domingo, 8 de janeiro de 2012

Ao se falar da crise no judiciário, vale recordar que vozes se ergueram, em tempo certo, para avertir os cidadãos. Modestamente incluo a minha entre elas. Não existe surpresa, pois, quando é indicada a impunidade brasileira como apanágio triste de nossa Justiça.


Texto sobre o papel dos juízes no Estado (e no Brasil).


UNAFISCO PORTO ALEGRE
 
20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Dr. Roberto Romano da Silva/
Prof. Titular de Ética e Filosofia Política
Unicamp. Depto. de Filosofia

Cito uma notícia velha, tão velha que assusta imaginar que ela se repete todo dia como ladainha sinistra, sem que se abalem os travejamento do suposto Estado democrático de direito brasileiro. Leio o despacho da Folha On Line do dia 08/09/ 2008 : “O ministro Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) criticou nesta segunda-feira as declarações do desembargador Luís Soares de Mello –do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo)– e do promotor Marcelo Alexandre de Oliveira, e afirmou que o CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) deve criar uma comissão especial para acompanhar o caso dos três jovens mantidos presos por um crime que, aparentemente, não cometeram. À Folha, o desembargador defendeu a manutenção da prisão dos acusados, enquanto o promotor do Ministério Público Estadual afirmou que todo preso diz ser torturado. (…) As declarações na imprensa do desembargador e do membro do Ministério Público são, no enfoque dos direitos humanos, constrangedoras. O Ministério Público declara que todo o bandido alerta ter sido torturado. Bom, gostaria de perguntar, se todos alegam é prova de que não há tortura?”, questionou o ministro, em São Paulo. Na última quarta-feira (3), Renato Correia de Brito, 24, o seu primo, William César de Brito Silva, 28, e o amigo, Wagner Conceição da Silva, 25, deixaram o CDP (Centro de Detenção Provisória) de Guarulhos, após serem mantidos presos por dois anos em uma cela superlotada sob a acusação de terem violentado e assassinado uma garota de 22 anos. Os três, que dizem só ter assumido o crime após serem torturados por policiais militares e civis, foram soltos por decisão da Justiça cinco dias depois de Leandro Basílio Rodrigues, 19, chamado pelos policiais civis de “maníaco de Guarulhos”, ter admitido o assassinato de Vanessa Batista de Freitas, 22, ex-namorada de Renato. Segundo Vanucchi, uma pesquisa da secretaria dos Direitos Humanos, realizada entre 2004-2005, revela que das 479 denúncias judiciais de presos que afirmam ter sido torturados, apenas cinco resultaram em condenações no país. ‘É um número que estimula a impunidade. É gravíssimo. Para não falar só de coisa ruim, que bom que o Brasil não tem pena de morte, porque, se tivesse, é um caso em que a pessoa já podia ter sido executada, aí aparece depois o verdadeiro homicida confessando’. De acordo com Vanucchi, a lei 9.455, de 1997, estabelece penas elevadas para os crimes de tortura, que podem chegar a até 18 anos de prisão. ‘Infelizmente, o judiciário não se formou, não foi preparado para essa idéia de compreender que as leis aprovadas tem de ser cumpridas. Não pode haver no Brasil lei que pega e lei que não pega’. Segundo o ministro, desde a década de 80, o Brasil conta com programas combate à violência policial, que incluem a inclusão de cursos –na academia de polícia– de direitos humanos. No entanto, o episódio revelaria que as políticas existentes no Brasil ainda são ‘insuficientes’. ‘Por isso, nossa ouvidoria já solicitou todas as peças de inquérito do processo, a ficha corrida destes policiais, vai conversar com o desembargador, com o juiz de primeira instância, vai conversar com o ministério público, e vai repercutir pelo Brasil inteiro como se deve fazer’”.

Temos juízes e promotores que não escutam as queixas dos réus (inocentes por ordem constitucional e pelo direito historicamente ordenado). No caso, os queixosos foram postos fora das grades por um pequeno milagre, a confissão de um outro que, também não podemos saber, pode ter assumido a culpa em condições semelhantes dos inocentados, ou seja, por tortura ou pressão indevida. ( )

Descrevi um outro prisma dos juízes em artigo cujo título é ( ) “Papel Amassado”. Dei semelhante título ao escrito sobre um caso que ocorreu em Recife. Certo jovem, em companhia de outros, tenta pegar mangas em quintal alheio. O menino estava próximo de um prédio velho, usado para serviços de galvanização. A polícia ouve o tiro produzido pela arma de um segurança que, é a regra, se apavorou com os ruídos. Não vendo o autor do disparo, os policiais prendem o jovem, o torturaram e obrigam-no a entrar em tanque cheio de hidróxido de sódio (soda cáustica), o que lhe provoca deformidade permanente, lesões, dores. Os agentes da lei dão-lhe tapas e pontapés. Surgidas as evidências da tortura, a criança foi conduzida aos médicos. E os guardiães da segurança pública dela exigiram que afirmasse ter caído acidentalmente no tonel. Mais tarde a defesa afirma que a palavra da vítima tem “credibilidade zero” porque tratava-se de um “adolescente e imaturo”. Não disse e nem precisava: era pobre, pertencia ao povo, por definição conservadora, sempre criança, basta ter lido Novalis e seus companheiros românticos da contra- revolução. Um torturador, percebendo a qualidade do líquido no qual jogou a criança, constatou que a vítima tinha de fato adoecido. A pele do garoto, afirma o policial, ficou enrugada “como se fosse papel amassado”. (Revista da EMESPE, julho/dez. 2000, páginas 633 e seguintes). O juiz independente, inimigo da fraude e da força bruta que vestem o manto do Estado, condenou quem mereceu, fez cumprir a lei.

O Brasil foi novamente condenado por tortura pela Comissão de Direitos Humanos da ONU. Aquele organismo se preocupa com “a disseminação do uso excessivo da força pelos oficiais da lei, o uso da tortura para obter confissões, a execução extrajudiciária de suspeitos” em nossa terra. O juiz do caso acima, Dr. Nivaldo Mulatinho Filho, digna autoridade que honra a ética e o direito em Pernambuco, tudo faz para que a mancha da tortura suma dos jornais, dos Boletins de Ocorrência e da alma brasileira.

A festa na qual comemoramos os vinte anos da Constituição, deve passar pelo crivo dos fatos, os ditos “assuntos desagradáveis” que irritam os poderes e os assim denominados formadores da opinião pública. Quando temos a prova de que a lei impera num país ? Quando juízes asseguram os direitos, tanto no plano do indivíduo quanto no dos grupos. É naquele crivo que sabemos se a Constituição tem alma ou é letra à espera de sopro vital. No regime democrático a fonte do ânimo é a soberania popular. Se ela não existe no efetivo, o corpo do Estado não passa de uma vã estrutura somática. E conhecemos bem o jogo de palavras de origem grega sobre o puro soma e o sema. Sem o segundo, que só aparece em regime de liberdade e autonomia popular, resta o corpo morto de leis e instituições. 

Sei bem que juízes burocráticos não existem apenas no Brasil. E conheço a história de Israel e a antiga vida grega o bastante para saber que magistrados parciais ou arrogantes não viveram apenas abaixo do Equador. Do Antigo Testamento ao Novo, vemos figuras paradigmáticas da injustiça togada. Não por acaso Jesus usa o símile do juiz iníquo para mostrar a diferença entre a justiça divina e a dos homens. “Havia numa cidade um certo juiz, que nem a Deus temia, nem respeitava o homem. Havia também, naquela mesma cidade, uma certa viúva, que ia ter com ele, dizendo: Faze-me justiça contra o meu adversário. E por algum tempo não quis atendê-la; mas depois disse consigo: Ainda que não temo a Deus, nem respeito os homens,Todavia, como esta viúva me molesta, hei de fazer-lhe justiça, para que enfim não volte, e me importune muito. E disse o Senhor: Ouvi o que diz o injusto juiz. E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele de dia e de noite, ainda que tardio para com eles?” (Lucas, 18, 4- 8) ( ) 

Mas a situação de injustiça não poupa sequer os tribunais populares, na democracia grega. Na Apologia de Sócrates Platão endereça uma crítica velada contra os tribunais democráticos. No célebre julgamento do pensador, os que decidiriam a sua sorte mostraram-se sedentos de condenação, a baderna foi tamanha que só com muita dificuldade o acusado conseguiu se fazer ouvir. A Helié, tribunal onde Sócrates teve sua sorte definida, dispunha de aproximadamente 6 000 jurados, todos saídos da Ecclesia. Eles eram sorteados segundo a gravidade maior ou menor da acusação. Como ponto final, os jurados depositavam uma ficha em urnas, vazias em caso de condenação, cheias quando ocorre o contrário. No diálogo Górgias, Platão ironiza a justiça onde impera a persuasão retórica, “nos dicastérios e demais multidões”. O termo grego, usado por Platão para designar as multidões de juízes é ochlos, massa instável e irriquieta. Outra critica direta encontra-se na imagem do povo, “Grande Criatura” que mostra seu lado mais bruto e estúpido quando julga quem a desagrada. Platão nota a suscetibilidade dos tribunais populares à lisonja e aos apelos emotivos dos retores e o quanto eles são movidos pelos motivos políticos. O mais grave, segundo o filósofo, é o segredo do voto que torna o julgador individual imune às críticas e ataques (Leis, 876 b). ( )

A Constituição vive na alma do povo ou é palavra morta. Para que ela vivifique as pessoas é preciso que sua letra não fique parada e distante, muda e queda como ídolo. E os meios por excelência para que ela deixe os volumes da ciência jurídica e se mostre eficaz, encontram-se nos magistrados. Garantir o direito é uma questão séria. Ora, como diz a Carta VIIa, “quando vemos obras em forma de leis por algum legislador, seja sobre um assunto ou outro (…) devemos saber que para ele o assunto não é de fato sério (…) se por acaso ele julga de fato que se trata de coisas sérias, devemos dizer que não os deuses, mas os mortais, lhe arruinaram completamente o espírito”. ( ) 

Na República existe um retrato irônico do juiz que ronca durante os trabalhos (405c). Seria interessante acompanhar o dia a dia dos tribunais para saber quantos juízes brasileiros roncam, seja porque não escutam os reclamos do cidadão comum (o termo consagrado é leigo, como nas organizações religiosas hierocráticas), seja porque não perdem tempo para ler todas as peças dos processos, seja porque já têm, a priori, a sentença antes de ouvir as partes. Se o Legislativo responde, de um modo ou de outro, ao cidadão, se o Executivo é obrigado a fazer o mesmo, os juízes respondem, quando assumidos como prejudiciais apenas aos seus pares, em julgamentos sigilosos cujos frutos são verdadeiros arcana para o mundo civil. 

Platão adverte contra o excesso de poder concedido às cortes de justiça, populares ou não. Os abusos dos juízes e demais integrantes do mundo estatal, escreve ele, deveriam ser previstos e evitados. Os perigos do abuso eram conhecidos na Atenas de seu tempo e existiam técnicas contra eles. Todos os que exerciam cargos, antes da posse, passavam por um exame acurado (a dokimasía) diante do Conselho e das cortes populares. Após deixar o cargo, eram submetidos a outro exame oficial (eitinai) dos seus atos, sendo sujeitos a multas e outras penalidades se fossem culpados de agir contra as leis. Em cada encontro da Assembléia soberana dos cidadãos, os dirigentes podiam ser suspensos, desde que não conseguissem votos para se manter no cargo. 

Dessas instituições atenienses Platão mantêm duas: o escrutínio e a revisão do mandato. Ele propõe um conselho de Examinadores (eutinoi) que deveria avaliar todos os governantes durante e após o mandato, em intervalos nos quais todos relatariam o que descobriram. Em caso de uso errado do cargo, eles teriam poderes para impor penalidades ou multas. Mas o poder dos examinadores, por sua vez, era responsável porque um dirigente indigitado por eles poderia apelar para a corte dos Juízes Selecionados. Se perdesse, seria obrigado a cumprir as penalidades. Caso contrario, poderia acionar os examinadores, exigindo a sua remoção ou punição. 

O princípio das propostas platônicas é exposto nas seguintes frases das Leis: “No caso em que um magistrado tenha ajuizado algo de modo injusto (adikos, de errado, não reto, injusto) tratando-se dos danos de um litigante, sua penalidade diante da vítima do referido prejuízo deverá ser o dobro do valor reclamado. E todo aquele que desejar, poderá ir às cortes comuns contra os magistrados por causa de decisões injustas, nos casos trazidos diante deles”. (846 b). A lingua usada por Platão nas sentenças citadas (ho boulómenos, “Todo aquele que desejar”) é a mesma usada nos termos legais áticos, quando se descreve uma graphé (ação) que podia ser assumida por pessoas outras, além da que foi diretamente afetada. 

Mas Platão é mais duro ainda. Ele prevê ações contra dirigentes por abuso judicial e administrativo. Todos os juízes, além dos dirigentes menores do Estado, seriam sujeitos a processos por violação da lei. “Nenhum juiz ou dirigente deve ser isento de responsabilidade (anipeutinos) pelo que faz como juiz ou dirigente, exceto aqueles cujo juízo é final”. No entanto, até mesmo no caso de Siracusa Platão propõe um arkhé hipeutinos basiliké, um poder real responsável (Carta Oitava, 355 e). ( ) Platão formaliza um sistema preciso de distribuição do poder judiciário sem paralelo em seu tempo. Ele difere da ordem estritamente democrática, pois não entende as cortes populares como supremas. E também diverge da oligarquia e da aristocracia, pois em sua proposta os dirigentes superiores do Estado são responsáveis e não possuem privilégios como os usufruídos pela Gerusia de Esparta, ou mesmo pelo Areópago ateniense antes de Solon. Ele planeja, portanto, algo que teve relevância estratégica no mundo moderno e determina a estabilidade política com a balança entre as forças opostas, algo fundamental em Montesquieu. É platônica a noção de uma prática de checks and balances essenciais no Estado posterior ao absolutismo. 

A última e importante medida a ser notada nas teses de Platão é a publicidade dos atos : “A votação deve ser pública. Durante o julgamento os juízes devem sentar-se uns perto dos outros em ordem de idade e diretamente diante do acusado e do acusador; e todos os cidadãos que possuam tempo, devem seguir os trabalhos” (Leis, 855 d). O filósofo, diz Glenn Morrow, procura evitar algo como o sistema secreto da Star Chamber, algo usado pelos soberanos ingleses para impor despoticamente o seu poder contra as leis estabelecidas e as práticas judiciarias comuns. 

Volto ao nosso fato comemorativo. Os senhores analisam a nossa Constituição, como ela nasceu e quais os seus obstáculos reais. Peço então o máximo cuidado com o juiz, que serve como intermediário entre a lei e os cidadãos, sujeitos legítimos do mesmo ordenamento legal. Escutemos uma autoridade no campo jurídico internacional, Michael Stolleis, em considerações estratégicas sobre o múnus do magistrado. 

Vimos o que apresentou Platão como base para o controle dos juízes. Depois da Grécia, diz Stolleis, em vez do povo diretamente soberano, o juiz “julga em nome de um outro e maior poder. Na tardia Idade Média e nos inícios dos tempos modernos, do século 15 ao 18, Deus e o ius divinum são indicadas como autoridades (…) Mais os Estados se tornam um estado de legislação, mais Deus e natureza são substituídos pelo texto da lei escrita e impressa, a intenção do legislador. Desde que Jean Bodin explicou a soberania como o poder do seu possuidor de dar ordens a cada indivíduo e para todos, legislar, o estado moderno tornou-se um estado de legislação. No próximo século Thomas Hobbes intensificou a tese, proporcionando a base teórica da aliança de todos os indivíduos e fornecendo todo poder ao monarca”. 

Com as revoluções modernas, dos Levellers ingleses no século 17 aos democratas franceses, se estabelece a nação uniforme, não três corpos sociais como a nobreza, o clero e o terceiro estado. O governante pela graça divina é substituído pela soberania do povo. As leges fundamentales são trocadas pela constituição. Esta é o mais autorizado documento das nações, o mais santo, que prende os reis e os representantes. Mas tal mudança exigiu muito sangue e lutas por parte dos democratas que fugiam da Justiça monárquica absolutista. ( )

E o juiz? Este, adianta Stolleis, é unido à lei. Mas agora, o que é a lei? Não é mais a ordem de um soberano onipotente, como em Bodin, mas um compromisso entre o parlamento e o governo. O primeiro discute e adota resoluções, mas a aplicação da lei depende do governo. No século 19 os jurados assumem nova figura. Eles simbolizam a transferência da justiça do poder monárquico para as mãos do povo. Sua função é garantir que os juristas não sigam além do sentido popular de justiça. Ao mesmo tempo tal simbologia remete à ordem democrática moderna, mas também à uma reversão romântica para a Idade Média, que supõe o natural, o “diretamente derivado do caráter nacional”. 

O novo juiz torna-se um representante do terceiro poder, ele se liga à lei feita pelo povo ou pelos seus representantes. Diante dele, age o promotor que representa o Estado e os defensores das partes. O notável é que ele agora age em público, em prédios acessíveis à audiência. Mais importante, as sentenças, incluindo os argumentos usados, recebem críticas acadêmicas ou da opinião pública. O juiz é muito diferente do que operava no Antigo regime. O Estado constitucional mudou o seu perfil. Mas o Estado o usa, não raro, como instrumento de domesticação. No século das ditaduras, o século 20, o juiz independente torna-se desnecessário, o que serve como domesticador torna-se essencial. Esta é a tragédia do judiciário. 

Passada pelo menos em alguns países hegemônicos a era das ditaduras, vem o período da suposta globalização, modo sofisticado de negar a soberania dos Estados mais fracos, em favor dos fortes. Chegamos aos tempos atuais. Como diz Stolleis, um brinquedo infantil produzido na China, importado para qualquer país e revendido, contem integrantes perigosos. Qual a situação em termos legais se um dano ainda não foi detectado? Ou a manteiga dinamarquesa subsidiada pela Bélgica e conduzida para a Argélia via Bavária e Itália para ser reimportada na Europa como óleo? Trata-se de fraude, mas sob qual lei? 

Isso tudo significa que o juiz de hoje é um prático especializado e ao mesmo tempo um generalista que deve tratar com enormes incertezas. O dogmatismo de quem se julga neutro aplicador das leis e proclama, após sentenças notoriamente eivadas de ideologia conservadora, nunca “fazer juízo de valor”, tende a desaparecer, mas por enquanto, ele triunfa em países que negam os princípios da publicidade e da prestação de contas ao povo. Nos tribunais norte-americanos, quantos juízes recusaram aplicar, com espírito burocrático, os mandamentos da Lei Patriótica? No mundo e no Brasil, portanto, muitos tribunais ainda se movem no universo descrito por Max Weber no início do século 20. Os processos contra notórios torturadores do período ditatorial, no Brasil, mostram bem a gravidade do assunto. A lei de Anistia tende a se transformar em salvo conduto dos que usaram a força física do Estado da maneira mais torpe. E o que fazem os juízes? 

Cito Weber : “a burocratização do Estado e do direito reconhece em geral a definitiva possibilidade de rigorosa distinção conceitual entre uma ordem jurídica ´objetiva´ e direitos ´subjetivos´ dos indivíduos garantidos por ele, bem como a separação entre o direito ´público´, ligado às relações entre autoridades e ´súditos´, e o direito ´privado´ que regula as relações dos indivíduos dominados entre sí. A burocratização pressupõe a separação abstrata entre o ´Estado´, enquanto sustento abstrato dos direitos de mando e criador das ´normas jurídicas´ e todas as ´atribuições´ pessoais dos indivíduos”. ( ) Nas formas burocráticas oficiais existe a perpetuidade do cargo. O que não significa a posse do mesmo cargo. Quando no campo judicial garantias são dadas aos juízes e demais funcionários da justiça, contra destituições ou remoção arbitrárias, tais medidas têm por finalidade principal oferecer ‘segurança’ com vistas ao cumprimento rigorosamente objetivo e isento de toda consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo correspondente. A proporção da ´independência´ outorgada por aquela garantia jurídica na burocracia não causa o incremento da estima ´convencional´— estamental— do funcionário assim garantido (…) O funcionário administrativo, em todos os casos, pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ´independente´”. A independência dos juízes, na hierarquia burocrática, resulta na despersonalização de sua individualidade. 

Os sistemas burocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operam segundo as particularidades subjetivas dos integrantes, das partes à defesa, desta à promotoria, chegando ao juiz. “O juiz moderno”, adianta Weber, “é similar à máquina que distribui refrigerantes, na qual os processos são inseridos com a taxa e vomita o julgamento com razões mecanicamente derivadas do Código”. 

A independência funcional garante, paradoxalmente, a mecanização do juiz. Este não mais depende de um soberano definido, indivíduo ou coletividade (rei, papa, aristocracia ou povo), pois a independência diante de pessoas de carne e osso é paga pela inserção na máquina de controle geral. A independência dos juízes exige cautela. Quando se trata de diminuir o autoritarismo de governantes e legisladores aquele ideal pode ser visto como incremento de liberdade para os magistrados em proveito da ordem coletiva. Mas, se ao despedir a dependência anterior o juiz é inserido numa rede burocrática impessoal que o controla externa e internamente, sua pretensa independência pode retomar pesadelos políticos. 

Cito o caso indicado por Eric Voegelin, lúcido analista do nazismo. Trata-se do julgamento de Hans Hefelman. O réu afirmou que “todos os procuradores de justiça chefes e presidentes das Cortes de Apelação tinham declarado seu apoio ao programa de eutanásia. O réu, acusado de cumplicidade na morte de 73 mil supostos doentes mentais, disse que o secretário de Estado do Ministério da Justiça, doutor Franz Schlegelberger (….) fez uma preleção na conferência em que declarou que a ação ‘T 4’ era legal. Nenhum dos mais de cem membros mais antigos, entre os quais estava o presidente da Suprema Corte, Erwin Bumke, apresentou objeções”. Detalhe: o fundamento “legal” dos atos criminosos era um decreto pessoal de Hitler, que não deveria ser divulgado e permanecer secreto. Todos nós, brasileiros, recordamos o que significa decreto secreto. E nos perguntamos, na época, quanto juízes e demais operadores do direito se levantaram contra eles. Mas sigamos Voegelin: “Temos documentos daquele encontro. É sabido que esses advogados reunidos, entre eles o presidente da Suprema Corte, Bumke, foram informados de que a campanha fora planejada, de fato, sem nenhuma base legal, meramente com fundamento num decreto do Füher que deveria ser mantido secreto. Os advogados foram informados de que a campanha deveria ser um segredo do Reich. Isso significa que todos os mais altos juízes alemães sabiam que todo esse empreendimento não tinha nenhuma base legal e não disseram nada. Testemunhas dessa cena descrevem como todos aqueles presidentes da Corte de Apelação olharam para Bumke –o que dirá Bumke?– e Bumke nada disse! E então também eles nada disseram – e toda a coisa começou a mover-se. Isto é o que parece na prática”. ( )

Mas ao se falar em eutanásia, cujo fundamento é a eugenia, não podemos esquecer um outro ato de juiz, também de Suprema Corte, mas agora nos EUA. Trata-se do processo de Carrie Buck, dita débil mental. Sua mãe, Emma, também fora declarada débil e encarcerada pela vida toda na Colônia para Epilépticos e Deficientes Mentais da Virgínia. Os legisladores daquele Estado hesitavam em proclamar a lei de eugenia tendo em vista a esterilização. Depois de várias leis terem sido vetadas por tribunais, com base na Constituição, o processo foi para a Suprema Corte e teve como relator o juiz Oliver Wendell Holmes Júnior. Holmes era um defensor da livre expressão. É conhecido o seu dito: “Se existe qualquer princípio da Constituição que imperativamente exige fidelidade, mais que qualquer outro, é o da liberdade de expressão –não liberdade de expressão para aqueles que concordam conosco, mas liberdade de expressão para aqueles que achamos que odiamos”. De fato, comovente princípio liberal. Ele foi tido como o mais respeitado homem da lei norte- americana.

E foi tal juiz que levou adiante o processo Buck versus Bell, decidido em 1927. Leitor de Spencer e dos chamados darwinistas sociais, Holmes proclamou coisas expressivas na coletânea de seus escritos, publicada com o título The Common Law, como por exemplo dizer que a idéia de direitos herdados é intrinsecamente absurda (trata-se da Lecture IX, contra III, “void and voidable). Em 1920, antes do processo Buck versus Bell, ele escreve ao jurista inglês Frederick Pollak : “O homem, hoje, é um animal predatório. Creio que a sacralização da vida humana é uma idéia local, sem nenhuma validade fora de sua jurisdição. Acredito que a força, mitigada ao máximo possível pelas boas maneiras, é a ultima ratio e, entre os dois grupos que querem fazer tipos inconsistentes de mundo, não vejo outra solução além do uso da força”. 

Sem me alongar demasiado sobre o caso, que deu forte impulso aos procedimentos eugenistas nos EUA e no mundo, inclusive e sobretudo na Alemanha de Hitler, cito a parte essencial da sentença pronunciada pelo grande liberal e juiz: “ É melhor para todos no mundo que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou deixar que morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são claramente incapazes de continuar a espécie. O princípio que sustenta a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes”. Carrie Buck foi esterilizada em 19 de outubro de 1920. ( ) 

Poderíamos recitar infinitos casos brasileiros que mostram a cumplicidade de juízes com sistemas injustos ou mesmo iníquos de poder. As duas ditaduras que desgraçaram a nação no século 20 tiveram sustento em propaganda, força física, auxílio de muitos magistrados, causídicos, constitucionalistas. Passadas as formas de imposição ditatorial, com o retorno ao mando civil e advinda a Constituição cidadã, milhares de pessoas no Brasil passam por torturas, escravidão, sequestros de seus bens por planos econômicos que são verdadeiros golpes de Estado brancos, e não encontram abrigo em togas que deveriam servir para protegê-las. Vemos, por outro lado, que movimentos sociais recebem apodos infamantes de instituições que deveriam investigar sine ira et studio, mas que chegam às propostas de criminalizar movimentos sociais, sem julgamento. 

Quando injustiças tremendas são cometidas, é fácil acusar governos, parlamentos, exércitos, polícias. Mas é preciso ser mais prudente e verificar a culpa de todos os envolvidos, das camadas populares aos juízes. É o que afirma Stolleis, quase no final de seu pungente livro sobre o ensino jurídico na Alemanha, antes e depois do nazismo. ( ) A história do Holocausto está germinada à narrativa do ensino e pesquisa sobre a constituição, que o reflete em todos os aspectos. “Estado, ‘administração’, ‘sistema judiciário’ e o exército, estiveram envolvidos como atores diretos, ajudantes, ou como testemunhas silenciosas que apoiavam ou apenas se resignaram”. Da lista não escapam “os inumeráveis participantes que garantiram as estruturas e permitiram que os aparelhos permanecessem operando, como por exemplo os engenheiros do Reichsbahn , os oficiais da Wehrmacht, os que sabiam de tudo nos ministérios, os juízes, os promotores, e os acadêmicos também, comentadores que traduziram a nova injustiça para os velhos princípios dogmáticos e os tornou utilizáveis numa forma percebida como ‘normal’ (…) O que eles fizeram pode não ter sido criminoso no sentido legal, mas sem suas inumeráveis contribuições para a divisão do trabalho, o crime do Holocausto não teria sido possível”. 

Quando o STF decidiu em favor do governo brasileiro e contra os aposentados, escrevi um artigo que o Unafisco me deu a honra de repercutir, em louvor de Evandro Lins e Silva, juiz expulso pela ditadura quando exercia seu ofício no STF. Cito o final do texto : “Evandro Lins e Silva nunca faltou com a sua consciência e jamais desobedeceu o maior imperativo categórico, o definido pelo dever. Advogado, entendeu perfeitamente todas as faces da justiça, da promotoria ao juiz. Político, nunca acolheu enquanto juiz os desejos e planos dos ocupantes de cargos executivos. Suas sentenças trouxeram o direito das nuvens oligárquicas ao povo sofrido das ruas e aos profissionais da honestidade. Jornalista, jamais vendeu sua pena em favor de interesses alheios aos direitos públicos.

Evandro sofreu violências dos poderosos mas nunca abandonou a confiança do seu povo. Fico feliz por não ter ele visto a decisão do STF em detrimento dos direitos adquiridos pelos aposentados. Tenho certeza de que, junto ao único juiz competente, ele agora percebe o sentido inteiro de sua vida: alimentar com a chama da justiça a esperança das pessoas que tiveram seu anelo de respeito pisado por um presidente, esquecido do que prometeu à sua gente, abandonada pelos parlamentos, finalmente destituída pelos que deveriam zelar pela retribuição de quem pagou pelos seus ‘benefícios’ e agora se pergunta onde reside a justiça.

Todos os cidadãos devem começar uma luta urgente: exigir que o STF seja ocupado por magistrados de carreira, sem nenhuma indicação da presidência da República, cumprindo a plena autonomia entre os três poderes. Depois do julgamento histórico do STF, as causas dessa batalha são mais do que óbvias. Evandro Lins e Silva estará presente na memória da cidadania, que o evocará sempre com extrema gratidão. O mesmo não é possível dizer de várias outras togas, para nossa tristeza”.

Juízes, um novo poder?

Para finalizar, cito um artigo que merece atenta solicitude, o escrito po Dominique Rousseau, professor de direito constitucional na Universidade de Montpellier (França), que analisa o papel do juiz nas sociedades modernas. Entre as coisas ditas por ele e que precisam ser discutidas, o professor aponta para a presença dos magistrados em tarefas que antes não eram usuais, como é o caso da Operação Mãos Limpas, ou o que faz Garzon na Espanha. O fato possui origens institucionais. Assistimos, diz Rousseau, o declínio de instituições que até agora exerciam um papel de contra poder, de controle, de sanção, tanto no domínio político quanto no econômico e civil. Outras explicações são de ordem sócio política, como por exemplo o fim dos “grandes relatos” sobre a sociedade, com a queda do muro de Berlim, que exige hoje de todos uma acurada responsabilidade individual.

Seria o poder novo dos juízes a prova de um declínio da democracia? Não necessariamente. A filosofia política moderna foi edificada, argumenta o professor, sobre um buraco negro relativo ao terceiro poder. O próprio Montesquieu, que teoriza a separação dos poderes, escreve a propósito do judiciário que ‘a potência do juiz é nula’, pois o direito é a boca da lei. O aumento do poder dos juízes no mundo mostra que tal idéia é falsa. De fato, a lei é ao mesmo tempo barulhenta e silente, no sentido de que ela é apenas constituída por palavras, mas é o juiz que dá um sentido preciso, um conteúdo concreto a tais palavras. Assim, quando a lei diz que todos os indivíduos que constituem uma ameaça para a ordem pública deve ser processado, ela não diz o que concretamente é uma ‘ameaça para a ordem pública’, é o juiz que, confrontado por tal ou tal situação, dá um sentido, um conteúdo, uma concretude às referidas palavras. É o juiz que finaliza a lei, que dela faz uma norma. 

O aumento do poder dos juízes coloca interrogações sobre o paradigma democrático, cujo fundamento é o voto, finaliza o professor Rousseau. Pelo voto os eleitores exercem sua vontade que coincide com a dos eleitos. A legitimidade democrática exige o circulo entre as duas vontades, a do eleitor e a do eleito. Já o poder dos juízes é de inspeção, controle, mais do que os poderes cujo fundamento é o voto. A fusão suposta entre representados e representantes é negada, ou tida como insuficiente. Para que exista democracia é preciso, doravante, que ocorra um direito de controle e o exercício desse direito, entregue ao juiz. ( ).

O que Dominique Rousseau descreve em poucas palavras pode ser uma saudável interferência na ordem pública, pelos magistrados. Mas quando ele relativiza como o faz a democracia eletiva em favor do controle judicial da coisa pública, sem que exista passagem pelo voto, é possível temer pelo futuro. Uma tirania, apenas porque é sapiente e togada, não é menos letífera do que as demais. É importante que os juízes deixem uma posição distante face aos problemas da república. Eles integram a essência mesma do Estado e não lhes cabe o alheamento. Mas disto não se pode inferir, sem muitas controvérsias e análises, que eles tem legitimidade para se imiscuir, sem votos e sem prestar contas ao povo, do que é entregue ao múnus dos demais poderes. Tal situação seria típica das ilegitimidades ex defectu tituli. E tal status se agravaria, ademais, com o exercício ilegítimo. 

Com os exemplos do passado e do que assistimos no Brasil –basta recordar a notícia com que iniciei estas considerações– temos muitas e ponderáveis razões para exigir que o poder dos juízes receba fortes contrapesos dos demais poderes e, sobretudo, que eles sejam obrigados a prestar contas ao povo soberano. Aquele mesmo que nos textos jurídicos e nos discursos judiciários é dito “leigo” Ainda vivemos, infelizmente, no mundo hierarquizado de Dionisio Areopagita. Nele, o cosmos natural e político vai dos seres mais próximos do divino, anjos e arcanjos e deles aos sacerdotes. Abaixo dos quais vive o laós, composto pelos mortais comuns que só merecem receber lições e governo. Esta escala sagrada foi destruída por Lutero e pelas Revoluções inglêsa (século 17), norte-americana e francesa. Parece que em muitos setores do Estado, em especial no Judiciário, ainda estamos muito longe da Reforma e da moderna democracia.