se no mais alto grau nos rostos dos assistentes; Clitemnestra furiosa jogar-se-á sobre o altar, e se esforçará, apesar dos braços dos soldados que a reterão, por puxar a mão de Calcas e se colocar entre sua filha e ele; Agamenon terá a cabeça coberta pelo seu manto.”

É possível distinguir em cada ato uma pletora de instantes diferentes, entre os quais haveria pouca habilidade em não escolher o mais atraente. Trata-se, segundo a natureza do assunto, do instante mais patético, alegre ou cômico. “A menos que leis particulares não ordenem de outro modo e que não se reaveja do lado do efeito das côres, das sombras e das luzes, da disposição geral das figuras, o que se perde do lado da escolha do instante e das circunstâncias próprias à ação.” Ou então, diz ainda Diderot, que não se acredite em submeter o próprio gosto e gênio a certa puerilidade nacional, que não se honre muito frequentemente com o nome de delicadeza de gosto.



“Quantas vezes a delicadeza, que não permite ao infeliz Filotecto berrar na entrada da sua caverna, baniu objetos interessantes da pintura!” enuncia Diderot. Cada instante tem suas vantagens e desvantagens. Um deles escolhido, todo o resto é dado. “Prodico supõe que Hercules em sua juventude, após a derrota do javali de Erimanto, foi acolhido num lugar solitário da floresta pela deusa da glória e pela dos prazeres, que o disputaram entre sí: quantos instantes diferentes esta fábula moral não ofereceria ao pintor que a escolhesse como assunto? Seria possível compor com eles uma galeria. Há o instante em que o herói é acolhido pelas deusas, o instante em que faz-se ouvir a voz do prazer, o instante em que a honra fala ao seu coração, aquele em que ele balança em si mesmo a razão da honra e do prazer, o instante em que a glória o toma e o outro, no qual ele decidiu-se inteiramente por ela.”

Ao aspecto das deusas ele deve ter sido tomado de admiração e surpresa: terno com a voz do prazer, inflamando-se com a da honra. No instante em que balança suas vantagens, é sonhador, incerto, suspenso. “À medida que o combate interior aumenta e que o momento do sacrifício se aproxima, a tristeza, a agitação, o tormento, as angústias, tomam conta dele, e premitur ratione animus, vincique laborat” (24) E prossegue Diderot : “O pintor sem gosto ao ponto de tomar o instante em que Hercules decidiu-se inteiramente pela glória, abandonaria todo o sublime desta fábula e seria obrigado a dar uma face aflita à deusa do prazer que teria perdido sua causa, o que é contrário ao seu caráter. A escolha de um instante proibe ao pintor todas as vantagens dos outros. Quando Calcas enfiar o cutelo sagrado no peito de Ifigênia, sua mãe deve



desmaiar. Os esforços que ela faria para deter o golpe pertencem a um instante passado. Voltar para ele um minuto significa pecar tão pesadamente quanto antecipar mil anos no futuro. Existem no entanto ocasiões em que a presença de um instante não é incompatível com os traços de um instante passado: lágrimas de dor cobrem por vezes um rosto do qual a alegria começa e se assenhorear. “Um pintor hábil colhe um rosto no instante da passagem da alma de uma paixão a outra, e faz uma obra prima. Tal é Maria de Medicis na galeria do Luxemburgo, Rubens a pinta de um jeito que a alegria de ter posto um filho ao mundo não apagou a impressão das dores do parto. Dessas duas paixões contrárias, uma está presente, a outra ausente”.

A fluidez do tempo é o grande obstáculo a ser dominado pelo pintor. “É raro que nossa alma esteja numa base firme e determinada, e como nela ocorre quase sempre um combate de diferentes interesses opostos, não basta saber exprimir uma paixão simples. Todos os instantes delicados perdem-se para quem que não conduz seu talento até lá: não sairão de seu pincel nenhuma dessas figuras que nunca se viu e nas quais percebe-se sem cessar novas finezas à medida que as observamos: seus caracteres serão decididos em demasia para dar tal prazer, eles tocarão mais no primeiro golpe de vista, mas eles lembrarão menos.”

A unidade da ação liga-se ao tempo: abarcar dois instantes é pintar simultâneamente um mesmo fato sob dois pontos diferentes de vista. (24) Esta falta é menos sensível, mas no fundo mais pesada do que a duplicidade de assunto. “Duas ações unidas, ou mesmo separadas, podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo lugar. Mas a presença de dois instantes diferentes implica contradição no mesmo fato. A menos que se queira considerar um e



outro caso como a representação de duas ações diferentes numa só tela. Os nossos poetas que não sentem possuir gênio bastante para tirar cinco atos interessantes de um assunto simples fundem várias ações numa só, abundam em episódios, e tornam pesadas suas peças na mesma proporção de sua esterilidade. Pintores caem às vezes no mesmo defeito. Não se nega que uma ação principal traga outras, acidentais. Mas é preciso que estas últimas sejam de circunstâncias essenciais à precedente. É preciso que exista ligação e subordinção entre e que o espectador nunca esteja perplexo. Variem o massacre dos Inocentes tanto quanto lhes aprouver. Mas que em qualquer lugar da tela eu lance os olhos e encontre tal massacre. Seus episódios ou me prenderão ao assunto, ou dele me afastarão. E o último desses efeitos é sempre um vício. A lei da unidade da ação é ainda mais severa para o pintor do que para o poeta. Um bom quadro fornecerá algum assunto, ou mesmo uma cena dramática. E um drama apenas pode fornecer matéria para cem quadros diferentes.”

A unidade de lugar, segundo Diderot, é mais estrita num sentido — menos em outro— para o pintor do que para o poeta. A cena é mais extensa em pintura, mas ela é mais una do que em poesia. “O poeta, não restrito a um instante indivisivel como o pintor, passeia sucessivamente o ouvinte de um apartamento a outro, enquanto o pintor se coloca num vestíbulo, numa sala, sob um pórtico, numa relva. E de lá não sai. Ele pode, com a perspectiva, aumentar seu teatro tanto quanto julgar apropriado, mas sua decoração permanece. Ele não muda.” 

Como o leitor percebe, acompanho o texto diderotiano sem acréscimos. O escrito é demasiado eloqüente e não precisa de comentários em tais pontos.



Sigamos para a subordinação das figuras: estas devem se fazer notar segundo o interesse que devemos ter por elas. Existem lugares relativos às circuntâncias da ação, elas devem ocupar naturalmente tais lugares ou deles se afasta. Cada figura precisa ser animada pela paixão e pelo grau de paixão conveniente ao seu caráter. E se uma delas fala, as outras devem escutar. Muitos interlocutores ao mesmo tempo fazem má impressão num quadro, tanto quanto numa reunião social. “Como tudo é igualmente perfeito na natureza, num pedaço perfeito de pintura todas as partes devem ser igualmente cuidadas e só chamar a atenção pela sua maior ou menor importância. Se tivessemos diante de nós o sacrifício de Abraão, o arbusto e o bode não teriam menos verdade do que o sacrificador e seu filho. Todos devem ser igualmente verdadeiros na tela sem termer que os os objetos subalternos sejam façam negligenciar os importantes. Eles não produzem tais efeitos na natureza, por que os produziriam na imitação artística?” Ornamentos, roupas, etc. Não se recomenda o bastante a sobriedade e a conveniência nos ornamentos. “Há em pintura, como em poesia, uma fecundidade infeliz. Se deve ser pintada uma manjedoura, por que apoiá-la contra as ruinas de um grande edificio e erguer colunas num lugar que só posso supor usando conjecturas forçadas? O preceito de embelezar a natureza estragou tantos quadros ! Não se busque embelezar a natureza ! Deve ser escolhida a que convem ao pintor, este deve trazê-la aos olhos escrupulosamente. As roupas devem ser conformes à história antiga e moderna, e não se coloque, numa paixão, judeus com chapéus cheios de plumas.”



As regras gerais da composição são quase invariáveis e as da prática da pintura só podem lhes trazer alguma, ou nenhuma, alteração. Como o escritor narra um fato histórico como poeta ou historiador, um pintor dele faz um assunto de quadro histórico ou poético. No primeiro caso, parece que todos os seres imaginários, todas as qualidades metafísicas personificadas devem ser banidas. A história quer mais a verdade. Não existe um desses desvios nas batalhas de Alexandre. Parece que no segundo caso só deve ser pemitido personificar as que sempre o foram, a menos que se deseje expandir uma obscuridade profunda em assunto bem claro. Não admiro a alegoria de Rubens do parto da rainha como as apoteoses de Henrique: sempre achei que o primeiro desses objetos exigia toda a verdade histórica e o segundo todo o maravilhoso da poesia. Sempre o leitor deve ser advertido que todas essas linhas saem diretamente do texto diderotiano citado. Nada acrescento a elas.

“Uma composição pode ser facilmente rica em figuras e pobre de idéias, uma outra excitará muitas idéias, ou inculcará fortemente uma só, e só terá uma figura. O quanto a representação de um anacoreta ou filósofo absorto numa profunda meditação, não acrescentará à pintura de um isolamento? Parece que um isolamento não exige ninguém. No entanto, ele será bem maior se nela for colocado um ser pensante. Se o pintor faz cair uma torrente das montanhas, e se ele deseja nos espantar, deve imitar Homero colocando um pastor na montanha, que escuta amedrontado o barulho. Pintores devem ler os grandes poetas e recipocramente os poetas precisam ver os trabalhos dos grandes pintores. Os primeiros ganharão em gosto, em idéias, em elevação. Os segundos, exatidão e verdade. Quanto



quadros poéticos admirados fariam sentir o seu absurdo se fossem pintados
?” (26)

O pintor que ama o simples, “o verdadeiro, o grande, apegar-se-á particularmente a Homero e a Platão. Nada direi de Homero, ninguém ignora até onde este poeta levou a imitação da natureza. Platão é menos conhecido neste aspecto, mas ouso, no entanto, assegurar que ele não perde para Homero. Quase todas os inícios de seus diálogos são obras primas de verdade pitoresca. E mesmo durante o diálogo elas são encontradas. Tomarei apenas um exemplo, do Banquete. Este, visto comumente como uma cadeia de hinos ao Amor, cantados por uma companhia (troupe, o termo é teatral, RR) de filósofos, é uma das apologias mais delicadas de Sócrates. Sabe-se
em demasia a crítica injusta à qual suas ligações estreitas com Alcibiades o haviam exposto. O crime imputado a ele era de natureza tal que a apologia tornava-se uma injúria. E Platão cuida para que ela não seja o assunto principal de seu diálogo. Ele reúne filósofos num banquete e os faz cantar o Amor. A refeição e o hino acabavam quando se ouve um grande barulho no vestíbulo. As portas se abrem e vê-se Alcibíades coroado de hera e cercado por uma companhia (troupe, mesma observação acima, RR) de instrumentistas. Platão lhe supõe esta gota de vinho que aumenta a alegria e dispõe à indiscreção. Entra Alcibíades e divide sua coroa em dias, coloca uma em sua cabeça e a outra em Sócrates. Informado do assunto, fica sabendo que os filósofos cantaram o triunfo do Amor. Ele canta sua derrota pela Sabedoria, ou os esforços inúteis que fez para corromper Sócrates. Este relato é conduzido com tamanha arte, que nele se percebe apenas um jovem libertino que fala por embriaguez, e que acusa a si mesmo sem misericórdia de ter os desejos mais corrpmpidos e o deboche mais vergonhoso. Mas fica



no fundo da alma a impressão, sem que em nenhum momento se suspeite, que Sócrates é inocente e que ele é bem feliz de ser inocente porque Alcibíades, teimoso por seus próprios encantos, não deixou de notar ainda a sua força, desvelando seus efeitos perniciosos nos sábios de Atenas. Que pintura seria a entrada de Alcibíades e seu cortejo no meio dos filósofos! Ele não seria menos interessante e digno das pinceladas de Rafael ou de Vanloo, do que a representação desta assembléia de homens veneráveis arrastados pela eloquência e os encantos do jovem libertino, pendentes ab ore loquentis ?”(27)

A passagem do teatro à pintura é sublinhada por Diderot, sobretudo quando se trata de Platão e da figura maior dos Diálogos. O enciclopedista e dramaturgo é obcecado pela morte de Sócrates. A peça La mort de Socrate, apresentada na Comédie Française em 1763 é tributária de Diderot, como observam análises da Correspondance littéraire (01/06/1792 e 15/05/1763). Os textos diderotianos não se cansam de jungir arte pictórica e teatro. (28) Assim este trecho citado por Jean Seznec: “se o espectador (…) encontra-se no teatro como se estivesse diante de uma tela, onde quadros diversos surgiriam sucessivamente (…) haveria um patético na cena, como ocorre com a filha e a mulher de Eudamidas no quadro de Poussin?” (29) A resposta é positiva. Diderot refere-se à pintura Testament d´Eudamidas, no qual via o máximo do sublime em pintura. Aquele grupo de mulher e filha é especialmente mencionado no Salão de 1767. O verbete “composição” é fruto de um trabalho inicial. Mas se atentarmos para os escritos posteriores, sobretudo os publicados após a morte de Diderot, notamos que eles respondem integralmente às exigências



postas na Encyclopédie. A questão do tempo e do espaço, aliada à diversidade dos instantes e das paixões humanas. Quem ousaria negar que o Sobrinho de Rameau, além de ser uma peça teatral fantástica é uma sequência de quadros, os mais estritamente obedientes às determinações da unidade de tempo, espaço e de assunto? O tempo: meia hora de conversa entre o vagabundo genial e o filósofo. O espaço: o jardim de Port-Royal. Os assuntos amplos e diversificados obedecem as unidades de sentido a cada movimento. O texto segue os preceitos platônicos, pois se trata de um organismo vivo. Son pittor anch´io, a Diderot pode ser atribuido este mote comum para designar o modo pelo qual ele “pinta” seus romances, sobretudo A Religiosa. (30) Como indica um comentador, naquele romance “as cenas de quadro e de pantomima são perfeitamente integradas na estrutura narrativa e psicológica do romance”. Suzanne Simonin “aproxima explícitamente sua descrição da pintura, conhecida pelo seu correspondente, o marquês de Croismare” (31) Simonin usa o termo “pintar” para a sua descrição dos conventos em que viveu e para cenas isoladas que retrata: “A cena que acabei de pintar foi seguida de um grande número de outras semelhantes que negligencio…Vós, que bem conheceis a pintura, eu vos asseguro, senhor marquês, que era um quadro muito agradável de se ver” (32)

O romance inteiro, como boa parte dos escritos literários diderotianos (não raro, filosóficos) opera com o sentido polissêmico da grafia, tal como indiquei acima para os vínculos entre ele e Platão. Mais, além da unidade entre pintura e escrita, o enciclopedista integra a fábrica dos poemas e o teatro. É como se o grito, son pittor anch ´io presidisse a sua produção imagética, nela colocando a idéia a serviço da arte. Na Religiosa, cuja



marcha é entremeada de quadros movidos pelas paixões, cada pintura exibe os elementos patéticos na biografia de Simonin, apresentados por ela aos seus juízes ou possíveis libertadores. “Os sofrimentos que os quadros expõem são parte de um sofrimento mais amplo (ou Paixão) que constituem a narrativa. Como as imagens que convidam os cristãos a jorrar lágrimas diante das várias estações da Paixão do Salvador, os quadros da Religiosa pedem ao leitor que se comova pelas lágrimas e sofrimentos de uma vítima inocente, e que das lágrimas passe à ação. Em cada um dos quadros, o leitor é apresentado à uma visão espantosa. Em cada uma das vezes, é como se Suzanne tivesse dito, ´Voilà!´[literalmente, ´olha aqui!´] ´Observe, e veja meus sofrimentos´. Na retórica clássica esta figura era chamada hypotiposis”. (33)

Num acesso de gosto duvidoso, comum entre cultores de Rousseau, Claude Levi-Strauss caçoa de Diderot e da predileção que o enciclopedista apresenta pelas pinturas em movimento. Ao comentar o problema do contínuo e do discreto na filosofia e na estética, diz o antropólogo sobre o verbete Composição: “Sendo a pintura permanente, ela só o é num estado instantâneo e só pode, afirma Diderot, oferecer da natureza quadros discontínuos: ‘multiplicai o quanto quiserdes essas figuras, haverá interrupção’”. Assim, diz Strauss, “a pintura remete a um problema filosófico mais geral que já surgira na teoria dos números :”como medir toda quantidade continua por uma quatidade discreta?”. Segundo o Diderot citado por Strauss, a lingua traz situação análoga pois existem “expressões dos matizes delicados que permanecem nessariamente indeterminados”. Assim, o enciclopedista parou o seu projeto de transmitir os conhecimentos, “pela impossibilidade de tornar toda a lingua inteligível” (Diderot). Ao



inverso do que se passa na pintura, a lingua apresenta um meio termo, pois as raízes revelam uma continuidade entre palavras discretas de natureza igual, sendo estados intermediários análogos aos que a pintura é incapaz de representar. A invariância permitiria superar a antinomia do contínuo e do discreto. Mas Diderot não segue por semelhante via. Esperar-se-ia que ele “se interrogasse sobre a noção de invariância aplicada ao problema próprio da pintura. Em vez disso, parece admitir que os quadros de Greuze já o resolveram : ´é a coisa como deve ter ocorrido´, grita ele no Salão de 1759 sobre o quadro L´Accordée de village. Mas em parte alguma parece que ele buscou, no estilo e nos princípios da composição de Greuze, a consistência da invariância. De fato, o entusiasmo de Diderot por Greuze deve-se a outras considerações.”. Note-se o tom e o jeito: a repetição do termo “parece” é sintomática no crítico. Parece que Diderot deveria ser orientado pelas preocupações de…Strauss.
E agora vem a melhor parte. O problema da invariância irresolvido por Diderot, seria “comparável ao sentido em seu tempo, mesmo pelos amadores da mais bela pintura (Diderot não admirava Chardin?), diante da invenção do cinema. Greuze também inventou algo: representar o instante por meios tão realistas e tão detalhados que eles fornecem, mesmo devido ao tempo requerido para os inspecionar, uma ilusória duração. Richardson já o tinha feito em literatura, bastava transpor: ´o mundo em que vivemos é o lugar da cena; o fundo de seu drama é verdadeiro; seus personagens têm toda a realidade possível; seus caracteres são tomados no meio da sociedade; seus incidentes estão nos costumes de todas as nações bem governadas […] Sem



esta arte, minh´alma se dobrando dificilmente em viezes quiméricos, a ilusão seria apenas momentânea e a impressão fraca e passageira”. O que Diderot admira em Richardson e em Greuze, pensa Strauss, seria “exatamente o que será pedido mais tarde à arte cinematográfica: ´os relâmpagos das paixões com frequência feriram vossos ouvidos; mas estais bem longe de conhecer tudo o que há de secreto nos seus acentos e em suas expressões. Nenhum deles deixa de ter a sua fisionomia; todas essas fisionomias se sucedem num rosto, sem que ele deixe de ser o mesmo; e a arte do grande poeta e do grande pintor está em nos mostrar uma circunstância fugitiva que nos havia escapado´. Não seria possível descrever melhor o que pedimos ao ‘gros plan’. E é este o lado ‘western’ antes da letra que cativa Diderot em Joseph Vernet: ´com uma arte infinita, misturar o movimento e o repouso, o dia e as trevas, o silêncio e o ruído`. A história da arte, por vezes, segue o ritmo do acordeão. Com suas “demoras necessárias´, Richardson ampliou inicialmente a literatura que o cinema instantâneo de Greuze comprimirá nos quadros (mas muito longos para serem descritos, ver os Salões). Por sua vez, o cinema que opera por meio de imagens, como a pintura, os ampliará aos multiplicá-los na duração, como o faz a literatura com as palavras”. (34 )

Nas críticas endereçadas por Levi-Strauss a Diderot não é possível silenciar que o acusador se esquece fácilmente do episódio que envergonha a França, terra da cultura e das Luzes ( se desconsiderarmos o desastre do Estado que se traduziu em Vichy) quando foi apresentada ao público A Religiosa de Jacques Rivette. Em 1959 o cineasta imagina o filme com base no romance diderotiano, auxiliado por Jean Gruault. Em maio de 1962, o primeiro cenário é entregue à Comissão de Controle, orgão do Estado francês. A pré-censura pronuncia-se



desfavorável ao empreendimento. Em 1963 dá-se uma adaptação teatral do texto, dirigida por Rivette e Gruault, no Studio Saint-Elysées, com ajuda de Jean-Luc Godard e Antoine Bourseiller. O fracasso comercial da peça, somado à extrema rapidez na montagem, evita maiores escândalos. Ainda em 1963 o cenário se modifica, acrescido de um prefácio explicativo, mais a história da Abadia de Longchamp e um sermão de Bourdalue sobre os deveres paternos. Todo o material é novamente submetido ao controle da Comissão mencionada, que atenua o risco de uma proibição. A filmagem demora dois anos por dificuldades técnicas. Rivette escreve e organiza os Cahiers du cinéma. Em 1965, o Centro Nacional de Cinematografia, na pessoa de um burocrata, responde ao diretor sobre a licença: “Creio dever vos convidar à consideração das reservas formuladas sobre o contexto geral do filme A Religiosa, seus temas e seus principais personagens”. Em outubro do mesmo ano, ocorre uma entrevista do presidente do Conselho Nacional de Cinematografia com Georges Beauregard, o produtor do filme. Tudo entravado na pátria da cultura livre…

E surgem os primeiros abaixo-assinados dos pais, clientes das escolas dirigidas pelas Irmãs do Convento des Oiseaux, alertadas pela Central Católica de Cinema. A presidente da União das Superioras Maiores da França escreve para Alain Peyrefitte, Ministro da Informação. Na carta pode-se ler que 120 mil religiosas francêsas estão inquietas pela ameaça de um filme “blasfemo, o qual desonra as religiosas”. Em 15/11/1965, o Ministro responde (faltam três semanas para a eleição presidencial….) o seguinte :”Faço questão de dizer, no que me diz respeito, que partilho totalmente os sentimentos que vos animam…Também asseguro que não



hesitarei em utilizar a plenitude dos meus poderes”. O filme deve ser filmado no mesmo período dessa correspondência e campanha. Rivette escolhe a Abadia de Fontevrault, com a permissão da Comissão das Belas Artes. Mas além do ministro da Informação, Marjean Foyer da Justiça não deseja confusões com as forças religiosas. Negada a locação, o diretor filma em Avignon, na Cartuxa de Villeneuve, onde o deputado-prefeito é socialista. Caindo Peyrefitte e trocado por Yvon Bourges, o trabalho é aprovado pela Comissão de Controle (composta por 23 membros, 7 do Ministério, 7 do cinema, 5 sociólogos e juízes, 3 representantes da Associação das Famílias). Quatorze daqueles seres humanos votam “sim”, oito definem-se pelo “não”, um se abstém. Mas a saga continua. Em maio de 1966 o ministro convoca novamente a Comissão de Controle, chamando para ela Maurice Grimand, diretor da Sûreté Nationale para explicar os perigos que a projeção do filme ocasionaria à ordem pública. Votam os seres humanos novamente, resultando em 12 votos pelo “sim”, 8 pelo “não”, e três abstenções… Aí surge uma decisão sublime, em termos de hipocrisia neo-colonialista e censória. O filme é proibido nos países “de missão” (Vietnam, Laos, Cambógia, Madagascar, Síria, Líbano e na Africa em geral). Embora sob perigo, o “adulto” francês poderia assistir a blasfêmia rivetto- diderotiana, já as crianças do Terceiro Mundo… Talvez percebendo o ridículo ou o trágico da ordem anterior, a Comissão de Controle (consultiva) decide-se pela proibição total para adultos francêses e crianças colonizadas, decisão assumida em 31/03/1966.




Em 2 de abril de 1966, o Le Monde traz a notícia, com um comentário de Jean de Baroncelli. Como sempre ocorre na França, país de fina tradição cultural, surge um debate apaixonado e o dossier sobre o caso. Em 05 de abril dá-se a entrevista coletiva do cineasta e do produtor. Circula certo Manifesto dos 1789 (alusão transparente) contra a proibição. Em 14 de abril a medida é discutida pela Assembléia Nacional. Ainda no dia 30 o ministro a explica aos parlamentares. E no dia 6 de maio…o filme é apresentado no Festival de Cannes. Em novembro de 1967, é liberado em Paris. 

Vejamos os argumentos das partes envolvidas. Os pais religiosos afirmam que o filme “desfigura as religiosas, antigas educadoras de nossas mães e de nossas esposas e filhos”. Ele seria “um sucesso artístico, sem obscenidades. Não se trata tanto de imagens, mas de um espírito fundamentalmente perverso, o qual desnatura e caricaturiza os valores religiosos”. O governo, por sua vez, pretende, nas palavras de seus funcionários, proteger as religiosas contra a difamação (lei de 1881 sobre a liberdade de imprensa). Na polêmica surge a palavra dos católicos contra a censura, poucos mas bastante representantivos do pensamento religioso aberto para o mundo mais amplo do que as sacristias. Nomes? O padre Oraison, Claude Mauriac, Irmã Marie Yvonne…

Jean-Luc Godard expressa a indignação contra o veto, de maneira digna de um homem das Luzes. Em carta a André Malraux, o chama de “Ministro da Kultura” (Nouvel Observateur, 06/04/1966). E afirma na



referida missiva: “Já estava meio cansado de procurá-lo, pedindo-lhe que intercedesse junto aos seus amigos Roger Frey e Georges Pompidou para conseguir o perdão de um filme condenado à morte pela censura, esta Gestapo do espírito. Mas Deus do céu, eu não pensava fazê-lo por seu irmão, Diderot, um jornalista escritor, como você, e sua ´Religiosa´ minha irmã, isto é, um cidadão francês que pede apenas ao Pai que proteja a sua independência (…) Nada espantoso que você não reconheça mais a minha voz quando falo sobre a proibição de Suzanne Simonin, a religiosa de Diderot, sobre assassinato. Não. Nada espantoso nesta covardia profunda. Você faz como a avestruz com as suas memórias interiores. Como você poderia me escutar, André Malraux, se eu telefono do estrangeiro, de um país distante, a França livre?”. E Rivette, em artigo na revista Cinématographe afirma: “desde, digamos, Citizen Kane, os cineastas não podem mais manter uma relação de ingenuidade diante da literatura, sobretudo a grande literatura romanesca do século 19”. E nos Cahiers du Cinéma, diz ele : “a idéia inicial de A Religiosa era um jogo de palavras, era fazer um filme ´celular´, pois era sobre as celas das boas irmãs”. (35 )


Notas


(1) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis, a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971), em especial as p.
162-165.

(2) “Ora, se innanzi a me nulla s´aombra,/non ti maravigliar più che de´cieli/che l ´uno all´altro raggio no ingombra. /A sofferir tormenti e caldi e geli/simili corpi la virtù dispone/che, come fa, no vuol ch´anoi si sveli.” Cf. La Divina Commedia, “Purgatorio” ( 3, 31ss), a cura de Natalino Sapegno (Firenze, La Nuova Italia Ed., 1956), p.25.



(3) Citado por Leonel Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão, ou economia do pensar kantiano (Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), p. 514.

(4) Cf. Crocker, L. Diderot’s Chaotic Order. Approach to a synthesis (Princeton,University Press)1974. E também Maria Laura Magalhães Gomes: “Diderot e o sentido político da educação matemática”, in Revista Brasileira de História da Educação. Número 7, jan/juin 2004, p. 75 e seguintes.

(5) Citado em Romano, Roberto: “Marx e a tradução”, in Armando Boito e outros (Ed.) : A obra teórica de Marx, atualidade, problemas e interpretações (Campinas, Cemarx-IFCH-Xamã Ed.) 2002, segunda edição, p. 46 e seguintes.

(6) Diderot citado por Romano, Roberto : “Marx e a tradução”, ed. cit. p. 46 – 47.

(7) Cf. Versini, Laurent : “Introdução” à seleção dos Salões in Diderot, oeuvres, T. IV, Esthétique- Théatre (Paris, Robert Laffont, 1996), páginas 7 e 8 e p. 171 ss. Farei uso constante daquela excelente análise ao longo deste texto.

(8) Cf. Romano, Roberto: Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (São Paulo, Unicamp Ed. 1997), página 82, nota 3.

(9) Re-editado em 1990: Paris, Aux Amateurs de Livres Ed.

(10) Toutes les emblèmes (1558-1564). Há edição recente em espanhol: Alciato. Emblemas. Manuel Montero e Mario Soria (ed.). Madrid, Ed. Nacional, 1975).


(11) De humane physiognomia (1586). Della Porta dedicou-se à criptografia e à optica, além da fisiognomia, arte de “conhecer” as pessoas pelos traços da face.

(12) Description historique et critique de l ´Italie ou nouveaux mémoires sur l´état actuel de son Gouvernement, des Sciences, des Arts, du Commerce, de la Population & de l ´histoire naturelle. Nouvelle Édition (Paris, Delalain, MDCCLXX). Uso o texto editado eletrônicamente pela Biblioteca Nacional de França (Coleção Gallica).

(13) Cf. “Critique d´Art” in Oeuvres complètes (Paris, Robert Laffont, 1980), p. 603 e ss. Gita May, Diderot et Baudelaire: critiques d'art (Paris/ Genève, Minard/Droz, 1957), p. 109 e 120. Hiddleston, J. A. : Baudelaire and the Art of Memory (Gloucestershire, Clarendon Press, 1999) recorda que o Salon de 1845, como aliás é bem notado pela crítica, retoma o modelo dos Salões diderotianos.Cf. Hiddleston, p. 262.

(14) Os quais reconhecem a presença de Diderot no campo da literatura e da crítica de arte. “Imagino Fragonard saído da mesma forma que Diderot. Nos dois, o mesmo fogo, mesmo brilho. Uma página de Fragonard é como uma pintura de Diderot. (…) quadros de família, enternecimento da natureza, liberdade de um conto livre. Os dois usufruindo da forma precisa, absoluta, do pensamento e da linha. Diderot, conversador sublime maior do que escritor; Fragonard, mais desenhista que pintor. Homens do primeiro movimento, do pensamento jogado totalmente vivo e nascendo diante dos olhos ou da idéia”. Cf. Journal. Mémoires de la Vie litteraire, I (1851-1865) (Paris, Robert Laffont, 1989), p. 494



(15) Cf. Balcou, J. : Le dossier Fréron. Correspondances et documents (Genève, Droz, 1975).

(16) Pierre Lepape: Diderot (Paris, Flammarion, 1991) p.234

(17) Para uma análise ampla das técnicas usadas por Diderot na Encyclopédie, cf.   Marie Leca-tsiomis, Écrire l’Encyclopédie. Diderot : de l’usage des dictionnaires à la grammaire philosophique, Oxford, Voltaire Foundation, SVEC, 375, 1999.

(18) Cf. Phaedrus 264 c in Plato I (London, Harvard University Press, 1983) Loeb Classical Library, Trad. Fowler H.N. ). Página 528.

(19) Diderot, Denis: Mémoires pour Catherine II, citado por Anthony Strugnell: Diderot´ s politics. A Study of the Evolution of Diderot´s Political Tought After The Encyclopédie. (The Hague, Martinus Nijhoff, 1973), p. 137.

(20) Chouillet, Jacques : Diderot, poète de l ´énergie (Paris, PUF, 1984), p. 299.

(21) Maria Sylvia Carvalho Franco, em trabalhos inéditos sobre a Filosofia grega e o Renascimento, elaborou longamente este aspecto do pensamento ocidental. Os manuscritos da autora, aos quais tive acesso, trazem os nexos entre a imagem e a escrita, sobretudo no pensamento platônico e nos seus seguidores da Renascença inglêsa e italiana. Os referidos manuscritos estão em fase de finalização e breve serão publicados pela Editora Perspectiva de São Paulo.

(22) “Humano capiti ceruicem pictor equinam/ iungere si uelit et uarias inducere plumas/ undique conlatis membris, ut turpiter atrum /desinat in piscem mulier formosa superne, /spectatum admissi risum teneatis, amici?



/Credite, Pisones, isti tabulae fore librum /persimilem, cuius, uelut aegri somnia, uanae /fingentur species, ut nec pes nec caput uni /reddatur formae. Pictoribus atque poetis / quidlibet audendi semper fuit aequa potestas.” “De arte poetica” in Le Opere di Quinto Orazio Flacco, a cura di Tito Colamarino e Domenico Bo (Torino, UTET, 1978), p.534

(23) “Ut pictura poesis”. O dito célebre, conhecido desde Simonides de Cós, é lembrado por Diderot. Mais estratégico, no entanto, nos seus textos, é o conjunto de enunciados que seguem na pena de Horácio: “Existem quadros que golpeiam mais tua atenção, se observados mais de perto e outros, se vistos de um pouco longe. Um ama a penumbra, o outro, que não teme o olhar aguçado de um conhecedor, quer ser posto em plena luz. Este agradou uma vez apenas, e aquela agradará mesmo que revisto dez vezes.”. Horácio, op. cit. p. 556-557.

 (24) Aules Persius Flaccus : Saturarum liber, V. “E premido pela razão, luta para se deixar vencer”.

(25) Para uma análise aproximada desses problemas, cf. Hayes, Julie C. : “Sequence and Simultaneity in Diderot's Promenade Vernet and Leçons de clavecin”. Eighteenth-Century Studies (The Johns Hopkins University Press) V. 29, Número 3, 1996, pp. 291-305.

(26) Diderot não segue o dito horaciano sem críticas. “Tous nos petits littérateurs (…) repètent tous les jours le seul hemistiche d´Horace qu´ils sachent: ´Ut pictura poesis erit´. Mas, segue Diderot, “Ut poesis pictura non erit” (Cf. Oeuvres complètes de Diderot por Assezat J. e Tourneux, M.



(ed.) (Paris, Garnier, 1875-1877), T. XII, 123-4 e XI, 107). O enunciado horaciano não pode ser assumido literalmente. O problema fora sentido no Renascimento, como diz Robert J. Clemens : “The catch phrase, ut pictura poesis, (…) was taken up and exploited uncritically, with painting and poetry becoming not only sisters, but twin sisters. Only in 1666 did Le Moine De l'art des devises recall Da Vinci and twice point out that emblems or paintings differ from poems in that the sense of the former may be grasped in a moment rather than during a slower unfolding. Yet the Renaissance assembled every possible argument to identify the poetic and pictorial endeavors, which finally led Lessing to assemble every possible counterargument and write the Laokoön. Another catch phrase rooted in the minds of Renaissance humanists was that aphorism attributed by Plutarch to Simonides to the effect that painting is mute poetry and poetry a speaking picture. This phrase held a particular meaning to the emblematists, and they echoed it willingly. Henry Hawkins urged the readers of the Devout Heart, his version of Etienne Luzvic's French emblem book, "If you eye wel and marke these silent Poesies, give ear to these speaking pictures." Remarking on a meaning he read into an emblem of Vaenius, Le Roy de Gomberville qualifies, "Si j'entends bien son langage muet." Barthélemy Aneau tells us that he decided to help the Lyonese printer Bonhomme make use of some plates lying about the print shop: "Alors je estimant que sans cause n'avoient esté faites, je luy promis que de muetes et mortes, je les rendrois parlantes et vives, leur inspirant âme par vive poésie." William Camden quotes the statement of Simonides and judges the pictorial element as dominant in the device and



rebus." Cf. Picta Poesis: Literary and Humanistic Theory in Renaissance Emblem Books (Roma, Edizioni di storia e letteratura, 1960), p. 174-175. 

(27) Virgilio, Eneida, IV, 79: “Suspensos aos lábios do orador”. Esta apreciação do texto platônico como peça teatral pode ser acrescida pelo uso frequente, por Diderot, de Luciano de Samosata, cuja letra diáfana conduz a sátira e o debate moral até o limite do insuportável. Em Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997) analisei o nexo entre os escritos diderotianos e os textos lucianescos. Na época em que o livro foi publicado eu não tinha em mãos o clássico de Jay Chapman. Ali constatei o quanto ele é importante para a análise conjunta de Luciano, Platão, Diderot. Por exemplo: “The reader of Lucian's dialogue on 'The Household Philosopher' should turn to Diderot's essay called 'Le Neveu de Rameau,'(…). In it Diderot describes his conversations with a needy adventurer, a little brother to the rich, whom he has met occasionally in the public gardens, and who describes his own functions, methods, passions, and ideals as a diner-out, music-master, entertainer, and slave in the houses of the great. Diderot makes no reference to antiquity, yet his essay brings out a very striking resemblance between the social systems of Rome under the Cæsars and of France under Louis XIV and Louis XV. Though Diderot has no ferocity and is tiresome, he has a power of his own which competes with Lucian. One feels, after reading 'Le Neveu de Rameau,' that the art, the morality, the music, the architecture, the manners, the ideals, the unconscious superfine degradations of the age of Louis XV have been poured into our understanding. We need no other commentary, no other indoctrination, no better psychological analysis of that age than we have here in the rambling talk of this talented, disillusioned, tatter-brained,



middleaged, sycophant.”. Cf. Lucian, Plato and Greek Morals (Houghton, Mifflin Company, 1931), p. 73-74.

(28) Cf. Scott, B. : “Strategies of happiness. Painting and Stage in Diderot”, French Forum, v. 29, 2004.

(29) Seznec, Jean: Essais sur Diderot et l ´antiquité (Oxford, Clarendon Press, 1957), p. 123, nota 65.

(30) La Religieuse, segundo Diderot, é “a contrapartida de Jacques le Fataliste. Ele é pleno de quadros patéticos. Ele é muito interessante e todo o interesse é reunido na personagem que fala. Estou bem seguro de que ele afligirá mais aos vossos leitores do Jacques os fez rir; donde poderia ocorrer que eles desejassem mais cedo o seu final. Ele é intitulado A Religiosa; e não creio que jamais se tenha escrito sátira mais amedrontadora dos conventos. É um texto para ser folheada ininterruptamente pelos pintores; e se a vaidade não se opusesse, sua verdadeira epígrafe seria a seguinte: Son pittor anch ´io”. Carta a Meister (27/09/1780), in Versini, L. : Correspondance de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1997), p. 1309. Cf. Proust Jacques: «La fête chez Rousseau et chez Diderot» (1970), in l'Objet et le le texte. Pour une poétique de la prose française du XVIII siècle (Genève, Droz, 1980). Segundo Proust, Diderot extrai de Richardson o dom de fazer ver, e recomenda a leitura do mesmo Richardson aos pintores e poetas. Para se entender a suposta epígrafe que Diderot daria à Religiosa, Proust indica o Salão de 1759 no qual Diderot mostra detestar Os Cartuxos em Meditação de Jeannet, O quadro “não traz nada do silêncio, nada do selvagem, nada que lembre a justiça divina, nenhuma idéia, nenhuma


adoração profunda, nenhum recolhimento interior, nenhum terror, nenhum extase” (p. 150).

(31) Cf. Strugnell, Anthony: “La voix du sage dans l´Histoire des Deux Indes”, in Colloque du Bicentenaire 2-5 septembre, 1984. Textes réunis par Peter France et Anthony Strugnell (Edimburgh, University Press, 1985), p. 36.

(32) La Religieuse, Ed. Pléiade, p. 354 e 359. Cf. Kofman, Sarah: Séductions. De Sartre a Heraclite (Paris, Galilée, 1990), p. 18.

(33) Cf. Caplan, Jay: Framed Narratives. Diderot´s genealogy of beholder (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1985), p. 49. Jay cita Dumarsais- Fontanier : “A hypotipose é palavra grega que significa imagem, quadro. É quando nas descrições pinta-se os quais dos quais se fala, como se o tivessesmos atualmente diante dos olhos” Les tropes (Genève, Slatkine Reprints, 1967), volume 1, p. 151.

(34) “En lisant Diderot”, in Regarder, écouter, lire (Paris, Plon, 1993), p. 74–76. Sartre recusou o estruturalismo porque aquele movimento aposentou o sujeito (segundo Levi-Strauss, os seus pressupostos antropológicos estariam norteados por um “transcendental sem sujeito transcendental”) e porque ele teria posto peso demasiado na sincronia, contra a diacronia do pensamento dialético. E para dramatizar sua recusa, disse que se recusava voltar à lanterna mágica, depois da invenção do cinema. Com bastante atraso, Strauss devolve a pelota e aplica sua verve para desqualificar Diderot, visto por muitos comentadores como uma espécie de João Batista de Kant e do



sujeito transcendental (ainda recentemente, cf. Paolo Quintili). O tema exposto por Diderot, Sartre e pelo próprio Levi-Strauss, encontra-se nas águas mais profundas da filosofia ocidental, no problema cujos icones maiores são Heráclito e Parmênides. A filosofia, tal como é conhecida, não conseguiu e não conseguirá sem duras penas “resolver” aqueles reptos à inteligência humana. Cobrar a solução apenas de Diderot, dele caçoando como o faz Strauss, é prova de microcefalia. Tais questões nunca foram endereçadas por ele a…Rousseau. Et pour cause….

(35)Todo este comentário sobre A Religiosa de Rivette e as controvérsias surgidas quando ele chegou ao público é extraído do artigo de Jean-Claude Bonnet, ”Revoir la Religieuse” in Proust, Jacques e Fontenay, E. de : Interpreter Diderot aujourd´hui, Colloque de Cerisy (Paris, Le Sycomore, 1984), p. 59 e seguintes.