JOÃO PEREIRA COUTINHO
Conhecer o monstro
A prosa de "Mein Kampf", de Hitler, é deselegante, mas não é a obra de uma mente inimputável
No outono de 2001, cheguei à Universidade de Oxford para fazer pesquisas
sobre o meu tema de doutorado. Instalei-me no colégio (o St. Antony's) e
depois fui falar com o meu supervisor, Henry Hardy, então "fellow" de
um outro colégio (o Wolfson; nenhum deles, confesso com mágoa, serviu de
cenário para os filmes de Harry Potter).
A
minha tese lidava com a noção de utopia em política e, em especial, com
a crítica que o pensador Isaiah Berlin fizera ao destrutivo conceito.
Hardy era (e é) o editor e curador da obra de Berlin. Estava em boas
mãos.
A
primeira reunião correu bem -para Hardy, não para mim. Uma hora de
conversa chegou e sobrou para eu contemplar minha ignorância sobre a
matéria, que eu julgava inexistente. Fui anotando bibliografia vasta. E,
entre os livros com prioridade absoluta, estava "Mein Kampf", o infame
libelo de Hitler.
Rumei
à principal livraria da cidade (a saudosa Blackwell's, onde dias depois
cruzei com Bill Clinton; outras histórias) e pedi, um pouco
envergonhado, o livro de Hitler. Devo ter pronunciado o nome como os
homens de meia-idade pedem Viagra na farmácia: "mezzo piano". Quem, em
juízo perfeito, compra obras nazistas?
O
vendedor nem mexeu uma pálpebra: despachou o assunto como se eu tivesse
pedido a última produção de Paulo Coelho. Um livro é um livro é um
livro. "Mein Kampf" não tinha nada de especial. Simples fóssil
histórico.
E,
à primeira vista, o vendedor tinha razão: regressei para o quarto e,
durante dois dias, convivi com o cabo Adolf Hitler, em 1924, na prisão
de Landsberg, depois do "putsch" falhado contra o governo da região da
Baviera.
A
prosa é entediante, deselegante, com ocasionais delírios de ódio e
megalomania. Mas "Mein Kampf" não é a obra de uma mente inimputável. Para entender a natureza destrutiva da utopia no século 20, era necessário ler um dos seus exemplos mais viciosos.
"Mein Kampf" era esse exemplo. E o que horroriza no livro, tal como
notou Ian Kershaw na biografia definitiva sobre o bicho, é a forma como
Hitler apresenta, sem eufemismos, a infâmia moral e estratégica que se
preparava para cometer a partir de 1933 -ano em que chega ao poder e,
pormenor macabro, "Mein Kampf" passa a ser oferecido a todas as famílias
alemãs.
A
infâmia moral lida com a "questão judaica". Para Hitler, o "judeu" não
era apenas o elemento corruptor da "pureza ariana". "Judeu" e
"bolchevique" passaram a ser termos indistintos: exterminar um era
exterminar o outro (e vice-versa).
O
que nos leva diretamente à infâmia estratégica: a campanha contra a
União Soviética de Stálin, violando o pacto de não agressão
Molotov-Ribbentrop de 1939, pode ser visto, hoje, como o grande erro dos
nazistas na Segunda Guerra.
Mas
marchar contra a Rússia sempre esteve presente no pensamento
estratégico de Hitler: exterminar os bolcheviques (ou os judeus, tanto
faz) implicava alargar o "espaço vital" da Alemanha para leste, ou seja,
abocanhar território russo para garantir a subsistência material e
espiritual do povo ariano.
As
ideias têm consequências, dizia Isaiah Berlin, meu tema de estudo. Em
"Mein Kampf", a tese era ilustrada na perfeição: só um otimista
antropológico pode imaginar que Hitler era uma mente inimputável. Pelo
contrário: a sua monstruosidade é racional e construída sobre premissas
teóricas passíveis de leitura e conhecimento.
Por
isso aplaudo a decisão de uma revista alemã de publicar excertos da
obra em 2012, com comentários eruditos a acompanhar o texto original. Na
Alemanha, a publicação de "Mein Kampf" está banida pelo Estado da
Baviera, que detém os direitos da obra e se recusa a cedê-los a qualquer
editora. O mesmo Estado pondera agora processar a revista por publicar
material potencialmente perigoso.
Um
erro. O perigo de "Mein Kampf" não está na sua divulgação; está,
ironicamente, na sua proibição, transformando-se o livro em objeto de
fascínio macabro.
Ler
"Mein Kampf" enterra esse fascínio e mostra apenas que Hitler era um
exemplar aberrante da nossa humaníssima espécie. Conhecer a sua cabeça é
a melhor forma de evitar outra igual.