UMA FLORESTA NO CÉU
Heitor não é alto. Um metro dá e sobra para medi-lo. Com dois anos e meio, porém, não lhe faltam faíscas nos olhos nem palavras afiadas na língua para mostrar a que veio. Heitor é um espanto e um encanto. Escrevo isto isento de corujices, posto que não passe de avô postiço do garoto. Mas é como se avô verdadeiro fosse. Não sai daqui de casa e, quando dou por mim, lá estou eu a trocar idéias com o portento.
Heitor não é alto. Um metro dá e sobra para medi-lo. Com dois anos e meio, porém, não lhe faltam faíscas nos olhos nem palavras afiadas na língua para mostrar a que veio. Heitor é um espanto e um encanto. Escrevo isto isento de corujices, posto que não passe de avô postiço do garoto. Mas é como se avô verdadeiro fosse. Não sai daqui de casa e, quando dou por mim, lá estou eu a trocar idéias com o portento.
Dia desses, entrou, porta adentro, com um band-aid no dedo. Caíra e se machucara. Coisa de criança. Já na entrada, detalhou à vovó postiça a desastrada ocorrência.
Chegada minha vez, porém, a história era outra.
- Vô: o dinossauro mordeu meu dedo!
- Mordeu? Respondi fingindo espanto, já que, afora alguns
políticos carcomidos que conheço, de minha parte, considero
extinto o tal monstrengo.
- É: mordeu.
- E onde está o dinossauro agora?
- Na floresta.
- Que floresta?
- Ali – e apontou o dedinho para o terreno vizinho onde, atrás
do muro, um vistoso eucalipto e meia dúzia de árvores projetam
galhos sobre a paisagem.
É bom que se diga: projetam para os adultos que, como eu, os
vislumbram por sobre o muro. Não para ele que, de ângulo bem
mais obtuso, apenas os vê pregados no azul e nas nuvens do
céu.
No dia seguinte, cá estava o Heitor de novo.
Perguntado do dinossauro e do dodói de duvidosa existência que
o surrado band-aid insistia em disfarçar, declarou-se ainda
ferido e convalescente.
- E cadê o dinossauro? Perguntei-lhe
- Tá lá, na floresta do céu.
O celestial e adverbial acréscimo revelava-se tão
surpreendente quanto, no dia anterior, os caninos impiedosos
da fera.
- No céu? Retorqui.
- É: no céu!
E lá fui eu esclarecer-me com a astuta vovó postiça sobre a
tão enigmática floresta voadora.
- Mera questão de ponto de vista – descarregou ela sobre meus
vexados e indolentes neurônios.
Era mesmo!
O fato sobejamente lógico é que tudo muda dependendo do ponto
de vista!
Pensava ainda isto quando, abrindo o jornal, topei com a
notícia da morte da indiazinha Awá-Gwajás queimada viva por
madeireiros no Maranhão. Gente dita civilizada cuja ação
desbravadora, de há muito, barbariza o tosco e chamuscado
trono de Tupã. Só faltava esta; se é que faltava, do que
duvido. Queimar viva uma criança em holocausto ao deus
dinheiro, o velho e hediondo Baal da antiguidade a cuja
fornalha insaciável, há milênios, não há criança que baste. O
mesmo Baal que Brasília costuma reverenciar em decretos, leis,
portarias e outras baixarias desaforadas que não intentam
preservar nada que não interesses econômicos e políticos
sobrepostos à dignidade dos legisladores. Tudo em nome do
progresso e da civilização deste país que, não por acaso, deve
seu nome a um pecado ambiental: a quase extinção de uma
espécie arbórea.
O que, porém, o imaginativo Heitor não criou em suas
invencionices, criei eu, com lágrimas nos olhos, lendo a
tétrica notícia. Vi, nitidamente, a alma da indiazinha, levada
por anjinhos silvícolas pintados de urucum, ascender
triunfalmente à tal floresta voadora do Heitor. Era a catarse
mitológica que nos faltava; o paraíso imaginário para onde
iriam as almas das árvores, dos bichos e dos índios que
tiveram a infelicidade de contatar madeireiros, pecuaristas,
agricultores e engenheiros ainda não amansados.
Trágico, mesmo, foi imaginar o pobre Heitor e toda sua geração
condenados a viver as consequências desse absurdo, num mundo
desertificado, de clima indócil e, a bem da fornalha de Baal,
com alguns bons graus a mais na sua temperatura média.
Sérgio Caponi