sexta-feira, 27 de janeiro de 2012


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Estética e política em Gilberto Mendes

Gilberto Mendes, 89 anos, é um dos compositores da contemporaneidade mais destacados entre ouvintes de música erudita. O artista, que começou a estudar música tardiamente no Conservatório Musical de Santos, sua cidade natal, inseriu-se no campo da música erudita brasileira como estudante, na década de 1940. Sua biografia, narrada por ele mesmo em dois livros da Edusp, foi o ponto de partida da pesquisa de doutorado em antropologia social realizada pela antropóloga Carla Delgado de Souza, sob orientação de Rita de Cássia Lahoz Morelli, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Para a pesquisadora, interessada na obra de Mendes desde a primeira vez que ouviu a música para coro Beba Coca-Cola, as duas autobiografias foram fontes preciosas para a realização de um estudo que permitisse mapear as relações entre arte e mercado e entre estética e política, determinantes para a música brasileira de 1940 até 2001, período em que o compositor se estabeleceu como um dos principais representantes da música erudita contemporânea no Brasil e no mundo.
Ao relacionar a vida de Gilberto Mendes com o campo da música erudita, Carla torna públicas reflexões sobre tensões e ambiguidades no universo musical. Começando pela década de 1940, momento em que ele decidiu seguir uma carreira musical, a autora ressalta o predomínio político da estética nacionalista no campo da música erudita brasileira. Neste período, muitos artistas pautaram suas produções no projeto de construção nacional vigente, já que a própria ideia de uma música erudita originalmente brasileira estava vinculada a esses projetos.
Num momento em que começava a ser contestado pelo Movimento Música Viva, o nacionalismo musical encontrou forças no Partido Comunista Brasileiro, que coadunado com as políticas para a arte propostas por Andrei Jdanov (1896-1948), pregava uma estética musical que se apegasse às referências nacionais e à tradição musical clássico romântica.
Assim, de acordo com Carla, o nacionalismo conseguiu manter sua posição privilegiada no campo musical, atraindo adeptos tanto do setor mais conservador, quanto aqueles vinculados a uma proposta política “de esquerda” e marxista. “Sendo considerado pelas políticas soviéticas para a arte como uma técnica musical degenerada, o dodecafonismo, inovação formal que era uma das pedras de toque do movimento Música Viva, não foi bem-sucedido em sua missão política”, acrescenta a autora.
Em meio a esse clima, após um breve período em que Gilberto Mendes não se vinculou a nenhum dos “modernismos” vigentes no cenário nacional, o compositor acabou cedendo aos apelos políticos por uma arte nacionalista. Mesmo não se identificando inteiramente com a proposta musical nacionalista, o compositor sabia que se inserir neste campo seria a melhor postura política a adotar como um músico inovador na época.
Ao se interessar pela música de vanguarda europeia, Gilberto Mendes começou a estudar com Olivier Toni e a frequentar o ambiente musical paulistano em 1955. Nesse processo, ainda ligado ao Partido Comunista, Mendes estudou até mesmo as novidades musicais criticadas como sendo burguesas e degeneradas pela política partidária.
Segundo Carla, a postura estética de Mendes fica mais clara quando, adepto das novidades europeias contemporâneas, passa a ter sua casa como centro de referências para nomes da música brasileira como Willy Corrêa de Oliveira. “Ele pretendia se informar sobre o que acontecia na Europa em termos musicais”, explica Carla. Nas performances de música contemporânea no Teatro Municipal de São Paulo, Mendes e Corrêa, ao lado de Rogério Duprat e Damiano Cozzela, se consagraram, finalmente, como a vanguarda da música erudita brasileira.
Carla lembra que, como sempre, as vaias vieram a calhar para que os compositores tivessem o escândalo necessário para figurar na mídia brasileira. Com a viagem dos artistas para o curso de verão de Darmstadt, na Alemanha, o Manifesto Música Nova, a criação do Madrigal Ars Viva e do Festival Música Nova, em Santos, onde Mendes mora até hoje, o novo momento estético ganhou força e, além disso, teve o apoio da vanguarda da poesia concreta, formada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari.
Os compositores integrantes do movimento Música Nova, segundo Carla, tiveram uma relação conflituosa com o mercado musical, o que pode ser vislumbrado pelas diferentes vinculações de Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat e Damiano Cozzela a essa esfera. Enquanto os dois primeiros assumiram uma postura combativa ao mercado, Duprat e Cozzela se desiludiram com o campo da música erudita e passaram a investir na produção de jingles, trilhas e arranjos musicais, dialogando abertamente com o mercado.
De acordo com a antropóloga, mesmo se desvinculando da proposta estética de vanguarda, a partir do final da década de 1970, Gilberto Mendes e Oliveira continuaram contestando a indústria cultural. A música composta para fins mercadológicos continuou recebendo interpretação negativa dos dois compositores.
Após os conflitos dentro do movimento de vanguarda, Corrêa de Oliveira e Mendes se aproximaram do universo popular, mas de maneiras distintas, segundo Carla. “Em um processo de abertura estética e de pertencimento ao pós-modernismo musical, Oliveira propôs que os compositores compusessem de modo engajado, auxiliando o proletariado na luta de classes”, explica Carla.
Já Gilberto Mendes marca sua entrada no pós-modernismo musical ao retomar a música popular norte-americana e ao desenvolver uma composição musical mais livre. A tese mostra que Willy não rompeu a postura de vanguarda mesmo optando pelo trabalho mais popular. “Por mais que tivesse adotado uma música popular vermelha, seus pares e suas atitudes continuavam os mesmos”, enfatiza Carla.
Um aspecto abordado na tese e que surpreendeu a autora foi o pouco espaço reservado em suas narrativas biográficas a sua incursão nos ambientes universitários e na Academia Brasileira de Música. Ela acredita que isso ocorra porque ela tenha ocorrido fora de época e lugar para o compositor.
A orientadora da tese, Rita de Cássia Lahoz Morelli, enfatiza que o trabalho de Carla é importante por conseguir apresentar uma história do campo da música erudita no Brasil a partir da experiência de Gilberto Mendes. “Acredito que analisar a história do campo da perspectiva de outro sujeito resultaria em uma análise diferente. Carla não teria conseguido uma perspectiva tão original da história do campo musical”, acrescenta Rita.
Além da riqueza textual, a tese é acompanhada de três CDs com uma série de obras. Para Rita, o trabalho torna-se mais rico com as referências feitas ao CD ao longo do texto e em nota de rodapé, pois permite que o leitor faça um passeio musical com ela pela história da música erudita brasileira.