MARTA BELLINI, ME PERMITO COLOCAR SUAS MEDITAÇÕES, SOBRE OS ANTI-QUIXOTES, COMO PRELÚDIO AO MEU TEXTO, NO ESTADO. É TRISTE, MAS É ASSIM... rr
domingo, 8 de abril de 2012
Braziu!
Demóstenes
08 de abril de 2012 | 3h 05
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
A prisão de Hérmias ocorreu na luta pelo controle de Bizâncio. Ele
foi torturado segundo as técnicas habituais. Impressiona, no discurso do
insigne Demóstenes, o silêncio sobre o jeito como o soberano persa
encontrou a "verdade". Como diz Luciano Canfora, o retor grego "tinha
plena consciência dos 'métodos' com que o rei da Pérsia arrancava a
verdade de suas vítimas". Demóstenes sabia ser valente nas bravatas,
pisoteando a desgraça de um adversário fraco (Um Ofício Perigoso,
Editora Perspectiva).
O mais vil em Demóstenes não é a sua bravata. Ele sabia de antemão,
como indica ainda Luciano Canfora, o conteúdo das confissões que seriam
arrancadas de Hérmias, pois tinha espiões entre os inimigos. O pior
fato, calado pelo político na sua arenga aos parlamentares, é que ele
mesmo, o bravo perseguidor de corruptos, era um corrompido: seu nome
estava no livro-caixa do "Grande Rei". O fato foi descoberto quando
Alexandre, sucessor de Felipe, abriu os arquivos persas após sua
vitória. Canfora indica o passo de Plutarco (Vida de Demóstenes, 20),
mas não cita o que diz o filósofo sobre o nosso herói de reputação
ilibada.
Escutemos: "Demóstenes era homem em quem não se poderia muito confiar
no campo das armas, nem era ele muito prevenido contra a corrupção dos
presentes e doações; pois, embora fosse impossível que Felipe o
conquistasse, ele, no entanto, se deixava comprar a preço do ouro e da
prata que vinham de Susa e de Ectabane. Disposto a louvar os belos e
gloriosos feitos de seus velhos ancestrais, ele não seguia ou imitava
seus exemplos". Susa, Ectabane e Babilônia eram cidades nucleares da
Pérsia antiga... Plutarco, mestre da ética ocidental, com poucos
vocábulos diz tudo sobre o duplo lado de um parlamentar oficialmente
impoluto.
Uma prática nefanda, sempre em voga na vida política desde os tempos
gregos, é a técnica do desmascaramento alheio para preservar a própria
face. A máscara, que todo ser humano usa para guardar os próprios
segredos, serve como arma de proteção e ataque. Todo indivíduo maneja a
própria máscara e, "como ator, nela se transforma" (Elias Canetti, O
Personagem e a Máscara). Quem pretende desmascarar os semelhantes deles
retira a defesa e o possível ataque no mundo social. Desmascarar é
cobrir o rosto com uma outra máscara, a de assassino da vida moral
alheia. O pior inimigo de qualquer sociedade é o desmascarador, o
Demóstenes que lateja em todo poderoso.Raros parlamentares, na História ocidental, podem estar seguros de
que o livro-caixa, espelho que revela o seu verdadeiro semblante, jamais
virá à luz diurna. Douto e ardiloso, Bismarck, o chanceler de ferro:
"Ah, se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas... e as leis!"
O desmascarador pode ser movido por vários motivos: o ressentimento, a
inveja, o ódio sectário, a concorrência infeliz, as desilusões
financeiras, amorosas, etc. Não raro, ele é movido por algo que, em
outro tratado de Plutarco, se designa como kakourgia, o erotismo de ver o
mal que se abate sobre os demais. Na língua alemã existe o termo
Schadenfreude, alegria com a tristeza do próximo.
Quando se diz que alguém finge ser honrado como os varões de
Plutarco, não se tem ideia exata do pretendido por ele em suas
biografias de indivíduos ilustres. Cada herói grego tem ali o
contraponto de uma personalidade romana. Tal forma estilística serve
para analisar os personagens em perspectiva, comparando virtudes e
defeitos dos retratados. Não existe grego ou romano absolutamente puro.
Fino observador ético, Plutarco mostra os erros dos generais, políticos,
pensadores, sobretudo o seu excesso de virtude transformado em vício. O
conceito filosófico para designar tal inchaço é hybris, orgulho sem
medida, usado nas tragédias atenienses. Na Ética de Spinoza, o mesmo
conceito recebe um nome exato, existimatio: a ideia de si mesmo que tem o
soberbo, julgando estar acima dos demais. O soberbo imagina ser lícito
desprezar, caçoar, humilhar os fracos e "inferiores". O desmascarador é
atacado pela hybris (na religião cristã, o pai da mentira, Lúcifer, é
soberbo) e se compraz em sua almejada preeminência sobre os semelhantes.
Ainda Spinoza, no Tratado Político, aponta os intelectuais como
ícones da soberba. "Os filósofos concebem as afecções que lutam em nós
como vícios nos quais os homens caem por sua falta. Por tal motivo eles
se habituaram a ridicularizar e deplorar tais afecções e, mesmo, as
detestar se desejam parecer mais imbuídos de moral. Acreditam agir
divinamente, elevados ao cume da sabedoria ao elogiar, entusiastas, uma
natureza humana inexistente, invectivando em discursos a que existe na
realidade". Seguidor de Maquiavel, ele arremata dizendo que os políticos
não possuem tal soberba, embora vivam construindo armadilhas para os
seus iguais e para os governados. Quando um político assume a máscara do
moralista para destruir os seus pares, trata-se de astúcia imprudente.
Pois a pedra colocada por ele na trilha dos outros, com muita
probabilidade, o fará tropeçar. Afinal, todo livro-caixa oculto, cedo ou
tarde, pode ser aberto.