Texto sobre o papel dos juízes no Estado (e no Brasil).
UNAFISCO PORTO ALEGRE
20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO
Dr. Roberto Romano da Silva/
Prof. Titular de Ética e Filosofia Política
Unicamp. Depto. de Filosofia
Prof. Titular de Ética e Filosofia Política
Unicamp. Depto. de Filosofia
Cito uma notícia velha, tão velha que assusta imaginar que ela se
repete todo dia como ladainha sinistra, sem que se abalem os
travejamento do suposto Estado democrático de direito brasileiro. Leio o
despacho da Folha On Line do dia 08/09/ 2008 : “O ministro Paulo
Vanucchi (Direitos Humanos) criticou nesta segunda-feira as declarações
do desembargador Luís Soares de Mello –do TJ-SP (Tribunal de Justiça de
São Paulo)– e do promotor Marcelo Alexandre de Oliveira, e afirmou que o
CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) deve criar uma
comissão especial para acompanhar o caso dos três jovens mantidos
presos por um crime que, aparentemente, não cometeram. À Folha, o
desembargador defendeu a manutenção da prisão dos acusados, enquanto o
promotor do Ministério Público Estadual afirmou que todo preso diz ser
torturado. (…) As declarações na imprensa do desembargador e do membro
do Ministério Público são, no enfoque dos direitos humanos,
constrangedoras. O Ministério Público declara que todo o bandido alerta
ter sido torturado. Bom, gostaria de perguntar, se todos alegam é prova
de que não há tortura?”, questionou o ministro, em São Paulo. Na última
quarta-feira (3), Renato Correia de Brito, 24, o seu primo, William
César de Brito Silva, 28, e o amigo, Wagner Conceição da Silva, 25,
deixaram o CDP (Centro de Detenção Provisória) de Guarulhos, após serem
mantidos presos por dois anos em uma cela superlotada sob a acusação de
terem violentado e assassinado uma garota de 22 anos. Os três, que dizem
só ter assumido o crime após serem torturados por policiais militares e
civis, foram soltos por decisão da Justiça cinco dias depois de Leandro
Basílio Rodrigues, 19, chamado pelos policiais civis de “maníaco de
Guarulhos”, ter admitido o assassinato de Vanessa Batista de Freitas,
22, ex-namorada de Renato. Segundo Vanucchi, uma pesquisa da secretaria
dos Direitos Humanos, realizada entre 2004-2005, revela que das 479
denúncias judiciais de presos que afirmam ter sido torturados, apenas
cinco resultaram em condenações no país. ‘É um número que estimula a
impunidade. É gravíssimo. Para não falar só de coisa ruim, que bom que o
Brasil não tem pena de morte, porque, se tivesse, é um caso em que a
pessoa já podia ter sido executada, aí aparece depois o verdadeiro
homicida confessando’. De acordo com Vanucchi, a lei 9.455, de 1997,
estabelece penas elevadas para os crimes de tortura, que podem chegar a
até 18 anos de prisão. ‘Infelizmente, o judiciário não se formou, não
foi preparado para essa idéia de compreender que as leis aprovadas tem
de ser cumpridas. Não pode haver no Brasil lei que pega e lei que não
pega’. Segundo o ministro, desde a década de 80, o Brasil conta com
programas combate à violência policial, que incluem a inclusão de cursos
–na academia de polícia– de direitos humanos. No entanto, o episódio
revelaria que as políticas existentes no Brasil ainda são
‘insuficientes’. ‘Por isso, nossa ouvidoria já solicitou todas as peças
de inquérito do processo, a ficha corrida destes policiais, vai
conversar com o desembargador, com o juiz de primeira instância, vai
conversar com o ministério público, e vai repercutir pelo Brasil inteiro
como se deve fazer’”.
Temos juízes e promotores que não escutam as queixas dos réus
(inocentes por ordem constitucional e pelo direito historicamente
ordenado). No caso, os queixosos foram postos fora das grades por um
pequeno milagre, a confissão de um outro que, também não podemos saber,
pode ter assumido a culpa em condições semelhantes dos inocentados, ou
seja, por tortura ou pressão indevida. ( )
Descrevi um outro prisma dos juízes em artigo cujo título é ( )
“Papel Amassado”. Dei semelhante título ao escrito sobre um caso que
ocorreu em Recife. Certo jovem, em companhia de outros, tenta pegar
mangas em quintal alheio. O menino estava próximo de um prédio velho,
usado para serviços de galvanização. A polícia ouve o tiro produzido
pela arma de um segurança que, é a regra, se apavorou com os ruídos. Não
vendo o autor do disparo, os policiais prendem o jovem, o torturaram e
obrigam-no a entrar em tanque cheio de hidróxido de sódio (soda
cáustica), o que lhe provoca deformidade permanente, lesões, dores. Os
agentes da lei dão-lhe tapas e pontapés. Surgidas as evidências da
tortura, a criança foi conduzida aos médicos. E os guardiães da
segurança pública dela exigiram que afirmasse ter caído acidentalmente
no tonel. Mais tarde a defesa afirma que a palavra da vítima tem
“credibilidade zero” porque tratava-se de um “adolescente e imaturo”.
Não disse e nem precisava: era pobre, pertencia ao povo, por definição
conservadora, sempre criança, basta ter lido Novalis e seus companheiros
românticos da contra- revolução. Um torturador, percebendo a qualidade do líquido no qual jogou a criança, constatou que
a vítima tinha de fato adoecido. A pele do garoto, afirma o policial,
ficou enrugada “como se fosse papel amassado”. (Revista da EMESPE,
julho/dez. 2000, páginas 633 e seguintes). O juiz independente, inimigo
da fraude e da força bruta que vestem o manto do Estado, condenou quem
mereceu, fez cumprir a lei.
O Brasil foi novamente condenado por tortura pela Comissão de
Direitos Humanos da ONU. Aquele organismo se preocupa com “a
disseminação do uso excessivo da força pelos oficiais da lei, o uso da
tortura para obter confissões, a execução extrajudiciária de suspeitos”
em nossa terra. O juiz do caso acima, Dr. Nivaldo Mulatinho Filho, digna
autoridade que honra a ética e o direito em Pernambuco, tudo faz para
que a mancha da tortura suma dos jornais, dos Boletins de Ocorrência e
da alma brasileira.
A festa na qual comemoramos os vinte anos da Constituição, deve
passar pelo crivo dos fatos, os ditos “assuntos desagradáveis” que
irritam os poderes e os assim denominados formadores da opinião pública.
Quando temos a prova de que a lei impera num país ? Quando juízes
asseguram os direitos, tanto no plano do indivíduo quanto no dos grupos.
É naquele crivo que sabemos se a Constituição tem alma ou é letra à
espera de sopro vital. No regime democrático a fonte do ânimo é a
soberania popular. Se ela não existe no efetivo, o corpo do Estado não
passa de uma vã estrutura somática. E conhecemos bem o jogo de palavras
de origem grega sobre o puro soma e o sema. Sem o segundo, que só
aparece em regime de liberdade e autonomia popular, resta o corpo morto
de leis e instituições.
Sei bem que juízes burocráticos não existem apenas no Brasil. E
conheço a história de Israel e a antiga vida grega o bastante para saber
que magistrados parciais ou arrogantes não viveram apenas abaixo do
Equador. Do Antigo Testamento ao Novo, vemos figuras paradigmáticas da
injustiça togada. Não por acaso Jesus usa o símile do juiz iníquo para
mostrar a diferença entre a justiça divina e a dos homens. “Havia numa
cidade um certo juiz, que nem a Deus temia, nem respeitava o homem.
Havia também, naquela mesma cidade, uma certa viúva, que ia ter com ele,
dizendo: Faze-me justiça contra o meu adversário. E por algum tempo não
quis atendê-la; mas depois disse consigo: Ainda que não temo a Deus,
nem respeito os homens,Todavia, como esta viúva me molesta, hei de
fazer-lhe justiça, para que enfim não volte, e me importune muito. E
disse o Senhor: Ouvi o que diz o injusto juiz. E Deus não fará justiça
aos seus escolhidos, que clamam a ele de dia e de noite, ainda que
tardio para com eles?” (Lucas, 18, 4- 8) ( )
Mas a situação de injustiça não poupa sequer os tribunais populares,
na democracia grega. Na Apologia de Sócrates Platão endereça uma
crítica velada contra os tribunais democráticos. No célebre julgamento
do pensador, os que decidiriam a sua sorte mostraram-se sedentos de
condenação, a baderna foi tamanha que só com muita dificuldade o acusado
conseguiu se fazer ouvir. A Helié, tribunal onde Sócrates teve sua
sorte definida, dispunha de aproximadamente 6 000 jurados, todos saídos
da Ecclesia. Eles eram sorteados segundo a gravidade maior ou menor da
acusação. Como ponto final, os jurados depositavam uma ficha em urnas,
vazias em caso de condenação, cheias quando ocorre o contrário. No
diálogo Górgias, Platão ironiza a justiça onde impera a persuasão
retórica, “nos dicastérios e demais multidões”. O termo grego, usado por
Platão para designar as multidões de juízes é ochlos, massa instável e
irriquieta. Outra critica direta encontra-se na imagem do povo, “Grande
Criatura” que mostra seu lado mais bruto e estúpido quando julga quem a
desagrada. Platão nota a suscetibilidade dos tribunais populares à
lisonja e aos apelos emotivos dos retores e o quanto eles são movidos
pelos motivos políticos. O mais grave, segundo o filósofo, é o segredo
do voto que torna o julgador individual imune às críticas e ataques
(Leis, 876 b). ( )
A Constituição vive na alma do povo ou é palavra morta. Para que ela
vivifique as pessoas é preciso que sua letra não fique parada e
distante, muda e queda como ídolo. E os meios por excelência para que
ela deixe os volumes da ciência jurídica e se mostre eficaz,
encontram-se nos magistrados. Garantir o direito é uma questão séria.
Ora, como diz a Carta VIIa, “quando vemos obras em forma de leis por
algum legislador, seja sobre um assunto ou outro (…) devemos saber que
para ele o assunto não é de fato sério (…) se por acaso ele julga de
fato que se trata de coisas sérias, devemos dizer que não os deuses, mas
os mortais, lhe arruinaram completamente o espírito”. ( )
Na República existe um retrato irônico do juiz que ronca durante os
trabalhos (405c). Seria interessante acompanhar o dia a dia dos
tribunais para saber quantos juízes brasileiros roncam, seja porque não
escutam os reclamos do cidadão comum (o termo consagrado é leigo, como
nas organizações religiosas hierocráticas), seja porque não perdem tempo
para ler todas as peças dos processos, seja porque já têm, a priori, a
sentença antes de ouvir as partes. Se o Legislativo responde, de um modo
ou de outro, ao cidadão, se o Executivo é obrigado a fazer o mesmo, os
juízes respondem, quando assumidos como prejudiciais apenas aos seus
pares, em julgamentos sigilosos cujos frutos são verdadeiros arcana para
o mundo civil.
Platão adverte contra o excesso de poder concedido às cortes de
justiça, populares ou não. Os abusos dos juízes e demais integrantes do
mundo estatal, escreve ele, deveriam ser previstos e evitados. Os
perigos do abuso eram conhecidos na Atenas de seu tempo e existiam
técnicas contra eles. Todos os que exerciam cargos, antes da posse,
passavam por um exame acurado (a dokimasía) diante do Conselho e das
cortes populares. Após deixar o cargo, eram submetidos a outro exame
oficial (eitinai) dos seus atos, sendo sujeitos a multas e outras
penalidades se fossem culpados de agir contra as leis. Em cada encontro
da Assembléia soberana dos cidadãos, os dirigentes podiam ser
suspensos, desde que não conseguissem votos para se manter no cargo.
Dessas instituições atenienses Platão mantêm duas: o escrutínio e a
revisão do mandato. Ele propõe um conselho de Examinadores (eutinoi) que
deveria avaliar todos os governantes durante e após o mandato, em
intervalos nos quais todos relatariam o que descobriram. Em caso de uso
errado do cargo, eles teriam poderes para impor penalidades ou multas.
Mas o poder dos examinadores, por sua vez, era responsável porque um
dirigente indigitado por eles poderia apelar para a corte dos Juízes
Selecionados. Se perdesse, seria obrigado a cumprir as penalidades. Caso
contrario, poderia acionar os examinadores, exigindo a sua remoção ou
punição.
O princípio das propostas platônicas é exposto nas seguintes frases
das Leis: “No caso em que um magistrado tenha ajuizado algo de modo
injusto (adikos, de errado, não reto, injusto) tratando-se dos danos de
um litigante, sua penalidade diante da vítima do referido prejuízo
deverá ser o dobro do valor reclamado. E todo aquele que desejar, poderá
ir às cortes comuns contra os magistrados por causa de decisões
injustas, nos casos trazidos diante deles”. (846 b). A lingua usada por
Platão nas sentenças citadas (ho boulómenos, “Todo aquele que desejar”) é
a mesma usada nos termos legais áticos, quando se descreve uma graphé
(ação) que podia ser assumida por pessoas outras, além da que foi
diretamente afetada.
Mas Platão é mais duro ainda. Ele prevê ações contra dirigentes por
abuso judicial e administrativo. Todos os juízes, além dos dirigentes
menores do Estado, seriam sujeitos a processos por violação da lei.
“Nenhum juiz ou dirigente deve ser isento de responsabilidade
(anipeutinos) pelo que faz como juiz ou dirigente, exceto aqueles cujo
juízo é final”. No entanto, até mesmo no caso de Siracusa Platão propõe
um arkhé hipeutinos basiliké, um poder real responsável (Carta Oitava,
355 e). ( ) Platão formaliza um sistema preciso de distribuição do poder
judiciário sem paralelo em seu tempo. Ele difere da ordem estritamente
democrática, pois não entende as cortes populares como supremas. E
também diverge da oligarquia e da aristocracia, pois em sua proposta os
dirigentes superiores do Estado são responsáveis e não possuem
privilégios como os usufruídos pela Gerusia de Esparta, ou mesmo pelo
Areópago ateniense antes de Solon. Ele planeja, portanto, algo que teve
relevância estratégica no mundo moderno e determina a estabilidade
política com a balança entre as forças opostas, algo fundamental em
Montesquieu. É platônica a noção de uma prática de checks and balances
essenciais no Estado posterior ao absolutismo.
A última e importante medida a ser notada nas teses de Platão é a
publicidade dos atos : “A votação deve ser pública. Durante o julgamento
os juízes devem sentar-se uns perto dos outros em ordem de idade e
diretamente diante do acusado e do acusador; e todos os cidadãos que
possuam tempo, devem seguir os trabalhos” (Leis, 855 d). O filósofo,
diz Glenn Morrow, procura evitar algo como o sistema secreto da Star
Chamber, algo usado pelos soberanos ingleses para impor despoticamente o
seu poder contra as leis estabelecidas e as práticas judiciarias
comuns.
Volto ao nosso fato comemorativo. Os senhores analisam a nossa
Constituição, como ela nasceu e quais os seus obstáculos reais. Peço
então o máximo cuidado com o juiz, que serve como intermediário entre a
lei e os cidadãos, sujeitos legítimos do mesmo ordenamento legal.
Escutemos uma autoridade no campo jurídico internacional, Michael
Stolleis, em considerações estratégicas sobre o múnus do magistrado.
Vimos o que apresentou Platão como base para o controle dos juízes.
Depois da Grécia, diz Stolleis, em vez do povo diretamente soberano, o
juiz “julga em nome de um outro e maior poder. Na tardia Idade Média e
nos inícios dos tempos modernos, do século 15 ao 18, Deus e o ius
divinum são indicadas como autoridades (…) Mais os Estados se tornam um
estado de legislação, mais Deus e natureza são substituídos pelo texto
da lei escrita e impressa, a intenção do legislador. Desde que Jean
Bodin explicou a soberania como o poder do seu possuidor de dar ordens a
cada indivíduo e para todos, legislar, o estado moderno tornou-se um
estado de legislação. No próximo século Thomas Hobbes intensificou a
tese, proporcionando a base teórica da aliança de todos os indivíduos e
fornecendo todo poder ao monarca”.
Com as revoluções modernas, dos Levellers ingleses no século 17 aos
democratas franceses, se estabelece a nação uniforme, não três corpos
sociais como a nobreza, o clero e o terceiro estado. O governante pela
graça divina é substituído pela soberania do povo. As leges
fundamentales são trocadas pela constituição. Esta é o mais autorizado
documento das nações, o mais santo, que prende os reis e os
representantes. Mas tal mudança exigiu muito sangue e lutas por parte
dos democratas que fugiam da Justiça monárquica absolutista. ( )
E o juiz? Este, adianta Stolleis, é unido à lei. Mas agora, o que é a
lei? Não é mais a ordem de um soberano onipotente, como em Bodin, mas
um compromisso entre o parlamento e o governo. O primeiro discute e
adota resoluções, mas a aplicação da lei depende do governo. No século
19 os jurados assumem nova figura. Eles simbolizam a transferência da
justiça do poder monárquico para as mãos do povo. Sua função é garantir
que os juristas não sigam além do sentido popular de justiça. Ao mesmo
tempo tal simbologia remete à ordem democrática moderna, mas também à
uma reversão romântica para a Idade Média, que supõe o natural, o
“diretamente derivado do caráter nacional”.
O novo juiz torna-se um representante do terceiro poder, ele se liga à
lei feita pelo povo ou pelos seus representantes. Diante dele, age o
promotor que representa o Estado e os defensores das partes. O notável é
que ele agora age em público, em prédios acessíveis à audiência. Mais
importante, as sentenças, incluindo os argumentos usados, recebem
críticas acadêmicas ou da opinião pública. O juiz é muito diferente do
que operava no Antigo regime. O Estado constitucional mudou o seu
perfil. Mas o Estado o usa, não raro, como instrumento de domesticação.
No século das ditaduras, o século 20, o juiz independente torna-se
desnecessário, o que serve como domesticador torna-se essencial. Esta é
a tragédia do judiciário.
Passada pelo menos em alguns países hegemônicos a era das ditaduras,
vem o período da suposta globalização, modo sofisticado de negar a
soberania dos Estados mais fracos, em favor dos fortes. Chegamos aos
tempos atuais. Como diz Stolleis, um brinquedo infantil produzido na
China, importado para qualquer país e revendido, contem integrantes
perigosos. Qual a situação em termos legais se um dano ainda não foi
detectado? Ou a manteiga dinamarquesa subsidiada pela Bélgica e
conduzida para a Argélia via Bavária e Itália para ser reimportada na
Europa como óleo? Trata-se de fraude, mas sob qual lei?
Isso tudo significa que o juiz de hoje é um prático especializado e
ao mesmo tempo um generalista que deve tratar com enormes incertezas. O
dogmatismo de quem se julga neutro aplicador das leis e proclama, após
sentenças notoriamente eivadas de ideologia conservadora, nunca “fazer
juízo de valor”, tende a desaparecer, mas por enquanto, ele triunfa em
países que negam os princípios da publicidade e da prestação de contas
ao povo. Nos tribunais norte-americanos, quantos juízes recusaram
aplicar, com espírito burocrático, os mandamentos da Lei Patriótica? No
mundo e no Brasil, portanto, muitos tribunais ainda se movem no
universo descrito por Max Weber no início do século 20. Os processos
contra notórios torturadores do período ditatorial, no Brasil, mostram
bem a gravidade do assunto. A lei de Anistia tende a se transformar em
salvo conduto dos que usaram a força física do Estado da maneira mais
torpe. E o que fazem os juízes?
Cito Weber : “a burocratização do Estado e do direito reconhece em
geral a definitiva possibilidade de rigorosa distinção conceitual entre
uma ordem jurídica ´objetiva´ e direitos ´subjetivos´ dos indivíduos
garantidos por ele, bem como a separação entre o direito ´público´,
ligado às relações entre autoridades e ´súditos´, e o direito ´privado´
que regula as relações dos indivíduos dominados entre sí. A
burocratização pressupõe a separação abstrata entre o ´Estado´, enquanto
sustento abstrato dos direitos de mando e criador das ´normas
jurídicas´ e todas as ´atribuições´ pessoais dos indivíduos”. ( ) Nas
formas burocráticas oficiais existe a perpetuidade do cargo. O que não
significa a posse do mesmo cargo. Quando no campo judicial garantias são
dadas aos juízes e demais funcionários da justiça, contra
destituições ou remoção arbitrárias, tais medidas têm por finalidade
principal oferecer ‘segurança’ com vistas ao cumprimento rigorosamente
objetivo e isento de toda consideração pessoal, o dever específico
imposto pelo cargo correspondente. A proporção da ´independência´
outorgada por aquela garantia jurídica na burocracia não causa o
incremento da estima ´convencional´— estamental— do funcionário assim
garantido (…) O funcionário administrativo, em todos os casos, pode ser
despedido com mais facilidade do que o juiz ´independente´”. A
independência dos juízes, na hierarquia burocrática, resulta na
despersonalização de sua individualidade.
Os sistemas burocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operam
segundo as particularidades subjetivas dos integrantes, das partes à
defesa, desta à promotoria, chegando ao juiz. “O juiz moderno”, adianta
Weber, “é similar à máquina que distribui refrigerantes, na qual os
processos são inseridos com a taxa e vomita o julgamento com razões
mecanicamente derivadas do Código”.
A independência funcional garante, paradoxalmente, a mecanização do
juiz. Este não mais depende de um soberano definido, indivíduo ou
coletividade (rei, papa, aristocracia ou povo), pois a independência
diante de pessoas de carne e osso é paga pela inserção na máquina de
controle geral. A independência dos juízes exige cautela. Quando se
trata de diminuir o autoritarismo de governantes e legisladores aquele
ideal pode ser visto como incremento de liberdade para os magistrados
em proveito da ordem coletiva. Mas, se ao despedir a dependência
anterior o juiz é inserido numa rede burocrática impessoal que o
controla externa e internamente, sua pretensa independência pode retomar
pesadelos políticos.
Cito o caso indicado por Eric Voegelin, lúcido analista do nazismo.
Trata-se do julgamento de Hans Hefelman. O réu afirmou que “todos os
procuradores de justiça chefes e presidentes das Cortes de Apelação
tinham declarado seu apoio ao programa de eutanásia. O réu, acusado de
cumplicidade na morte de 73 mil supostos doentes mentais, disse que o
secretário de Estado do Ministério da Justiça, doutor Franz
Schlegelberger (….) fez uma preleção na conferência em que declarou que a
ação ‘T 4’ era legal. Nenhum dos mais de cem membros mais antigos,
entre os quais estava o presidente da Suprema Corte, Erwin Bumke,
apresentou objeções”. Detalhe: o fundamento “legal” dos atos criminosos
era um decreto pessoal de Hitler, que não deveria ser divulgado e
permanecer secreto. Todos nós, brasileiros, recordamos o que significa
decreto secreto. E nos perguntamos, na época, quanto juízes e demais
operadores do direito se levantaram contra eles. Mas sigamos Voegelin:
“Temos documentos daquele encontro. É sabido que esses advogados
reunidos, entre eles o presidente da Suprema Corte, Bumke, foram
informados de que a campanha fora planejada, de fato, sem nenhuma base
legal, meramente com fundamento num decreto do Füher que deveria ser
mantido secreto. Os advogados foram informados de que a campanha deveria
ser um segredo do Reich. Isso significa que todos os mais altos juízes
alemães sabiam que todo esse empreendimento não tinha nenhuma base legal
e não disseram nada. Testemunhas dessa cena descrevem como todos
aqueles presidentes da Corte de Apelação olharam para Bumke –o que dirá
Bumke?– e Bumke nada disse! E então também eles nada disseram – e toda a
coisa começou a mover-se. Isto é o que parece na prática”. ( )
Mas ao se falar em eutanásia, cujo fundamento é a eugenia, não
podemos esquecer um outro ato de juiz, também de Suprema Corte, mas
agora nos EUA. Trata-se do processo de Carrie Buck, dita débil mental.
Sua mãe, Emma, também fora declarada débil e encarcerada pela vida toda
na Colônia para Epilépticos e Deficientes Mentais da Virgínia. Os
legisladores daquele Estado hesitavam em proclamar a lei de eugenia
tendo em vista a esterilização. Depois de várias leis terem sido vetadas
por tribunais, com base na Constituição, o processo foi para a Suprema
Corte e teve como relator o juiz Oliver Wendell Holmes Júnior. Holmes
era um defensor da livre expressão. É conhecido o seu dito: “Se existe
qualquer princípio da Constituição que imperativamente exige fidelidade,
mais que qualquer outro, é o da liberdade de expressão –não liberdade
de expressão para aqueles que concordam conosco, mas liberdade de
expressão para aqueles que achamos que odiamos”. De fato, comovente
princípio liberal. Ele foi tido como o mais respeitado homem da lei
norte- americana.
E foi tal juiz que levou adiante o processo Buck versus Bell,
decidido em 1927. Leitor de Spencer e dos chamados darwinistas sociais,
Holmes proclamou coisas expressivas na coletânea de seus escritos,
publicada com o título The Common Law, como por exemplo dizer que a
idéia de direitos herdados é intrinsecamente absurda (trata-se da
Lecture IX, contra III, “void and voidable). Em 1920, antes do processo
Buck versus Bell, ele escreve ao jurista inglês Frederick Pollak : “O
homem, hoje, é um animal predatório. Creio que a sacralização da vida
humana é uma idéia local, sem nenhuma validade fora de sua jurisdição.
Acredito que a força, mitigada ao máximo possível pelas boas maneiras, é
a ultima ratio e, entre os dois grupos que querem fazer tipos
inconsistentes de mundo, não vejo outra solução além do uso da força”.
Sem me alongar demasiado sobre o caso, que deu forte impulso aos
procedimentos eugenistas nos EUA e no mundo, inclusive e sobretudo na
Alemanha de Hitler, cito a parte essencial da sentença pronunciada pelo
grande liberal e juiz: “ É melhor para todos no mundo que, em vez de
esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou deixar que
morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir
os que são claramente incapazes de continuar a espécie. O princípio que
sustenta a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte
das trompas de Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes”.
Carrie Buck foi esterilizada em 19 de outubro de 1920. ( )
Poderíamos recitar infinitos casos brasileiros que mostram a
cumplicidade de juízes com sistemas injustos ou mesmo iníquos de poder.
As duas ditaduras que desgraçaram a nação no século 20 tiveram sustento
em propaganda, força física, auxílio de muitos magistrados, causídicos,
constitucionalistas. Passadas as formas de imposição ditatorial, com o
retorno ao mando civil e advinda a Constituição cidadã, milhares de
pessoas no Brasil passam por torturas, escravidão, sequestros de seus
bens por planos econômicos que são verdadeiros golpes de Estado brancos,
e não encontram abrigo em togas que deveriam servir para protegê-las.
Vemos, por outro lado, que movimentos sociais recebem apodos infamantes
de instituições que deveriam investigar sine ira et studio, mas que
chegam às propostas de criminalizar movimentos sociais, sem julgamento.
Quando injustiças tremendas são cometidas, é fácil acusar governos,
parlamentos, exércitos, polícias. Mas é preciso ser mais prudente e
verificar a culpa de todos os envolvidos, das camadas populares aos
juízes. É o que afirma Stolleis, quase no final de seu pungente livro
sobre o ensino jurídico na Alemanha, antes e depois do nazismo. ( ) A
história do Holocausto está germinada à narrativa do ensino e pesquisa
sobre a constituição, que o reflete em todos os aspectos. “Estado,
‘administração’, ‘sistema judiciário’ e o exército, estiveram envolvidos
como atores diretos, ajudantes, ou como testemunhas silenciosas que
apoiavam ou apenas se resignaram”. Da lista não escapam “os inumeráveis
participantes que garantiram as estruturas e permitiram que os aparelhos
permanecessem operando, como por exemplo os engenheiros do Reichsbahn ,
os oficiais da Wehrmacht, os que sabiam de tudo nos ministérios, os
juízes, os promotores, e os acadêmicos também, comentadores que
traduziram a nova injustiça para os velhos princípios dogmáticos e os
tornou utilizáveis numa forma percebida como ‘normal’ (…) O que eles
fizeram pode não ter sido criminoso no sentido legal, mas sem suas
inumeráveis contribuições para a divisão do trabalho, o crime do
Holocausto não teria sido possível”.
Quando o STF decidiu em favor do governo brasileiro e contra os
aposentados, escrevi um artigo que o Unafisco me deu a honra de
repercutir, em louvor de Evandro Lins e Silva, juiz expulso pela
ditadura quando exercia seu ofício no STF. Cito o final do texto :
“Evandro Lins e Silva nunca faltou com a sua consciência e jamais
desobedeceu o maior imperativo categórico, o definido pelo dever.
Advogado, entendeu perfeitamente todas as faces da justiça, da
promotoria ao juiz. Político, nunca acolheu enquanto juiz os desejos e
planos dos ocupantes de cargos executivos. Suas sentenças trouxeram o
direito das nuvens oligárquicas ao povo sofrido das ruas e aos
profissionais da honestidade. Jornalista, jamais vendeu sua pena em
favor de interesses alheios aos direitos públicos.
Evandro sofreu violências dos poderosos mas nunca abandonou a
confiança do seu povo. Fico feliz por não ter ele visto a decisão do STF
em detrimento dos direitos adquiridos pelos aposentados. Tenho certeza
de que, junto ao único juiz competente, ele agora percebe o sentido
inteiro de sua vida: alimentar com a chama da justiça a esperança das
pessoas que tiveram seu anelo de respeito pisado por um presidente,
esquecido do que prometeu à sua gente, abandonada pelos parlamentos,
finalmente destituída pelos que deveriam zelar pela retribuição de quem
pagou pelos seus ‘benefícios’ e agora se pergunta onde reside a justiça.
Todos os cidadãos devem começar uma luta urgente: exigir que o STF
seja ocupado por magistrados de carreira, sem nenhuma indicação da
presidência da República, cumprindo a plena autonomia entre os três
poderes. Depois do julgamento histórico do STF, as causas dessa batalha
são mais do que óbvias. Evandro Lins e Silva estará presente na memória
da cidadania, que o evocará sempre com extrema gratidão. O mesmo não é
possível dizer de várias outras togas, para nossa tristeza”.
Juízes, um novo poder?
Para finalizar, cito um artigo que merece atenta solicitude, o escrito po Dominique Rousseau, professor de direito constitucional na Universidade de Montpellier (França), que analisa o papel do juiz nas sociedades modernas. Entre as coisas ditas por ele e que precisam ser discutidas, o professor aponta para a presença dos magistrados em tarefas que antes não eram usuais, como é o caso da Operação Mãos Limpas, ou o que faz Garzon na Espanha. O fato possui origens institucionais. Assistimos, diz Rousseau, o declínio de instituições que até agora exerciam um papel de contra poder, de controle, de sanção, tanto no domínio político quanto no econômico e civil. Outras explicações são de ordem sócio política, como por exemplo o fim dos “grandes relatos” sobre a sociedade, com a queda do muro de Berlim, que exige hoje de todos uma acurada responsabilidade individual.
Seria o poder novo dos juízes a prova de um declínio da democracia?
Não necessariamente. A filosofia política moderna foi edificada,
argumenta o professor, sobre um buraco negro relativo ao terceiro poder.
O próprio Montesquieu, que teoriza a separação dos poderes, escreve a
propósito do judiciário que ‘a potência do juiz é nula’, pois o direito é
a boca da lei. O aumento do poder dos juízes no mundo mostra que tal
idéia é falsa. De fato, a lei é ao mesmo tempo barulhenta e silente, no
sentido de que ela é apenas constituída por palavras, mas é o juiz que
dá um sentido preciso, um conteúdo concreto a tais palavras. Assim,
quando a lei diz que todos os indivíduos que constituem uma ameaça para a
ordem pública deve ser processado, ela não diz o que concretamente é
uma ‘ameaça para a ordem pública’, é o juiz que, confrontado por tal ou
tal situação, dá um sentido, um conteúdo, uma concretude às referidas
palavras. É o juiz que finaliza a lei, que dela faz uma norma.
O aumento do poder dos juízes coloca interrogações sobre o paradigma
democrático, cujo fundamento é o voto, finaliza o professor Rousseau.
Pelo voto os eleitores exercem sua vontade que coincide com a dos
eleitos. A legitimidade democrática exige o circulo entre as duas
vontades, a do eleitor e a do eleito. Já o poder dos juízes é de
inspeção, controle, mais do que os poderes cujo fundamento é o voto. A
fusão suposta entre representados e representantes é negada, ou tida
como insuficiente. Para que exista democracia é preciso, doravante, que
ocorra um direito de controle e o exercício desse direito, entregue ao
juiz. ( ).
O que Dominique Rousseau descreve em poucas palavras pode ser uma
saudável interferência na ordem pública, pelos magistrados. Mas quando
ele relativiza como o faz a democracia eletiva em favor do controle
judicial da coisa pública, sem que exista passagem pelo voto, é possível
temer pelo futuro. Uma tirania, apenas porque é sapiente e togada, não é
menos letífera do que as demais. É importante que os juízes deixem uma
posição distante face aos problemas da república. Eles integram a
essência mesma do Estado e não lhes cabe o alheamento. Mas disto não se
pode inferir, sem muitas controvérsias e análises, que eles tem
legitimidade para se imiscuir, sem votos e sem prestar contas ao povo,
do que é entregue ao múnus dos demais poderes. Tal situação seria típica
das ilegitimidades ex defectu tituli. E tal status se agravaria,
ademais, com o exercício ilegítimo.
Com os exemplos do passado e do que assistimos no Brasil –basta
recordar a notícia com que iniciei estas considerações– temos muitas e
ponderáveis razões para exigir que o poder dos juízes receba fortes
contrapesos dos demais poderes e, sobretudo, que eles sejam obrigados a
prestar contas ao povo soberano. Aquele mesmo que nos textos jurídicos e
nos discursos judiciários é dito “leigo” Ainda vivemos, infelizmente,
no mundo hierarquizado de Dionisio Areopagita. Nele, o cosmos natural e
político vai dos seres mais próximos do divino, anjos e arcanjos e deles
aos sacerdotes. Abaixo dos quais vive o laós, composto pelos mortais
comuns que só merecem receber lições e governo. Esta escala sagrada foi
destruída por Lutero e pelas Revoluções inglêsa (século 17),
norte-americana e francesa. Parece que em muitos setores do Estado, em
especial no Judiciário, ainda estamos muito longe da Reforma e da
moderna democracia.