domingo, 8 de janeiro de 2012



 AFBR/Edição 2, Dezembro de 2008. Porto Alegre. Seminário

 Roberto Romano promove reflexões sobre o papel dos juízes na consolidação dos preceitos constitucionais
 

 “Destinos da Constituição. Destinos da Nação”
Roberto Romano da Silva iniciou sua fala sobre os rumos da Constituição no Brasil, apresentando dois lados do poder Judiciário. O primeiro, baseado em um caso de tortura de policiais em um menino pobre de Recife, relatado no artigo “Papel Amassado” (o título faz referência ao modo como ficou a pele do garoto pela utilização de ácido), mostra como o Judiciário, “com independência, inimigo da fraude e da força bruta, pode vestir o manto do Estado”. Lembrando que o Brasil foi novamente condenado pela ONU em virtude da utilização da tortura, Romano frisou que a sentença do juiz Dr. Nivaldo Mulatinho Filho, condenando os torturadores, “tudo faz para que a mancha da tortura suma dos jornais, dos Boletins de Ocorrência e da alma brasileira”. Com este exemplo, Romano quis demonstrar que existem, neste país, incontáveis magistrados que se esmeram no cumprimento da Lei. Por outro lado, citando exemplos brasileiros e da história universal, o professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp, procurou demonstrar também as muitas e ponderáveis razões pelas quais os juízes devam ser obrigados a prestar contas de seus atos perante a sociedade. 

Pedindo desculpas posteriores pelo tom condenatório de sua fala, Romano baseou seu discurso em Platão: “Nenhum juiz ou dirigente deve ser isento de responsabilidade pelo que faz como juiz ou dirigente”. Relatando as omissões históricas de parte do Judiciário nos episódios do Nazismo, Regime Militar, casos de tortura no Brasil, passando pelo recente Patriotic Act nos EUA, Romano alertou para o perigo do que chamou de “controle judicial sem voto”: “Uma tirania sapiente e togada
não é menos do que qualquer outra tirania”, citou, exemplificando a relação entre a lei e a interpretação da Lei, segundo o professor Dominique Rousseau, professor de direito constitucional na
Universidade de Montpellier (França): “De fato, a lei é ao mesmo tempo barulhenta e silente, no sentido de que ela é apenas constituída por palavras, mas é o juiz que dá um sentido preciso, um conteúdo concreto a tais palavras. Assim, quando a lei diz que todos os indivíduos que constituem uma ameaça para a ordem pública devem ser processados, ela não diz o que concretamente é uma ‘ameaça para a ordem pública’, é o juiz que, confrontado por tal ou tal situação, dá um sentido, um conteúdo, uma concretude às referidas palavras. É o juiz que finaliza a lei, que dela faz uma norma.”
Romano, recorrendo novamente a Dominique Rosseau, afirmou que os juízes estão assumindo cada vez mais tarefas não usuais (como foi o caso da Operação Mãos Limpas na Itália e o caso de Baltasar Garzón, na Espanha), e perguntou: o aumento do poder dos juízes não seria uma prova de declínio da Democracia? E ele mesmo alerta sobre a gravidade de achar-se insuficiente a relação entre representantes e representados, deixando exclusivamente ao judiciário esta mediação. Ao denunciar o “juridiquês” de forma contundente, estendendo o exemplo desta praxis semântica a outras classes não menos doutoradas, 

Entre 2004 e 2005, das 479 denúncias judiciais de presos que afirmaram ter sido torturados, apenas cinco resultaram em condenação” como a dos médicos, Romano procura mirar na essência das relações do establishment, a começar pela linguagem, como já o fez Noam Chomsky: “Quando um jurista quer chamar alguém de ignorante, diz que o sujeito é leigo, esquecendo que a tradução de leigo é laós, povo, portanto soberano”. Voltando a Platão, em A República, Romano cita a ironia do filósofo da Grécia antiga ao relatar que certos juízes “roncavam” durante os julgamentos: “Na República existe um retrato irônico do juiz que ronca durante os trabalhos (405c)”. E Romano pergunta: “Seria interessante acompanhar o dia-a-dia dos tribunais para saber quantos juízes brasileiros roncam, seja porque não escutam os reclamos do cidadão comum (o termo consagrado é leigo, como nas organizações religiosas hierocráticas), seja porque não perdem tempo para ler todas as peças dos processos, seja porque já têm, a priori, a sentença antes de ouvir as partes. Se o Legislativo responde, de um modo ou de outro, ao cidadão, se o Executivo é obrigado a fazer o mesmo, os juízes respondem, quando assumidos como prejudiciais apenas aos seus pares, em julgamentos sigilosos cujos frutos são verdadeiros arcanos para o mundo civil”.

Providencial Platão nestas alturas da explanação, uma vez que, pela fala do professor de filosofia política, evidenciou-se que os gregos, há milhares de anos, já discutiam a questão da publicização dos atos e da negativa do voto secreto para aos juízes. E Romano acabou citando também Max Weber, em um dos seus pontos contundentes, quando pergunta a si mesmo o que é um juiz moderno: “O Juiz moderno é similar a uma máquina de refrigerantes onde o processo é inserido com a taxa e vomita o julgamento em razões derivadas do código”. É bom que se diga que mencionou Weber entre dois contextos em que relatava o posicionamento do judiciário Norte Americano perante o Patriotic Act (“Quantos juízes valendo-se dos seus recursos burocráticos votaram no Patriotic Act), e o procedimento do judiciário alemão diante da eugenia praticada no regime nazista (jurisprudencialmente com origem num caso dos EUA, onde um togado afirmou que três gerações de imbecis justificavam o ato) para exemplificar no que se transforma um juiz dentro de “rede burocrática” que justifica a omissão ou o julgamento. Em suma, baseado nos casos de impunidade de tortura no Brasil, exemplificando que das 479 denúncias judiciais entre 2004 e 2005, apenas 5 resultaram em condenação, Romano, catártico, termina parafraseando o apóstolo Paulo (que por sua vez roubou de Platão): a letra vige, mas o espírito desapareceu.
* Cf. Cf. Roberto Romano “Como papel Amassado” in Júlio César França Lima e Lúcia Maria Wanderley Neves : Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo (Rio de Janeiro, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Editora Fiocruz, 2007), pp. 133 ss.
"Uma tirania sapiente e togada não o  é menos do que qualquer outra tirania” Max Weber: ‘O Juiz moderno é similar a uma máquina de refrigerantes onde o processo é inserido com a taxa e vomita o julgamento em razões derivadas do código’”
Roberto Romano
Unicamp
Jurídico a debate "O establishment da eugenia à tortura"

Outro lado

“Dos três poderes, o judiciário é o mais fiscalizado”, afirma juíza
 
 Bem humorada ao ponto de lembrar o efeito devastador do sorriso de uma mulher sobre um homem
citado por Henry Miller em Trópico de Câncer, a juíza federal Carla Evelise Justino Hendges, vice-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) 4ª Região, sem discordar de vários pontos em que, como magistrada, comungava com os anseios de mudança do professor Romano, lembrou que o Judiciário tem se esforçado para cumprir com o seu papel constitucional.
Defendendo os “novos magistrados” das supostas generalizações que o professor Romano teria cometido, fez questão de ressaltar que existem movimentos sólidos de luta por mais democracia no seio do Judiciário, particularmente contra as decisões vinculativas que tiram o poder dos juízes de primeira instância e contra a falta de operacionalização judicial. Evelise também lembrou que a crise do Judiciário, denunciada por Romano, insere-se num contexto de outras crises como as de Estado, as econômicas, as legislativas e de soberania, e que estas outras crises acabaram transferindo ao Judiciário uma demanda excessiva para a qual este talvez não estivesse preparado. E, humildemente, incluiu-se.

Afirmou categoricamente no alto de seu bom humor, que sim, “Há Juízes em Berlim”, e “Há juízes no Brasil”. Com relação à investidura por meio do processo eletivo, aos moldes do Legislativo, questionou o fato de que esta poderia comprometer a neutralidade dos juízes pelo fato dos compromissos “eleitorais” (ideológicos e de grupos) que teriam que ser assumidos para os almejantes aos cargos. Mas também questionou o “ensino acadêmico” de elite e o método cada vez mais exigentes dos concursos públicos para o Judiciário: “Não estaríamos privilegiando camadas mais altas da população ao exigir por meio de concursos cada vez mais competitivos que demandam mais tempo de estudo, do qual as camadas mais humildes não dispõem?”.
Corajosa, afirmou que está sendo exigido do Judiciário, nas matérias constitucionais, “pensar uma coisa velha com uma cabeça nova”. Alertou que o Judiciário incomoda “qualquer forma de poder”, mormente os governantes de plantão e grupos econômicos, porque lhes impõe limites, lembrando a função social dos contratos. Lembrou que as decisões do Judiciário são públicas e este possui cada vez mais instâncias controladoras, como no seu caso, o Conselho Nacional de Justiça e a função correcional, além dos advogados e as partes. Também lembrou os limites do poder Judiciário já que este age “quando provocado” (princípio dispositivo).
Por último lembrou que não gostaria de sofrer a suposta generalização que o professor Romano lhe havia indiretamente imputado, e que “nem tudo é horror no Judiciário”. Terminou como começou, bem humorada, afirmando que era uma grande responsabilidade fazer contraponto ao eminente professor. Fazendo eco a sua fala da situação de incômodo que o Judiciário impõe aos Poderes, Evelise pareceu ter atrás de si, num país sem memória, uma outra mulher, a desembargadora Federal Assusete Magalhães, que manteve, no dia 29 de novembro de 2006, a suspensão da 8ª Rodada de leilão de petróleo, que estava sendo realizado pela ANP - Agência Nacional do Petróleo, em pleno Hotel Copacabana, por meio da qual teríamos vendido todas as nossas descobertas de petróleo pré-sal aos estrangeiros.