Visibilidade e poder democrático
22 de janeiro de 2012 | 3h 06
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
A luta entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o
Supremo Tribunal Federal (STF) define uma nova e importante etapa na
democratização do Estado brasileiro. Como previsível, os intocáveis do
Judiciário aliam-se aos congressistas e políticos do Executivo,
ampliando a campanha contra a imprensa. Novamente o erro é atribuído a
quem divulga os males institucionais. A publicidade integra a doutrina e
a prática do Estado moderno. Como o Brasil só com boa vontade merece o
nome de plena democracia (o nome certo do nosso regime é federação
oligárquica), até hoje venceram o privilégio e a impunidade. Descobertos
os seus erros, os donos dos palácios desejam aplicar viseiras novas no
Ministério Público (MP) e na mídia.
"São proveitosos o ato justo e a obediência às leis, quando existem
testemunhas da conduta. Mas se não corre o risco de ser descoberto, o
indivíduo não precisa ser justo." A frase vem do sofista Antifonte
(século 5.º a.C.), mas serve com perfeição às nossas elites. O debate
sobre a visibilidade do justo ou injusto marca o Ocidente. Platão narra a
fábula de Giges: pastor humilde, o herói descobre um anel que, se
girado no dedo, o torna invisível. Ele usa tal privilégio para matar o
governante, ganhando a rainha e o trono. O mito de Giges ilustra a razão
de Estado: o poderoso busca o sigilo para seus atos, mas tenta ver o
que se passa nas casas das pessoas "comuns" (sobretudo nos bolsos) e nos
países estrangeiros. Nasce daí a censura unida às polícias secretas, à
espionagem, ao desejo de impor aos governados normas éticas jamais
seguidas pelos dirigentes.
O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança é a base
histórica das atuais políticas autoritárias. O governante acumula
segredos e deseja que os súditos sejam controlados. Desse modo se
estabelece a heterogeneidade entre cidadãos e dirigentes.
Na aurora dos tempos modernos, segundo um fino analista da razão
absolutista, "a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe
mais espaço político homogêneo da verdade, o adágio é invertido: não
mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas.
As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político
profundo, o da ruptura radical (...) que separa o soberano dos
governados. O lugar do segredo como instituição política só é
inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (...) à medida que
se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo
latino secernere, que significa separar, apartar" (Jean-Pierre
Chrétien-Goni).
A democracia, surgida contra o poder absoluto, instaurou a visível
responsabilidade política dos governantes. Na "accountability" os
operadores de cargos públicos (do rei aos juízes) tornam os seus atos
visíveis para a cidadania. Mas o século 19 trouxe a contrarrevolução
napoleônica e a Santa Aliança. Some a transparência no exercício do
poder. Como fruto tardio do recuo político e jurídico, surgem as
ditaduras que impedem as liberdades públicas, em especial a de imprensa.
Ocorre, ao mesmo tempo, uma fratura na ética democrática.
A ética correta, na democracia, não se imiscui na vida coletiva com
uma tábua de valores externa aos grupos sociais. Os monopólios do Estado
(força física, impostos, norma jurídica) permitem-lhe controlar os
interesses particulares. Mas não raro o Estado ultrapassa os seus
próprios limites. As revoluções modernas ergueram barreiras contra as
pretensões oficiais. Mesmo assim, na Alemanha nazista, na União
Soviética (URSS), nas diversas ditaduras e até em países democráticos, o
Estado arrogou-se o direito de impor valores e doutrinas sobre a
ciência, as artes, a vida econômica. Como exemplos temos a eugenia
contra os fracos (o caso Buck versus Bell, decidido pelo juiz Oliver
Wendell Holmes) e a "genética socialista" (as teses de Trofim
Denissovitch Lyssenko que arruinaram a URSS). Os dois casos mostram que o
poder sem peias gera frutos malditos. A imprensa domesticada chega ao
escárnio: o jornal mais mentiroso da História é o Pravda (que significa
"a verdade", em russo).
Como harmonizar o Estado e a vida livre?
A resposta reside na democracia, no Estado de Direito, no qual a
sociedade política segue leis interpretadas pelo Judiciário. O Executivo
tem uma barreira nos demais Poderes. Os alvos sociais precisam ser
examinados no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Para que os
interesses sejam discutidos é imperativo que eles sejam visíveis - daí a
necessária regulamentação do lobby - e, por sua vez, os legisladores e
juízes devem ser vigiados pelo povo soberano. Quem, no poder, se imagina
acima do público ("os leigos") atrai, como dizia Immanuel Kant, a
desconfiança generalizada. E reabre as vias sangrentas pisadas por todos
os Giges ocidentais, poluindo a fé pública, fonte de liberdade e
segurança. Na República os poderes são transparentes, o que inclui
togas, fardas, batinas, capelos acadêmicos. A visibilidade absoluta só
existe no Paraíso, mas o Estado sem ela é tirania. Conforme Norberto
Bobbio, "todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para
si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome" ("o poder
mascarado").
Vivemos uma inusitada crise estatal. Crise bem-vinda, pois nosso
Estado apresenta os estigmas do segredo e do autoritarismo, técnicas
ditatoriais que arrancaram dos cidadãos o hábito de controlar os
governantes, legisladores, magistrados. Cabe à cidadania assumir a sua
dignidade, pondo os que se julgam onipotentes no devido lugar.
"Autoridade", na ordem democrática, significa "ser autorizado" pelo povo
soberano. Mas os nossos poderosos - no Executivo, no Legislativo, no
Judiciário - fingem nada saber sobre o assunto.
O requisito da emancipação política é o livre pensamento, a livre
imprensa, da qual fogem os tirânicos Giges brasileiros. Como o diabo da
cruz.