domingo, 22 de janeiro de 2012

De Sergio Caponi, uma triste e instigante crônica.

UMA FLORESTA NO CÉU

Heitor não é alto. Um metro dá e sobra para medi-lo. Com dois anos e meio, porém, não lhe faltam faíscas nos olhos nem palavras afiadas na língua para mostrar a que veio. Heitor é um espanto e um encanto. Escrevo isto isento de corujices, posto que não passe de avô postiço do garoto. Mas é como se avô verdadeiro fosse. Não sai daqui de casa e, quando dou por mim, lá estou eu a trocar idéias com o portento. 

Dia desses, entrou, porta adentro, com um band-aid no dedo. Caíra e se machucara. Coisa de criança. Já na entrada, detalhou à vovó postiça a desastrada ocorrência.

Chegada minha vez, porém, a história era outra.
 
- Vô: o dinossauro mordeu meu dedo!
 
- Mordeu? Respondi fingindo espanto, já que, afora alguns políticos carcomidos que conheço, de minha parte, considero extinto o tal monstrengo.
 
- É: mordeu.
 
- E onde está o dinossauro agora? 
 
- Na floresta.
 
- Que floresta?
 
- Ali – e apontou o dedinho para o terreno vizinho onde, atrás do muro, um vistoso eucalipto e meia dúzia de árvores projetam galhos sobre a paisagem.
 
É bom que se diga: projetam para os adultos que, como eu, os vislumbram por sobre o muro. Não para ele que, de ângulo bem mais obtuso, apenas os vê pregados no azul e nas nuvens do céu.
 
No dia seguinte, cá estava o Heitor de novo.

Perguntado do dinossauro e do dodói de duvidosa existência que o surrado band-aid  insistia em disfarçar, declarou-se ainda ferido e convalescente.
 
- E cadê o dinossauro? Perguntei-lhe 


- Tá lá, na floresta do céu.
 
O celestial e adverbial acréscimo revelava-se tão surpreendente quanto, no dia anterior, os caninos impiedosos da fera.
 
- No céu? Retorqui.
 
- É: no céu!
 
E lá fui eu esclarecer-me com a astuta vovó postiça sobre a tão enigmática floresta voadora.
 
- Mera questão de ponto de vista – descarregou ela sobre meus vexados e indolentes neurônios.
 
Era mesmo!
 
O fato sobejamente lógico é que tudo muda dependendo do ponto de vista!
 
Pensava ainda isto quando, abrindo o jornal, topei com a notícia da morte da indiazinha Awá-Gwajás queimada viva por madeireiros no Maranhão. Gente dita civilizada cuja ação desbravadora, de há muito, barbariza o tosco e chamuscado trono de Tupã. Só faltava esta; se é que faltava, do que duvido. Queimar viva uma criança em holocausto ao deus dinheiro, o velho e hediondo Baal da antiguidade a cuja fornalha insaciável, há milênios, não há criança que baste. O mesmo Baal que Brasília costuma reverenciar em decretos, leis, portarias e outras baixarias desaforadas que não intentam preservar nada que não interesses econômicos e políticos sobrepostos à dignidade dos legisladores. Tudo em nome do progresso e da civilização deste país que, não por acaso, deve seu nome a um pecado ambiental: a quase extinção de uma espécie arbórea.
 
O que, porém, o imaginativo Heitor não criou em suas invencionices, criei eu, com lágrimas nos olhos, lendo a tétrica notícia. Vi, nitidamente, a alma da indiazinha, levada por anjinhos silvícolas pintados de urucum, ascender triunfalmente à tal floresta voadora do Heitor. Era a catarse mitológica que nos faltava; o paraíso imaginário para onde iriam as almas das árvores, dos bichos e dos índios que tiveram a infelicidade de contatar madeireiros, pecuaristas, agricultores e engenheiros ainda não amansados.
 
Trágico, mesmo, foi imaginar o pobre Heitor e toda sua geração condenados a viver as consequências desse absurdo, num mundo desertificado, de clima indócil e, a bem da fornalha de Baal, com alguns bons graus a mais na sua temperatura média.
Sérgio Caponi