Política
Decisão da Justiça sobre estupro envergonha o país
Miriam Leitão, O Globo
É tão asqueroso
que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolva um homem acusado de
estupro de três meninas de 12 anos com o argumento que elas se
“prostituíam” que tentei evitar o assunto.
Nós nos acostumamos a
ver abusos assim pela Justiça de países distantes, como no Afeganistão,
onde uma mulher foi presa pelo delito de ter sido estuprada. Esse ato
nos igualou aos piores países para as mulheres.
Estupro é estupro
senhores ministros e senhoras ministras do STJ. Isso é crime. Sexo de
adultos com menores é crime. Nesse caso, há os dois componentes de uma
perversidade. Quando um tribunal “superior” aceita atos tão inaceitáveis
é o país como um todo que se apequena.
Há momentos em que não reconhecemos o país em que vivemos. Este é um deles.
Não reconheço nesta decisão o país que aprovou a Lei Maria da Penha criminalizando a violência dita “doméstica”.
Não
reconheço aí o país em que governo e ONGs, sociedade e imprensa, se
uniram num pacto não escrito contra a exploração sexual infantil. Não
reconheço o país que aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente e o
preservou contra todas as críticas. Não reconheço o país que instalou,
em inúmeras cidades, delegacias da mulher, nas quais, com a ajuda de
psicólogos e policiais, a vítima tem sido ajudada no doloroso processo
de falar sobre a humilhação vivida.
O argumento de que elas se
prostituíam, e, portanto, o réu pode ser absolvido, é preconceituoso. A
prostituta mesmo adulta não pode ser forçada ao que não aceitou.
Meninas
que se prostituem aos 12 anos comprovam que o país errou, a sociedade
não as protegeu, as escolas não as acolheram, o Estado fracassou. É uma
falha coletiva e não apenas das famílias.
Elas são vítimas por
terem se prostituído, são vítimas porque foram violentadas, são vítimas
porque um tribunal superior deu licença ao criminoso.
O Brasil
está sendo condenado internacionalmente. Na quinta-feira, o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos criticou o
Brasil por estar “revogando” os direitos humanos das menores. Merecemos o
opróbrio.
Não foi uma decisão impensada. Foi a confirmação pela
Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça da decisão tomada pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo, que confirmava a sentença de um juiz.
Era a terceira instância. No voto, a relatora ministra Maria Thereza de
Assis Moura diz que as vítimas não eram “ingênuas, inocentes,
inconscientes a respeito de sexo”.
Diante da repercussão nacional e
internacional do assunto, o STJ, na quinta-feira, soltou uma nota
dizendo que a decisão “não institucionaliza a prostituição infantil”.
Pois parece. Por mais que em jurisdiquês se tente minimizar ou
relativizar a decisão, em algum momento na frente, algum juiz, ou
tribunal, recorrerá a este caso como jurisprudência.
Na nota, o
STJ diz que não aceita as críticas que “avançam para além do debate
esclarecido sobre questões jurídicas, atacam de forma leviana a
instituição, seus membros, sua atuação jurisdicional”.
Que debate
“esclarecido sobre questões jurídicas” poderia justificar tal disparate?
Uma sociedade civilizada que sabe que é responsável pela proteção de
pessoa vulnerável, que reconhece a violência que desde sempre se abate
sobre mulheres, que combate a pedofilia, não pode aceitar uma decisão
como esta.
Perder-se em questiúnculas jurídicas é o caminho mais
rápido para não ver a dimensão da escolha que está sendo tomada em nome
da sociedade brasileira. Eu, brasileira, confesso, me envergonho dela.
Como
hoje é dia do jornalista, quero comentar nesse espaço outra decisão —
com nenhuma relação com o caso acima — que foi tomada em nome da
sociedade. Desta também me envergonho. O Brasil ficou contra um plano de
ação da ONU contra mortes de jornalistas. O projeto era criar um
sistema de vigilância e alerta para os profissionais em risco.
É
óbvio que é preciso proteger os jornalistas que acabam morrendo em
conflitos nos quais estão registrando os fatos. Há outras
circunstâncias, mesmo quando não há um conflito, em que o jornalista
vira vítima por incomodar alguém, ou um grupo, com o que noticia. O
Brasil se juntou à Índia e ao Paquistão para derrotar a aprovação do
plano de ação da ONU.
A notícia foi divulgada na semana passada,
mas tomada numa reunião do dia 22 e 23 de março, em Paris. Como os três
países não deram seu apoio imediato, a implantação do programa de
proteção aos jornalistas ficou para 2013. Quase mil jornalistas foram
mortos nos últimos 20 anos.
O Itamaraty costuma embrulhar decisões
equivocadas em tortuoso diplomatês. Afirma que não discorda do mérito,
mas da forma que foi negociado, ou de alguma vírgula, ou de algum termo.
Nesse
caso, disse que não é contra o plano para proteger jornalistas, apenas
não concordou com certas palavras e expressões usadas no texto.
Que
os diplomatas então tirem a dúvida durante o processo de negociação,
que saibam separar o essencial do supérfluo e que escolham o que parece
natural.
O país no qual comecei a exercer a profissão tinha
censura à imprensa e jornalistas podiam morrer sob tortura por discordar
do regime. Hoje, felizmente, isso é passado. Exatamente pelo avanço das
últimas décadas, o Brasil tem que estar ao lado de países que querem
dar mais — e não menos — proteção aos jornalistas.
Os dois casos
estão em esferas diferentes, mas neles se vê o mesmo erro. Autoridades
se perderam em firulas — jurídicas, num caso; diplomáticas, no outro — e
não viram toda a dimensão da decisão que tomaram em nome dos
brasileiros.