EDITORIAL: DEBATE SOBRE A CORRUPÇÃO NO BRASIL
O Brasil avançou no combate à corrupção? [*]
NÃO.
Roberto Romano. Doutor em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas.
O Brasil ainda é um império
As nossas cidades apareceram na era do absolutismo. Não ocorriam nelas as eleições livres e a responsabilidade dos governantes diante dos munícipes. Terra de conquista política, militar, econômica, o Brasil foi administrado segundo a “igualdade de todos diante do Rei”. Parte dos cargos públicos eram vendidos ou alocados no interesse da Corte. Situadas em território imenso, as nossas urbes foram geridas à distância. Os impostos seguiam para Lisboa com pouco retorno à sua origem. O poder estatal brasileiro continua, em 2008, como sorvedor de impostos, sem retorno para a sociedade. Tradição anterior a 1808.
Instalar o Estado português no Brasil gerou despesas não cobertas “pelo aumento dos impostos ou por novas emissões de moedas metálicas. O crescimento das atividades econômicas, impulsionado pela abertura dos portos e pela revogação da proibição de instalação de fábricas, aumentou ainda mais a demanda de moeda a qual só seria atendida com a emissão dos bilhetes do Banco do Brasil em 1810. ”A instalação da corte, a abertura dos portos, o fim das restrições às manufaturas brasileiras aumentaram a demanda por moeda “o Alvará de outubro de 1808, deixava claro que a organização de um banco emissor justificava-se pela necessidade de financiar as altas despesas governamentais.” (E. Müller, “Moedas e Bancos no Rio de Janeiro no século 19”).
Na Independência, o Rio se torna o lugar para onde seguem os impostos, que saem das cidades e só retornam por interferência de oligarquias regionais. Cidades viveram mais de século sem elementares serviços públicos. Os prefeitos precisam de obras, exigidas pela população. Cofres vazios, o jeito é misturar recursos públicos e privados. M. S. Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) cita vereadores que emprestam dinheiro para as obras das cidades. Se retiram do bolso ajuda para os cofres oficiais, eles imaginam ter autorização ética para subtrair dos mesmos cofres o socorro para os seus apuros. Se os impostos se concentram na capital, o seu retorno aos municípios se efetiva em negociações entre oligarquias e ministérios. Políticos regionais surgem como fonte de favor. O prestígio político mostra-se pelo número de obras que alguém traz à região. Unidos a esse “favor”, surgem outros. Sem postos médicos? O político consegue internação. Vagas escolares? Matrículas são propiciadas. Jovens sem emprego? Cartas de recomendação redigidas. Os prefeitos só conseguem algo nos ministérios, com auxílio de oligarcas.
Essa rede de favores é decisiva em eleições. A cidade louva prefeitos, deputados e senadores que trazem recursos. Poucos contribuintes sabem o que é preciso fazer para que tais “favores” se imponham no orçamento federal. A distribuição das verbas não é permanente ou a-partidária: “é dando, que se recebe”, prática que impera em todos os governos e partidos. Devido à super-concentração do poder, com imensa burocracia, o que vem ao município é irrisório. O favor requer lealdade aos líderes que trazem verbas, mesmo evidenciada a sua apropriação indevida. Temos o “rouba, mas faz”, frase que desvela o defeito do Estado brasileiro, o inexistente federalismo.
Sem favores as prefeituras não chegam às verbas e, com eles, perdem autonomia. A parte do leão dos tributos é do poder central. Logo, conseguir meios para a cidade (eleitores cobram obras) é tentador. Ou o prefeito termina o mandato sem obras (pena de morte política) ou as consegue com “favores”. Leis como a de responsabilidade fiscal cobram rigor de prefeitos que gerem recursos diminutos. A corrupção, para conseguir os “favores” é quase obrigatória.
A democracia só vinga com municípios fortes onde os cidadãos informados vigiem os administradores. A falta de autonomia financeira dos Estados e municípios fabrica a corrupção endêmica no país. O privilégio de foro para os “intermediários” que asseguram (pelos meios indicados) recursos às regiões, torna o país, além de imperial, uma nobreza hereditária. Assusta notar o quanto os cargos, nos três poderes, passam de pai para filho, criando dinastias lilliputianas, que pioram a corrupção geral. Também preocupa o número e a qualidade das pressões contra o jornalismo. Os oligarcas regionais pagam assassinatos de profissionais da imprensa que se dedicam a investigar e denunciar suas improbidades (há uma boa reportagem sobre o tema, na Revista Imprensa de fevereiro/2008). A última novidade, agora de assassinato moral e financeiro, vem com as ações de igrejas e sindicatos contra jornais como O Globo e Folha de São Paulo. Os lilliputianos da política brasileira não querem permitir que seus eleitores descubram o quanto custa os “favores” praticados nos seus mandatos. Mecanismos como a CGU, por respeitáveis que sejam, não bastam para vigiar e punir os abusos, porque os abusos são a forma eficaz — para quem dirige as unidades política menores da suposta federação — para conseguir recursos. Além disso, o número imenso de municípios não pode ser controlado por uma instituição que tem poucos funcionários. Enquanto formos um império disfarçado de república democrática, o governo sugará impostos, os munícipes estarão à mingua de saúde, educação, segurança. A corrupção dominará, soberana.
SIM.
Jorge Hage. Mestre em administração pública pela University of Southern California, nos Estados Unidos, é ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, a CGU, desde junho de 2006.
Iniciamos, e tornamos irreversível, a luta contra a corrupção no Brasil
Sim. O Brasil avançou, e muito, nos últimos cinco anos, no combate à corrupção.
É preciso reconhecer que nem o mais ingênuo dos mortais ignora que a corrupção na política e na administração sempre existiu, tanto no Brasil quanto em qualquer país do mundo, e que a nossa administração pública, por força de uma cultura fortemente patrimonialista no modo de ver o Estado – sem distinção dos limites entre o público e o privado – sempre foi um campo fértil para as mais variadas formas de corrupção.
Ninguém desconhece, tampouco, que o tema do “combate à corrupção” jamais havia ocupado, para valer, a agenda nacional, como nos últimos anos. Isso se dá pela convergência histórica de um conjunto de fatores, dentre os quais destaco: 1) a chegada ao poder de um partido político e de um presidente que representavam o novo, a mudança, e que sempre privilegiaram, em seu programa e em seu discurso, o combate à corrupção; 2) a efetiva autonomia permitida às áreas do governo incumbidas dessa missão – Controladoria Geral da União e Polícia Federal, essencialmente – para agir nesse sentido; 3) a total independência garantida ao Ministério Público, refletida na nomeação de Procuradores-Gerais do porte de Cláudio Fonteles e Antonio Fernando, que fazem contraponto marcante com o anterior PGR, que lá ficou por oito anos sem jamais “incomodar” o governo, nem deixar que qualquer Procurador o fizesse; 4) o especial sabor que apresentou para a mídia a oportunidade de divulgar, como espetaculares escândalos, todas as mazelas do atual governo – e este as tem, como todos os anteriores as tiveram – tanto as que mereciam, quanto as que não mereciam esse relevo.
Postas essas condições, o resultado não poderia ser outro senão um avanço efetivo no combate à corrupção e um enorme aumento na visibilidade do tema.
Esse avanço já pode ser hoje facilmente verificado e medido. Basta conferir o número de inquéritos criminais abertos pela PF nessa área e o número de procedimentos investigativos instaurados pelo Ministério Público. Basta ver o volume das auditorias feitas pela CGU, tanto em órgãos federais, como estaduais, municipais e entidades privadas que aplicam recursos federais. Basta anotar o número de funcionários e dirigentes públicos demitidos e destituídos de seus cargos pela ação do Sistema de Correição encabeçado pela CGU: foram já 1622, incluindo ocupantes de altos cargos, expulsos do serviço público por improbidade administrativa e ilícitos semelhantes.
Confiram-se também os números das Operações Especiais realizadas pela PF e CGU, o número de prisões e de quadrilhas desmontadas, por exemplo, nas Operações Gafanhotos, Vampiros, Sanguessugas, Navalha, etc. As investigações mostraram que todos eles, sem uma única exceção, já operavam há muito tempo. Só que não eram investigados, nem incomodados, nem divulgados.
Entretanto, as instituições não se transformam e purificam da noite para o dia. As velhas práticas – até por serem velhas – não são erradicadas apenas pela vontade do governante. Isso não se faz por um ato, um decreto, uma lei. Trata-se, antes, de um processo longo. O importante, porém, é que ele começou e já avançou bastante.
Em outra frente, o Brasil conta hoje, em seu Poder Executivo Federal, com um grau e um nível de transparência que tem poucos paralelos no mundo (e isso tem sido reconhecido nos eventos internacionais de que participamos). Até então, o grau de transparência das contas públicas brasileiras era de um zero absoluto. Hoje temos o Portal da Transparência, elogiado e copiado por muitos países, que já exibe mais de 600 milhões de informações, abrindo ao controle do cidadão recursos da ordem de R$ 4 trilhões. Ali estão expostos, em meio à totalidade das despesas do Orçamento, os gastos com o cartão de pagamento (excetuados os sigilosos), que permitiram todo esse amplo e democrático debate nacional (apenas parcialmente prejudicado pelos “erros crassos” de alguns órgãos de imprensa, como bem demonstrou, recentemente, o jornalista Josias de Souza em seu blog).
É preciso reconhecer que nem o mais ingênuo dos mortais ignora que a corrupção na política e na administração sempre existiu, tanto no Brasil quanto em qualquer país do mundo, e que a nossa administração pública, por força de uma cultura fortemente patrimonialista no modo de ver o Estado – sem distinção dos limites entre o público e o privado – sempre foi um campo fértil para as mais variadas formas de corrupção.
Ninguém desconhece, tampouco, que o tema do “combate à corrupção” jamais havia ocupado, para valer, a agenda nacional, como nos últimos anos. Isso se dá pela convergência histórica de um conjunto de fatores, dentre os quais destaco: 1) a chegada ao poder de um partido político e de um presidente que representavam o novo, a mudança, e que sempre privilegiaram, em seu programa e em seu discurso, o combate à corrupção; 2) a efetiva autonomia permitida às áreas do governo incumbidas dessa missão – Controladoria Geral da União e Polícia Federal, essencialmente – para agir nesse sentido; 3) a total independência garantida ao Ministério Público, refletida na nomeação de Procuradores-Gerais do porte de Cláudio Fonteles e Antonio Fernando, que fazem contraponto marcante com o anterior PGR, que lá ficou por oito anos sem jamais “incomodar” o governo, nem deixar que qualquer Procurador o fizesse; 4) o especial sabor que apresentou para a mídia a oportunidade de divulgar, como espetaculares escândalos, todas as mazelas do atual governo – e este as tem, como todos os anteriores as tiveram – tanto as que mereciam, quanto as que não mereciam esse relevo.
Postas essas condições, o resultado não poderia ser outro senão um avanço efetivo no combate à corrupção e um enorme aumento na visibilidade do tema.
Esse avanço já pode ser hoje facilmente verificado e medido. Basta conferir o número de inquéritos criminais abertos pela PF nessa área e o número de procedimentos investigativos instaurados pelo Ministério Público. Basta ver o volume das auditorias feitas pela CGU, tanto em órgãos federais, como estaduais, municipais e entidades privadas que aplicam recursos federais. Basta anotar o número de funcionários e dirigentes públicos demitidos e destituídos de seus cargos pela ação do Sistema de Correição encabeçado pela CGU: foram já 1622, incluindo ocupantes de altos cargos, expulsos do serviço público por improbidade administrativa e ilícitos semelhantes.
Confiram-se também os números das Operações Especiais realizadas pela PF e CGU, o número de prisões e de quadrilhas desmontadas, por exemplo, nas Operações Gafanhotos, Vampiros, Sanguessugas, Navalha, etc. As investigações mostraram que todos eles, sem uma única exceção, já operavam há muito tempo. Só que não eram investigados, nem incomodados, nem divulgados.
Entretanto, as instituições não se transformam e purificam da noite para o dia. As velhas práticas – até por serem velhas – não são erradicadas apenas pela vontade do governante. Isso não se faz por um ato, um decreto, uma lei. Trata-se, antes, de um processo longo. O importante, porém, é que ele começou e já avançou bastante.
Em outra frente, o Brasil conta hoje, em seu Poder Executivo Federal, com um grau e um nível de transparência que tem poucos paralelos no mundo (e isso tem sido reconhecido nos eventos internacionais de que participamos). Até então, o grau de transparência das contas públicas brasileiras era de um zero absoluto. Hoje temos o Portal da Transparência, elogiado e copiado por muitos países, que já exibe mais de 600 milhões de informações, abrindo ao controle do cidadão recursos da ordem de R$ 4 trilhões. Ali estão expostos, em meio à totalidade das despesas do Orçamento, os gastos com o cartão de pagamento (excetuados os sigilosos), que permitiram todo esse amplo e democrático debate nacional (apenas parcialmente prejudicado pelos “erros crassos” de alguns órgãos de imprensa, como bem demonstrou, recentemente, o jornalista Josias de Souza em seu blog).
E não há nada como uma política de transparência para inibir as práticas irregulares e prevenir a corrupção, na medida em que isso estimula e torna concreto o tão desejado controle social. Isso é mundialmente reconhecido e recomendado nas Convenções Internacionais de Combate à Corrupção.
O estímulo ao controle social, todavia, não se resume a isso. Temos hoje uma linha de ação específica que inclui a facilitação das denúncias, a realização de cursos e seminários para conscientização de cidadãos e de lideranças na fiscalização da administração.
Por fim, talvez o “segredo” maior do sucesso nesses avanços: a integração entre os diversos órgãos que atuam nessa área. Sim, porque o tradicional isolamento de cada um, a resistência em compartilhar informações com os demais e a competição velada sempre foram um grave limitador da eficácia no combate à corrupção. Hoje, graças ao esforço comum de todos, já atingimos níveis bem melhores de integração, inclusive entre os sistemas informatizados, a ponto de celebrar-se um acordo da comunidade de tecnologia das instituições de controle do Estado envolvendo, além do Executivo, também o Poder Judiciário e o TCU, sem falar no Ministério Público, cuja parceria com a CGU já vem sendo praticada desde 2003, além de consagrada em convênios de cooperação.
Como se vê, o que o atual governo fez foi abrir as contas públicas à vigilância da sociedade, além de fortalecer e dar ampla liberdade a todos os órgãos de fiscalização, controle e investigação. Estes, por sua vez, retiraram a tampa do esgoto e revelaram a sujeira que se escondia, desde sempre, abaixo da superfície. Tudo o que agora exala de podridão estava aí abafado há muito tempo. Em conseqüência, este mesmo governo, paradoxalmente, paga um alto preço político por essa decisão. Isso era, na verdade, previsível, e teria que ser iniciado algum dia: o processo de limpeza e depuração das instituições – pelo menos no tocante ao Poder Executivo Federal. Tenho muito orgulho por viver a oportunidade histórica de participar diretamente desse trabalho. Oxalá isso venha estender-se, mais adiante, a outros Poderes e às demais esferas da Federação Brasileira.
Quanto aos avanços já conquistados por nós, me parecem irreversíveis, até porque a opinião pública não permitirá retrocessos, sejam quais forem os próximos governantes do país. Ninguém haverá de tolerar a volta a um Ministério Público chefiado, por oito anos, por um “Engavetador Geral da República”; ninguém admitirá o enfraquecimento ou o desmonte da CGU; ninguém permitirá o fechamento do Portal da Transparência; ninguém conviverá com uma tutela política sobre a Polícia Federal.
Ainda há muito a fazer, mas o país já é outro. Só não vê quem não quer.
RÉPLICA (NÃO).
Por que o combate à corrupção não avança
"A ofensa gera o medo, que busca meios para a defesa, para a qual são reunidos partidários, dos partidos nasce a ruína das cidades" (Maquiavel). O pensador expõe o que se passa num Estado quando os seus problemas são discutidos com base partidária, algo evidente no texto do ilustre ministro Hage, a quem respeito desde longa data. É notória a sua divisão entre o passado tenebroso e o diáfano presente, o que joga luz alva sobre o partido hegemônico. Corrupção é algo mais grave do que interesses de partido, ela é uma questão social e de Estado inscrita na alma política do Brasil.
"A ofensa gera o medo, que busca meios para a defesa, para a qual são reunidos partidários, dos partidos nasce a ruína das cidades" (Maquiavel). O pensador expõe o que se passa num Estado quando os seus problemas são discutidos com base partidária, algo evidente no texto do ilustre ministro Hage, a quem respeito desde longa data. É notória a sua divisão entre o passado tenebroso e o diáfano presente, o que joga luz alva sobre o partido hegemônico. Corrupção é algo mais grave do que interesses de partido, ela é uma questão social e de Estado inscrita na alma política do Brasil.
No texto do ministro nota-se a técnica do holofote, indicada por E. Auerbach. A vida política ocorre em palco imenso, do qual o partidário ilumina uma parte. "Da verdade faz parte toda a verdade": quem apóia uma tese partidária imagina ter sido tudo explicado. Mas os discordantes percebem outros ângulos.
Dr. Hage elogia a autonomia do Ministério Público, como se fosse autorizada pelo atual governo e não representasse uma conquista da Carta, em 1988. Mas promotores têm direito pleno de investigar a corrupção? Vejamos o caso Remi Trinta: segundo o MPF, as suas fraudes consistiriam em adulterar datas; grafar controles semelhantes; prescrever evoluções médicas e de enfermagem similares, usando o mesmo tipo gráfico; enumerar leitos de enfermagem iguais aos de leitos em UTI; cobrar exames não realizados. Trinta recorreu ao STF, cuja decisão pode levar inúmeros processos por improbidade ao ponto zero. O holofote ilumina um traço da verdade, mas deixa o todo obscurecido. A culpa não cabe ao Dr. Hage, mas ele não pode afirmar, como absoluto, que existe hoje "total independência garantida ao Ministério Público".
Quanto à PF, louve-se o empenho. Mas por que tantas quadrilhas desmanteladas, com ramos políticas, não resultam em penas rigorosas? Chegamos ao privilégio de foro. Como diz o ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, a reivindicação daquele privilégio busca asfixiar a Justiça. "Os tribunais superiores não têm vocação para julgar crimes, não têm estrutura para ouvir diversas testemunhas para cada caso. Hoje, a maioria dos processos que são arquivados são por prescrição". O que ocorrerá se ex-autoridades forem agraciadas com o dito privilégio? "Um grande retrocesso", a lei de improbidade será "reduzida a pó. Só em Minas Gerais há mais de 700 municípios, todos os casos seriam transferidos para o Tribunal de Justiça, onde há apenas um procurador-geral" ("Foro Privilegiado agrava a situação", entrevista ao jornal O Globo, 18/03/2007). O escrito do Dr. Hage silencia o problema.
A prática corrupta se encontra em todos os partidos e poderes. Proponho um pacto aos governantes probos, nas três faces do Estado. A fórmula teria poucos elementos:
1) Todos os membros de um partido (na direção ou na base), suspeitos de improbidade, serão afastados. A pesquisa das acusações será rápida. Este item terá o patrocínio de Maquiavel, que adverte: "acusações são úteis nas repúblicas, calúnias são perniciosas". Provada a culpa ou a inocência, nas instâncias partidárias, a pessoa será reabilitada ou expulsa de modo inequívoco.
2) Toda pessoa com cargo nos três poderes acusada em público, se afastará imediatamente. Se após investigação, feita por integrantes probos dos três Poderes e da sociedade, for provada sua culpa ou inocência, ela retorna ao posto ou é demitida.
3) O contrato de probidade exige que os integrantes dos poderes aceitem o fim de privilégios contrários ao regime republicano e à democracia.
Ingenuidade? Se pensam desse modo, senhores, tenham a franqueza de confessar que o uso das coisas públicas, em proveito dos seus operadores, define o imperativo e a razão de Estado no Brasil. Ou deixem de falar sobre corrupção e seu combate.
RÉPLICA (SIM)
Os avanços são visíveis1.
Debater com o Professor Roberto Romano é um prazer e uma honra. É,
acima de tudo, uma garantia de debate limpo, sério e de alto nível.
Nesta réplica, na verdade, não tenho o que contestar na excelente
análise da formação histórica da nossa “federação”, sobretudo da
fragilidade dos nossos municípios.
Depois de lê-la, o que me ocorre fazer é apenas reforçar tudo o que disse na minha primeira intervenção: que o nosso país sempre foi um campo fértil apara a corrupção; que, historicamente, a administração sempre padeceu de uma cultura fortemente patrimonialista; e que somente agora, neste início do século XXI, é que teve início um combate sério e sistemático à corrupção; disse mais, que os avanços já obtidos são inegáveis e que ainda temos muito a fazer. Por fim, afirmei, e reafirmo, que a determinação do nosso povo não admitirá retrocessos nesse combate que iniciamos, porque isso já é uma conquista sua.
2. Quanto aos internautas que votaram contra nossa posição e justificaram o voto, o que se observa é que muitos dos argumentos expostos repetem os jargões batidos de sempre. Isso revela, a meu ver, uma certa desinformação sobre o que vem sendo feito de novo. Infelizmente, por muito tempo, nos acostumamos com frases prontas, constantemente repetidas (e com razão até então), do tipo: não tem jeito; é tudo corrupto mesmo, etc, etc.
Uma outra parcela dos internautas se mostra enfurecida, com toda razão, ante a ineficiência do aparato judicial para chegar à condenação dos culpados, e daí conclui que nada avançou a luta contra a corrupção. A esses, quero lembrar que as penas de reclusão (cadeia) e ressarcimento dos cofres públicos não são as únicas possibilidades, embora sejam as de maior apelo público.
3. Nós do governo entendemos que não deveríamos ficar parados enquanto não se resolve o problema dos processos judiciais no Brasil (que dependem, no fundo, de reforma das leis que permitem uma infinidade de recursos, ou seja, dependem do Congresso, mais que dos juízes). Por isso, lançamos um programa para fazer valer as punições administrativas (que dependem somente do Executivo) e com isso já pusemos para fora do serviço público federal mais de 1.600 agentes públicos nos últimos cinco anos. Não podemos colocar na cadeia (isso, repito, só a Justiça pode fazer), mas podemos expulsá-los dos quadros da administração. E isso já á alguma coisa. E contribui, sim, para acabar com a sensação de total impunidade, pois antes eles roubavam e permaneciam nos cargos...roubando mais. E como não havia combate à corrupção, não se falava neles e a sociedade não ficava sabendo dos desvios praticados.
4. Além disso, nos últimos anos, centenas de prefeitos foram afastados ou perderam o cargo pela prática de improbidade administrativa ou de crime eleitoral. Em relação à lavagem de dinheiro (em que grande parte do dinheiro lavado vem da corrupção) e a crimes financeiros, em 2002, tínhamos 110 inquéritos policiais e ações penais e 9 pessoas foram condenadas por esses crimes na Justiça Federal. Já em 2007, foram 742 inquéritos e ações penais e o número de condenações subiu para 190. Portanto, há visíveis avanços também no combate à impunidade.
5. Apostamos também na inibição da corrupção pela força da transparência. Refiro-me à importância da exposição pública, tanto das despesas realizadas (veja-se o Portal da Transparência da CGU), como da revelação das irregularidades descobertas em nossas auditorias. É o que vem sendo feito em todo o mundo. É o que estamos fazendo.
6. Concluo, de tudo isso, que a maioria das pessoas que votou NÃO, na 1ª etapa do debate, poderia também ter votado SIM, pois elas deixaram claro que fizeram sua avaliação somente porque a Justiça não coloca os corruptos na cadeia definitivamente, e solta os que a PF prende (em prisão provisória, é claro, porque as leis não permitem a definitiva senão após todo o longo processo). Um internauta chegou a dizer que seria melhor a PF não prender e a CGU não divulgar as auditorias que faz, para não provocar a decepção, depois, quando a Justiça não consegue condenar o corrupto à cadeia. Eu não concordo. Tudo o que estamos fazendo contribui para o avanço, pois o primeiro requisito para isso é justamente mobilizar a sociedade e fazê-la cobrar do Congresso que aprove as leis necessárias para permitir um processo penal mais rápido e efetivo. Aliás, a própria ÉPOCA, na reportagem que sustenta este debate, reconhece os avanços conseguidos no combate à corrupção.
7. É grande o número de pessoas que votaram NÃO, mas admitiram que o combate avançou ... Peço a estas que revejam seus votos. O que se perguntou não foi se a corrupção acabou; ninguém pensaria em afirmar isso. Mas, justamente, se O BRASIL AVANÇOU NESSE COMBATE. E muitos desses internautas reconheceram os avanços, mas votaram NÃO. Eu entendo que o impulso inicial é esse, até pela sadia indignação; mas não é isso que o debate está procurando medir, e sim se houve algum avanço.
8. Fico surpreso e angustiado em ler manifestações que discordam de nós quando dizemos que já “acabamos com a corrupção”. Eu jamais disse isso e creio que jamais diria. Nenhum país do mundo acabou ou acabará completamente com a corrupção. É como pensar que se acaba com a criminalidade. Pois a corrupção é um crime como outros. O que afirmei, e não hesito em repetir, é que NÓS ESTAMOS AVANÇANDO NESSA LUTA E VAMOS CONTINUAR AVANÇANDO.
9. Houve casos, nas manifestações dos internautas, em que o cidadão chega a dizer textualmente “é óbvio que houve avanço, mas ... a impunidade ainda é grande, porque ninguém fica preso, etc”... Ora, qual foi a pergunta de ÉPOCA? Então essa resposta deveria ser, na verdade, pelo SIM.
10. Por fim, temos convicção de que estamos no caminho certo. O Brasil vai vencer a luta contra a corrupção.
ARGUMENTOS FINAIS (NÃO).
A corrupção é sistêmica, por isso persiste no Brasil
Sempre que perguntado pela imprensa ou em reuniões científicas sobre a corrupção política, saliento que um ponto estratégico do problema encontra-se na diferença de pautas entre a eleição presidencial e a do Congresso. A primeira retrata o que o país espera do presidente. A segunda recolhe a vida regional com suas carências. Os representantes do povo ou dos Estados têm compromisso com suas bases e não são premidos, como o presidente, diretamente pelas questões nacionais. Para eles, importa levar verbas e obras aos municípios. É inevitável a fluidez do apoio a todos os presidentes. Daí, a tentação do “é dando que se recebe”, para vencer a areia movediça que o supostamente poderoso Executivo deve solidificar. Daí minha recusa de responder que os fatos corruptos diminuíram no Brasil. O problema foi partidarizado em demasia.
A corrupção pode ser vista por dois ângulos, o sincrônico e o diacrônico. Ela atravessa ao mesmo tempo as camadas sociais e as políticas pois se transformou em sistema. No mesmo instante em que certos corruptos operam nos poderes, outros agem no mercado, na sociedade, em setores religiosos ou esportivos. Todos agem ao mesmo tempo. Descobertos alguns deles pelo MP, polícia, imprensa, a vista se volta para quem teve sua ação desvelada. Ficam na sombra os não descobertos. Se os olhos repousam nos descobertos em diacronia, pode parecer que existe progresso na denúncia e punição dos corruptos. Mas ninguém sabe, com números exatos, quantos grupos restam em atividade. Respondi com um "não" a Época com base no jogo entre corrupção sistêmica (sincrônica) e na denúncia ou punição, diacrônicas. E para isso, me baseio em dados, fatos, testemunhos e documentos.
É inegável que existe na vida pública brasileira uma cortina cinzenta entre o legal e o moral. Muitas coisas são legais e não éticas. O “julgamento” de Calheiros pelos pares foi legal. Com tal legalidade, ele influiu no juízo derradeiro e secreto dos senadores. O privilégio de foro é legal e sustenta a impunidade dos improbos. Além dessa ambigüidade entre ética e lei, existem setores onde nem lei existe, como nos cargos de confiança. Os 20 mil cargos não normatizados por lei ocasionam práticas nada éticas. Existem cargos assim nos três poderes e nos municípios, estados, federação. Existe leniência em todos os partidos. O caixa 2 praticado em favor de Eduardo Azeredo é prova. Não se olvide Roberto Jefferson, a quem o presidente dizia, na véspera do escândalo, que lhe daria um cheque em branco. As mazelas a que se refere o Dr. Hage em sua pronúncia inicial com certeza incluem o processo no STF, sobre certa quadrilha reunida para delinqüir. Agremiações humanas são falíveis e nenhuma delas possui carta patente de moralidade, com os privilégios de Adão antes da queda do Paraíso. Nenhum dos poderes é imaculado. O privilégio de foro potencializa a improbidade em todos eles, o que não é compatível com a república democrática.
A sociedade civil e o mercado mostram formas corrompidas e corruptoras das quais ainda não se atingiu o conhecimento pleno. Cálculos indicam que a média anual dos “custos indiretos” no país se elevam a mais de um bilhão de reais. A Transparência Brasil mostra que 70% das empresas por ela consultadas gastam até 3% de seu faturamento em propinas. Todos os dados acima foram extraídos de pesquisas feitas por acadêmicos sérios como Marcos Otávio Bezerra, Felix Garcia Lopez, Cláudio Weber Abramo, Axel Dreher, Caio Magri (do Instituto Ethos) e outros. Quem deseja um correto dossiê sobre o tema leia o excelente trabalho de J. Tavares na Revista "Problemas Brasileiros" nº 386 (“O sucesso do caixa 2 na terra da propina”). A corrupção não afeta um ou outro governo, mas todos; um ou outro poder, mas todos; um ou outro partido, mas todos; uma ou outra instância social, mas todas. Ela ameaça o Estado e a sociedade. Imaginar correções que a atenuem exige cooperação dos ainda probos em todos os setores e poderes.
É por tal motivo que não aceito algumas teses do ministro Hage quando ele insiste em ordenar o âmbito político de modo partidário: antes, a plena opacidade impune e hoje, a completa transparência que pune com rigor. Compreendo que, levado pela defesa de seus pares no governo, o probo ministro tenha sido conduzido à referida divisão. O ministro, que admiro e que elogiei face a face no Primeiro Seminário de Ética e Decoro Parlamentar, na Câmara dos Deputados, (com assistência diminuta de parlamentares, que durante muito tempo clamaram sobre “ética na política”, e chegados ao poder, julgaram o assunto irrelevante), nunca se mostrou adepto de Mani, sempre agiu como estadista, como poucos do país. Em artigos e palestras em todo o território nacional, faço referências positivas ao trabalho da CGU, louvo os seus métodos e alvos. Mas não deixo de observar falhas no combate à corrupção, não devidas ao ministro ou à agência que dirige. Seu labor é meritório e deve ser respeitado (como afirmei no meu primeiro texto deste debate) mas insuficiente. O Secretário Executivo da CGU, Luiz Navarro, que tem a confiança do Dr. Hage, afirma à revista "Problemas Brasileiros" que “para dar conta de tantas atribuições, o total atual de fiscais — 2,1 mil — não é suficiente (...) o número previsto na lei de carreira de finanças e controle de 1995 é de 5 mil auditores, entre analistas e técnicos”. Quando disse que o trabalho da CGU é respeitável, mas não basta, citava um responsável pela própria CGU.
Louvo o ministro Hage e
o respeito. Mas não silencio mazelas que, com clareza lógica e
fundamentos empíricos, indico não dependerem dele ou de sua instituição,
nem mesmo do MP ou da Polícia. Retomo: a corrupção brasileira é
sistêmica, ela ainda sequer foi mapeada, quanto mais combatida com a
necessária firmeza, amplidão e profundidade. Esforços heróicos, entre
eles os de pessoas como Hage, não absolvem a massa de operadores do
Estado e da sociedade imersos em privilégios, usos dos bens públicos em
proveito próprio, tudo sob o manto do passaporte para a delinquência,
chamado privilégio de foro.
Agradeço a Época, ao Dr. Hage e aos
leitores que deram sua opinião a oportunidade de expressar o que penso
sobre os que dirigem a nossa terra.
ARGUMENTOS FINAIS (SIM).
O combate à corrupção é um caminho sem volta
Nessas
alegações finais, quero, inicialmente, parabenizar a revista Época e
agradecer o convite para participar desse debate interativo. Essa é uma
iniciativa altamente louvável por propiciar um debate amplo e sério, em
veículo da importância da Época, sobre temas de grande relevância para o
Brasil. No caso deste debate acerca dos avanços no combate à corrupção,
penso que a proposta alcançou o mais pleno êxito, inclusive ajudando
através das opiniões exibidas, seja pelos debatedores, seja pelos
internautas, a desmistificar velhos conceitos e “certezas” que muitas
vezes nos conduzem para o lugar-comum “de que nada adianta fazer, pois a
corrupção no Brasil é endêmica”. Portanto, é com imensa satisfação e
vigor renovado que nós, que lidamos no dia-a-dia com a prevenção e o
combate à corrupção, verificamos que grande parte da sociedade
brasileira já reconhece os avanços que foram feitos e que, de forma
igualmente consciente, afirma que ainda há muito a ser feito. Quero
também dirigir meus cumprimentos ao Professor Roberto Romano pela sua
postura sempre elegante ao travar este debate de maneira franca, séria e
leal. Comungo, como já tive oportunidade de afirmar, de várias das
opiniões reveladas pelo Professor Romano. Essencialmente, divirjo apenas
da sua insistência em não reconhecer os avanços ocorridos no Brasil nos
últimos anos nessa área.
Aos internautas, que estão dando essencial
contribuição a esse debate, quero parabenizar pelo espírito de
participação e cidadania. Aliás, participação e cidadania que são
essenciais para o combate à corrupção. Quero agradecer a todos, aos que
se manifestaram pelo “SIM” e aos que optaram pelo “NÃO”. Como disse no
início, é a manifestação da sociedade que fortalece a confiança no nosso
trabalho.
A participação da sociedade e da imprensa em si mesma denota o avanço e garante que o caminho do combate à corrupção é irreversível. A sociedade brasileira não admitirá recuos no fortalecimento e na independência de atuação dos órgãos de controle e investigação como a Controladoria-Geral da União, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União.
Quero, por fim, dizer que o que se tem agora é uma política estruturada de prevenção e combate à corrupção que segue padrões internacionais e que compreende a prevenção, o controle, a investigação e a repressão. Política que se funda na transparência pública, no controle social, na independência dos órgãos de controle e investigação e, sobretudo, na ação conjunta e articulada de todos os órgãos encarregados dessa tarefa. Isso é essencial. É essa articulação que está se mostrando capaz de transformar a realidade e de produzir as conquistas sucessivas necessárias. Já avançamos muito no combate à corrupção mas temos clareza de que ainda resta muito por fazer. E isso se conseguirá disseminando essa consciência, registrando os avanços e, assim, retemperando as energias para prosseguir na caminhada. E não fechando os olhos para as conquistas e repetindo inercialmente os velhos chavões do negativismo. Vamos continuar na luta. Muito obrigado pelo apoio.
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No Debate ÉPOCA dois convidados defendem opiniões opostas e disputam a
preferência da audiência. Acompanhe os argumentos de cada um para
decidir seu voto e deixe seus comentários.