Segunda-feira, 30 de Janeiro de 2012
A ética indolor
Será que nesta época em que vivemos o cumprimento do dever foi ofuscado pela
fruição do prazer individual, que nos tornámos indiferentes ao sofrimento
alheio, que as atitudes altruístas se esfumaram?
Lipovetsky, na obra O crepúsculo do dever: A ética indolor nos tempos democráticos (1994) afirma que as lições
intransigentes da moral desertaram do espaço público e privado, o imperativo
maximalista do coração puro, os apelos à dedicação absoluta, o ideal
hiperbólico de viver para o outro, todas estas exortações deixaram de ter
ressonância colectiva; a hora é da desvitalização da forma-dever, do estiolamento
do mandamento moral infinito (p. 147).
Porém, se olharmos para a realidade circundante constatamos
uma pluralidade de acções humanitárias e de beneficência. Em particular, os media,
com destaque para a televisão, lançam constantemente campanhas de
solidariedade, sempre que ocorrem catástrofes naturais ou outras, bem como desnortes económicos. Este olhar
não pode deixar de nos dar ânimo: afinal não vivemos num quadro apocalíptico
configurado pelo vazio axiológico total. Lipovetsky talvez esteja errado.
Um pouco mais adiante (p. 148-150), este autor
esclarece esse quadro: a “ética beneficia de uma legitimidade readquirida, isso
não significa a reinserção, no coração das nossas sociedades, da boa e velha
moral dos nossos pais, mas sim a emergência de uma regulação ética de um tipo
inédito”. Aquilo a que assistimos é uma pós-moralidade, traduzida na substituição
do “imperativo altruísta” pela agitação caritativa, assente, esta, numa “moral
sem obrigações nem sanções”.
O sujeito não tem relutância em afirmar o desejo de
viver prioritariamente para si, de afirmar o seu hedonismo narcisista, o qual, por
mais acentuado que seja, não aparece como imoral e, ao contrário de ser
censurado, é legitimado pelo contexto individualista. Nesta cultura
pós-moralista o sujeito tem sobretudo direitos subjectivos e não deveres de
abnegação.
Mas, voltando acima, será que o sujeito contemporâneo recusa fazer o Bem? A opinião de Lipovetsky é que esse sujeito, cada um de nós, não renuncia
à dádiva e à solidariedade, mas apenas em situações excepcionais de urgência, de
vida ou e morte, e na condição disso não representar um grande sacrifício ou uma
renúncia aos seus próprios prazeres. A “generosidade é circunstancial”, exteriorizada
somente em situações de grande sofrimento humano”, a “preocupação ética, gera,
no mais fundo de si mesmo, um altruísmo indolor de massas” (p. 153 e 157).
Deixámos de louvar a exigência permanente de nos
consagrarmos ao outro. E aqui Lipovetsky socorre-se de Jankélévitch: “o tempo
do imperativo categórico deu lugar a uma ética minimal e intermitente da
solidariedade compatível com a primazia do ego” (p. 157).
Será
pertinente agora perguntar se a moral tradicional, caracterizada
pelo “espírito de disciplina uniforme e autoritária” fez perder todos os
critérios éticos, tornando quaisquer atitudes e acções aceites e
toleráveis.
A resposta de Lipovetsky é também negativa (p. 167): embora
seja incontestável o desgaste de muitos referenciais seguros, continuamos a
defender um conjunto de valores consensuais que apontam para critérios
transsubjectivos, para exigências morais mínimas.
Continuamos a repudiar os comportamentos que ponham em
causa a integridade e a segurança, “a escravatura, os crimes de sangue, a
crueldade, a espoliação, a humilhação, as mutilações sexuais, a violação, as
sevícias psicológicas e físicas” (p. 168). A nossa capacidade de indignação
moral não morreu.