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Estética e política em Gilberto Mendes
Gilberto
Mendes, 89 anos, é um dos compositores da contemporaneidade
mais destacados entre ouvintes de música erudita. O artista,
que começou a estudar música tardiamente no Conservatório
Musical de Santos, sua cidade natal, inseriu-se no campo da
música erudita brasileira como estudante, na década de 1940.
Sua biografia, narrada por ele mesmo em dois livros da Edusp,
foi o ponto de partida da pesquisa de doutorado em antropologia
social realizada pela antropóloga Carla Delgado de Souza,
sob orientação de Rita de Cássia Lahoz Morelli, professora
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Para a pesquisadora, interessada
na obra de Mendes desde a primeira vez que ouviu a música
para coro Beba Coca-Cola, as duas autobiografias
foram fontes preciosas para a realização de um estudo que
permitisse mapear as relações entre arte e mercado e entre
estética e política, determinantes para a música brasileira
de 1940 até 2001, período em que o compositor se estabeleceu
como um dos principais representantes da música erudita contemporânea
no Brasil e no mundo.
Ao relacionar a vida de Gilberto
Mendes com o campo da música erudita, Carla torna públicas
reflexões sobre tensões e ambiguidades no universo musical.
Começando pela década de 1940, momento em que ele decidiu
seguir uma carreira musical, a autora ressalta o predomínio
político da estética nacionalista no campo da música erudita
brasileira. Neste período, muitos artistas pautaram suas produções
no projeto de construção nacional vigente, já que a própria
ideia de uma música erudita originalmente brasileira estava
vinculada a esses projetos.
Num momento em que começava
a ser contestado pelo Movimento Música Viva, o nacionalismo
musical encontrou forças no Partido Comunista Brasileiro,
que coadunado com as políticas para a arte propostas por Andrei
Jdanov (1896-1948), pregava uma estética musical que se apegasse
às referências nacionais e à tradição musical clássico romântica.
Assim, de acordo com Carla,
o nacionalismo conseguiu manter sua posição privilegiada no
campo musical, atraindo adeptos tanto do setor mais conservador,
quanto aqueles vinculados a uma proposta política “de esquerda”
e marxista. “Sendo considerado pelas políticas soviéticas
para a arte como uma técnica musical degenerada, o dodecafonismo,
inovação formal que era uma das pedras de toque do movimento
Música Viva, não foi bem-sucedido em sua missão política”,
acrescenta a autora.
Em meio a esse clima, após
um breve período em que Gilberto Mendes não se vinculou a
nenhum dos “modernismos” vigentes no cenário nacional, o compositor
acabou cedendo aos apelos políticos por uma arte nacionalista.
Mesmo não se identificando inteiramente com a proposta musical
nacionalista, o compositor sabia que se inserir neste campo
seria a melhor postura política a adotar como um músico inovador
na época.
Ao se interessar pela música
de vanguarda europeia, Gilberto Mendes começou a estudar com
Olivier Toni e a frequentar o ambiente musical paulistano
em 1955. Nesse processo, ainda ligado ao Partido Comunista,
Mendes estudou até mesmo as novidades musicais criticadas
como sendo burguesas e degeneradas pela política partidária.
Segundo
Carla, a postura estética de Mendes fica mais clara quando,
adepto das novidades europeias contemporâneas, passa a ter
sua casa como centro de referências para nomes da música brasileira
como Willy Corrêa de Oliveira. “Ele pretendia se informar
sobre o que acontecia na Europa em termos musicais”, explica
Carla. Nas performances de música contemporânea no Teatro
Municipal de São Paulo, Mendes e Corrêa, ao lado de Rogério
Duprat e Damiano Cozzela, se consagraram, finalmente, como
a vanguarda da música erudita brasileira.
Carla lembra que, como sempre,
as vaias vieram a calhar para que os compositores tivessem
o escândalo necessário para figurar na mídia brasileira. Com
a viagem dos artistas para o curso de verão de Darmstadt,
na Alemanha, o Manifesto Música Nova, a criação do Madrigal
Ars Viva e do Festival Música Nova, em Santos, onde Mendes
mora até hoje, o novo momento estético ganhou força e, além
disso, teve o apoio da vanguarda da poesia concreta, formada
pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari.
Os compositores integrantes
do movimento Música Nova, segundo Carla, tiveram uma relação
conflituosa com o mercado musical, o que pode ser vislumbrado
pelas diferentes vinculações de Gilberto Mendes, Willy Corrêa
de Oliveira, Rogério Duprat e Damiano Cozzela a essa esfera.
Enquanto os dois primeiros assumiram uma postura combativa
ao mercado, Duprat e Cozzela se desiludiram com o campo da
música erudita e passaram a investir na produção de jingles,
trilhas e arranjos musicais, dialogando abertamente com o
mercado.
De acordo com a antropóloga,
mesmo se desvinculando da proposta estética de vanguarda,
a partir do final da década de 1970, Gilberto Mendes e Oliveira
continuaram contestando a indústria cultural. A música composta
para fins mercadológicos continuou recebendo interpretação
negativa dos dois compositores.
Após os conflitos dentro
do movimento de vanguarda, Corrêa de Oliveira e Mendes se
aproximaram do universo popular, mas de maneiras distintas,
segundo Carla. “Em um processo de abertura estética e de pertencimento
ao pós-modernismo musical, Oliveira propôs que os compositores
compusessem de modo engajado, auxiliando o proletariado na
luta de classes”, explica Carla.
Já Gilberto Mendes marca sua
entrada no pós-modernismo musical ao retomar a música popular
norte-americana e ao desenvolver uma composição musical mais
livre. A tese mostra que Willy não rompeu a postura de vanguarda
mesmo optando pelo trabalho mais popular. “Por mais que tivesse
adotado uma música popular vermelha, seus pares e suas atitudes
continuavam os mesmos”, enfatiza Carla.
Um aspecto abordado na tese
e que surpreendeu a autora foi o pouco espaço reservado em
suas narrativas biográficas a sua incursão nos ambientes universitários
e na Academia Brasileira de Música. Ela acredita que isso
ocorra porque ela tenha ocorrido fora de época e lugar para
o compositor.
A orientadora da tese, Rita
de Cássia Lahoz Morelli, enfatiza que o trabalho de Carla
é importante por conseguir apresentar uma história do campo
da música erudita no Brasil a partir da experiência de Gilberto
Mendes. “Acredito que analisar a história do campo da perspectiva
de outro sujeito resultaria em uma análise diferente. Carla
não teria conseguido uma perspectiva tão original da história
do campo musical”, acrescenta Rita.
Além da riqueza textual, a tese é acompanhada de três CDs com uma série de obras. Para Rita, o trabalho torna-se mais rico com as referências feitas ao CD ao longo do texto e em nota de rodapé, pois permite que o leitor faça um passeio musical com ela pela história da música erudita brasileira. |
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