II
Congresso Estadual dos Magistrados de Pernambuco.
Dr. Roberto
Romano da Silva
Unicamp.
Ementa
O longo texto que segue tem um núcleo
lógico concomitante a um outro núcleo, o histórico. Segundo o plano lógico, a independência dos
juízes depende da real isonomia dos poderes no Estado. No plano histórico, a
nossa gênese enquanto Estado exigiu a diminuição do Legislativo e do Judiciário
perante o poder Moderador que controlava o Executivo no Império e cujas
prerrogativas passaram ao governo, na República. Resulta a enorme concentração
de poderes nas mãos do Executivo federal e a não menos considerável
concentração de recursos (financeiros, jurídicos, militares e policiais) no
Executivo, em detrimento dos demais poderes. O presidencialismo imperial obstaculiza
a democracia, a eficácia das políticas públicas, o desenvolvimento da cidadania
na luta pelos direitos. Sem a luta pela isonomia dos poderes e sem o ajuste de
contas com a história política nacional, dificilmente teremos o sonhado e pleno
Estado de direito federal e, portanto, plena independência para o judiciário.
Muitos juízes, com heroísmo silencioso, agem de modo independente. Mas é
preciso que o coletivo federal e estadual judiciário tenham independência e
respondam sempre à cidadania, com a mais acurada accountability, sem nenhuma
interferencia dos outros poderes e sem servir, por sua vez, como legitimador de
atentados ao direito e à lei pelos demais poderes. O texto traça uma rápida
crônica do poder absoluto para indicar o quanto o nosso Estado ainda possui
traços dessa tendência, em especial no Executivo. E termina com algumas
questões espinhosas, mas necessárias, sobre as últimas medidas políticas
estatais relativas ao Judiciário.
O tema é a independência dos juízes
segundo a filosofia. Permitam-me, antes de expor um assunto com tamanhas
pretensões, partir do campo oposto ao ideal referido. Refiro-me à burocracia
que ameaça indivíduos e grupos do presente e do futuro, com a falta de
independência, algo que já ocorreu à humanidade no século XX. É conhecida a
tese weberiana, muito próxima do pensamento romântico, de que nos tempos
modernos a política, a economia e a religião perderam todo encanto. O sagrado
desaparecido teve como sucessores mecanismos que arrancaram dos indivíduos
liberdade, força volitiva, pensamento autônomo. A burocracia, “máquina sem
vida, é espírito coagulado. E só porque é isto, ela tem o poder de forçar os
indivíduos a servi-la e determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital (…)
Como espírito coagulado aquela máquina viva representa a organização
burocrática com sua especialização do trabalho profissional aprendido, sua
delimitação das competências, seus regulamentos e relações de obediência
hierarquicamente graduados. Unida à máquina morta, a viva trabalha para forçar
a jaula (Gehäuse) daquela servidão do futuro a que talvez os homens se
vejam obrigados a submeter-se impotentes, como os felás do antigo Egito”. ([1])
Se as pessoas comuns seguem dominadas
pelas formas burocráticas, também os legisladores e governantes tombam na
malhas tecida pela racionalidade dos escritórios. O segredo é renitente
prerrogativa da raison d´État ([2])
Os justificadores da burocracia a defendem com fanatismo e brandem o “segredo
do cargo”. Se a burocracia enfrenta um Parlamento, luta com instinto seguro
contra os ensaios ali realizados para abolir o segredo do cargo com meios
próprios e conhecimentos especiais. “Um Parlamento mal informado e, portanto,
sem poder, é naturalmente melhor acolhido pela burocracia (…) Inclusive o
monarca absoluto, e de certo modo ele justamente, percebe a si mesmo quase
sempre impotente diante do superior
conhecimento burocrático especializado”. ([3])
Se aquela rede controla governantes
e legisladores, também os juízes caem em
suas teias. “Só a burocratização do Estado e do direito reconhece em geral a
definitiva possibilidade de rigorosa distinção conceitual entre uma ordem
jurídica ´objetiva´ e direitos ´subjetivos´ dos indivíduos garantidos por eles,
bem como a separação entre o direito ´público´, ligado às relações entre
autoridades e ´súditos´, e o direito ´privado´que regula as relações dos
indivíduos dominados entre sí. A burocratização pressupõe a separação abstrata
entre o ´Estado´, enquanto sustento abstrato dos direitos de mando e criador
das ´normas jurídicas´ e todas as ´atribuições´pessoais dos indivíduos”. ([4])
Nas formas burocráticas oficiais existe a perpetuidade do cargo, que não significa a sua posse. Quando no
campo judicial são dadas garantias aos juízes e demais funcionários da justiça,
contra a destituição ou remoção arbitrárias, tais medidas visam principalmente
oferecer “segurança com vistas ao cumprimento rigorosamente objetivo e isento
de toda consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo
correspondente. A proporção da ´independência´ outorgada por aquela garantia
jurídica na burocracia não causa o incremento da estima ´convencional´—
estamental— do funcionário assim garantido (…) O funcionário administrativo, em
todos os casos, pode ser despedido com
mais facilidade do que o juiz ´independente´”. A independência dos juízes, na
hierarquia burocrática, resulta na despersonalização de sua individualidade. Os
sistemas burocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operam segundo as
particularidades subjetivas dos integrantes, das partes à defesa, desta à
promotoria, chegando ao juiz.
A independência diante dos antigos
poderes garante, paradoxalmente, a mecanização do juiz. Este não mais depende
de um soberano definido, indivíduo ou coletividade (rei, papa, aristocracia ou
povo), pois a independência diante de pessoas de carne e osso é paga pela
inserção na máquina de controle geral. Não espanta que um inimigo conservador
da burocracia moderna, Carl Schmitt, assim descreva as operações dos juízes no
regime nazista : “legislação, administração e justiça funcionavam, graças a
novas simplificações e acelerações do processo, com obstáculos sempre menores,
como aparelhos
de comando”. Isto levou o mesmo Schmitt a discutir a fieira de
tribunais revolucionários ou conservadores de exceção e a repetir a queixa do
padre Laberthonnière: “Eu não julgo a vítima, apenas os juízes !”. ([5])
A independência dos juízes é tema que exige cautela. Quando se trata de
arrefecer o autoritarismo de governantes e legisladores, aquele ideal pode ser visto como incremento de liberdade
para os magistrados, em proveito da coletividade. Mas, se ao deixar a
dependência anterior o juiz cai na rede burocrática impessoal que o controla
externa e internamente, sua independência pode resume-se a um pesadelo
político.
Como tentativa de chegar à independência do juiz, tomo
Francis Bacon, autor que mais atiladamente adiantou os nexos entre
saberes e poder no mundo moderno, conhecido pelo aforismo knowledge and power meet in one. Em países como os EUA e Brasil de
hoje, os juízes dizem a última palavra
na exegese das leis e da Constituição. Desconhecemos apelo para algum tribunal
acima do Supremo. Vigora entre nós, pelo menos em princípio, a autonomia dos
poderes, o que faz dos juízes um coletivo que interpreta a lei. O mesmo não
ocorre na Inglaterra. Alí, apesar da ampla autonomia dos juízes, as decisões
recebem a supervisão do soberano poder legislativo. ([6]) Os dois sistemas possuem
fundamentos comuns, apesar das diferenças, pois a sua base filosófica enuncia
que as pessoas têm direitos anteriores ao Estado e o poder político foi
instituido para proteger tais direitos. Como as garantias daqueles direitos são
frágeis ([7]), o necessário governo é
posto pelos indivíduos particulares, unidos para proteger seu corpo e alma.
O modelo inglês enfatiza o governo soberano unitário e nele, para
proteção dos indivíduos, o poder deve ser forte porque grupos privados podem
conspirar para extrair a vida e a liberdade alheias. A divisão do Estado
incentivaria uma parcela social a resistir ao esforços das outras para viver em
comunidade política. Os juízes não podem ser totalmente independentes, com a
palavra absoluta. Quando eles não agem em harmonia com o todo estatal ou
social, apelo deve ser feito ao poder soberano, antes o rei e hoje no
Parlamento. O medo trazido pela separação do poder é que ela impeça a defesa
dos direitos. O judiciário “responde ao poder encarregado, em último gráu, de
garantir os direitos”, sendo o Legislativo o mais próximo da vontade popular. A supremacia pertence ao Parlamento, não ao
Judiciário.
No outro lado, o que defende a supremacia do judiciário quando se
trata de defender o direito, busca-se
impedir que a maioria tiranize a minoria. A constituição escrita unida à
separação dos poderes, impede que partes do Estado assumam poderes
desproporcionais aos das outras. O sistema inglês, embora acentue a supremacia
do Legislativo, garante os juízes na decisão dos casos, pelo menos até o apelo
final, permite que eles apliquem leis
antigas. Neste plano, a responsabilidade derradeira pela proteção dos direitos
pertence ao Parlamento que faz as leis e subordina os juízes. No sistema oposto
a autoridade é dividida e concede aos juízes papel especial de impor limites às
formas governamentais.
E aqui entra Francis Bacon, entusiasta do procedimento inglês,
tendo como discípulo aproximadamente fiel o também filósofo Thomas Hobbes.
Bacon subordina, de modo formal, os juizes ao poder soberano, embora lhes
atribua importante papel no governo. Papel relevante, sim, mas que eles devem
desempenhar calma e indiretamente. Bacon parte de uma tese moderna: os
indivíduos possuem alvos privados e o governo deve proteger tanto o seu corpo
quanto as suas finalidades. Sem o soberano, eles caem na violência ilimitada.
As barreiras contra as ambições particulares são produzidas artificialmente
pelo Estado. Segundo Bacon o poder estatal deve ser forte e uno e, portanto,
soberano. A unidade é condição do poder, pois um Estado dividido não pode se
responsabilizar em caso de fracasso na conciliação dos contraditórios fins
privados. Poder único não significa poder monárquico, visto que Bacon indica o
soberano como força que pode residir num indivíduo ou numa assembléia. Para
ele, os juízes exercem sua autoridade no Estado, mas não de modo a enfraquecer
a unidade do poder público. Eles devem ser “leões sob o trono” na expressão
usada no ensaio “Sobre a judicatura”. Mas se estão sob o trono, nem por isso
perdem a essência leonina. Ao garantir a aplicação da lei, agir como
intermediários entre o poder soberano e os indivíduos privados, esclarecer
antigas leis, os juízes excercem grande poder no Estado e na sociedade.
Os juízes, afirma Bacon ([8]) devem recordar que seu ofício é
jus dicere e não jus dare.
Interpretar a lei e não fazer a lei. Eles devem ser mais ilustrados que
inteligentes, mais respeitáveis do que plausíveis e mais desconfiados do que
confidentes. O dever maior do juiz é suprimir a força e a fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta e a
fraude quando oculta e disfarçada. Os juízes devem se
acautelar contra as construções teóricas sistemáticas e inferências, porque não
existe tortura pior do que a tortura das leis. Sobretudo no campo penal, eles
devem ter cuidado. Paciência e gravidade nas audiências são necessárias, o juiz
que fala em demasia não é um címbalo bem ajustado. São quatro as partes do juiz
na audiência : dirigir tudo para a obtenção de evidências enquanto modera a
extensão, a repetição, a impertinência da fala. Recapitular, selecionar, e
citar os pontos materiais, do que foi dito. E dar a lei ou a sentença. Tudo o
que estiver além disso é demasiado e procede da glória, do comichão de falar,
da impaciência em ouvir, da memória curta, ou falta de atenção.
Bacon afirma que os
juízes, embora não tenham lugar sobre o trono, devem manter o essencial da
soberania, segundo a raison d´État. Eles devem “recordar
a conclusão das Doze Tábuas Romanas, o preceito de que Salus populi suprema lex e saber que as leis, exceto quando
voltadas para aquele fim, são capciosas, oráculos pouco inspiradores. Logo, é
bom para o Estado que os reis e estamentos consultem com frequência os juízes.
E que os juízes consultem com o rei e estamentos com a mesma frequência. A
primeira ocasião, quando se trata de lei que interfira nos assuntos de Estado.
E a segunda, quando há alguma análise a ser feita no Estado em matéria de lei.
Porque muitas vezes as coisas conduzidas a juízo devem ser ligadas ao meum e tuum, quando a razão e a consequência interessa ao Estado. Assunto
de Estado não são apenas as partes da soberania, mas tudo o que introduz alguma
alteração considerável, ou precedente perigoso, ou se relaciona com uma grande
parte do povo. Não se considere que as
leis e a política (policy) se
opõem. Elas são como os espíritos e
tendões: uma se move com a outra. “Os juízes devem ignorar o seu próprio
direito, ao ponto de pensar que nada sobrou para eles, como a principal parte
do seu ofício, um uso sábio e aplicação das leis. Porque eles precisam recordar
o Apóstolo quando disse de uma lei maior dos que as deles : Nos scimus quia lex bona est, modo quis ea
utatur legitime (sabemos que a lei é boa, desde que usada por alguém com
legitimidade)”. ([9])
Os juízes
garantem a obediência às leis. Mas são limitados pelo soberano. O que é
a “lei do soberano”? A resposta mais direta encontra-se em Hobbes, secretário
de Bacon e tradutor para o latim dos Ensaios.
“Lex est mandatum ejus personae, sive
hominis sive curiae, cujos praeceptum continet obedientiae rationem”. ([10]) Desnecessário dizer a
importância dessa tese hobbesiana para se pensar a difícil independência dos
juízes. Enquanto “a lei natural é imediata em nós, pois conhecemos o mandamento
divino em nossa razão, a lei civil é mediada pelo conjunto de regras com as
quais a comunidade, por escrito ou oralmente, ou qualquer outro sinal adequado
(signum idoneum) de sua vontade,
comanda o uso da vontade para distinguir o certo do errado, o contrário à regra
do que não é contrário”. ([11]) Só a Commonwealth pode editar leis civis. O
soberano é o único legislador, não submetido às mesmas leis civis. Essa tese é
de Bacon, para quem a lei depende do soberano, posição contraria à de Coke para quem a Common Law é suprema. O longo tratamento da lei é feito por Bacon
no tratado De Dignitate et augmentis
scientiarum. No Livro VIII ele escreve sobre a raison d´État e cita Maquiavel, com atilada análise da política
exterior no comércio e demais segmentos estratégicos. No título I do Terceiro
capítulo do mesmo Livro VIII (“A certeza
é a primeira dignidade das leis”) afirma-se: “a melhor lei é a que deixa pouco
à disposição do juiz”. A incerteza da lei vem sobremodo de sua forma ambigüa.
Se a melhor lei é a que deixa pouco ao juiz, “o melhor juiz é o que menos deixa
à sua própria vontade”. Importa deixar clara a gênese da lei. Em toda sociedade
civil há uma autoridade legislativa como “absoluto poder (summa potestas) que faz e revoga a lei”. ([12])
Bacon ocupou cargos no Estado e na justiça
inglêsa. Foi Solicitor General
(1607), Attorney General (1613), Lord Keeper (1617) e Lord Chancellor (1618). Sua atividade
constante, no entanto, consistiu em aproximar o rei do parlamento, “duas bases
e princípios deste Estado (…) que não se anulam, mas se fortalecem e mantêm um
ao outro”. Mas ora ele dá um peso maior a um, ora a outro elemento. O rei
possui prerrogativas “mediatamente devido às leis, mas imediatamente de Deus” e
não pode ser censurado por nenhum juiz, por estar além de toda jurisdição. Mas,
como o seu oficio é preservar o público, espera-se que ele não desobedeça a
lei. Um bom rei governa com a lei. Embora “legibus
solutus, seus atos e garantias são limitados pela lei”. ([13]) Bacon defendeu os
privilégios dos Comuns em 1593, e por isto a carreira foi-lhe subtraida sob
Elizabeth II. O trato com James foi mais balanceado, embora o soberano
insistisse num absolutismo extremo que o colocando-se como vice-deus. A
confiança de Bacon no Parlamento foi recompensada. Em 1614 os Comuns decidiram
que nenhum Attorney General teria
lugar na Casa das Leis, mas fizeram exceção para Bacon. ([14])
Chegamos aos juízes em Hobbes. É essencial
recordar que para o filósofo a soberania
bane da ordem pública os juízos
com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe medida comum
para o juízo moral e indivíduos diferentes percebem as coisas de modo
diferente, desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o bem e o
mal, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar
ao infinito, na medida mesma do desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra universal não é
apenas física, mas psicológica porque inveja e ódio campeiam e cada pessoa
julga-se mais esperta do que a outra. Paixões diversas e igualdade no poder
mortífero levam à miséria. É impossível arrancar a força física dos homens, mas
factível obrigá-los a abdicar da exteriorização de sua opinião privada. Todos
devem renunciar ao “direito” de impor o juízo próprio aos demais. Visto que todos a partir da natureza possuem
um direito igual, cada um pode entrar no pacto. E todos submetem-se ao juízo de
um árbitro. Só o soberano guarda o direito natural e usa sem restrições a força
física e o juízo próprio. ([15])
O soberano concentra o poder de julgar em todas
as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais, guerra ou
paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar
limites nos desejos infinitos dos cidadãos. Como todos abrem mão do
juízo privado, nada sobra para o direito de resistência que nele reside. Entre o real como o vemos e como ele existe
ocorrem diferenças por construírmos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O
intelecto não possui perfeito conhecimento dos demais homens. Estratégico nos
indivíduos “não é a verdade mas a imagem que faz a paixão. A tragédia afeta
mesmo o assassino, quando bem desempenhada” (The Elements of Law). Paixão e imagem trazem rebeliões. O uso
correto das palavras não consiste na verdade, mas serve para evitar
ambigüidades nocivas. A distinção entre o nosso interior e o mundo externo
acentua a ausência de medida comum de bem e mal. Os indivíduos discordam sobre
o certo e o errado e são incompetentes
para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias
novas opiniões (as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, deram
às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem ilegal
mudá-las ou falar contra elas”.
Os homens fundamentam seus atos em raciocínios, concebem “a consequência dos
nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade
e de uma parte para o nome da outra parte (…) E os juristas somam leis e fatos
para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados”. Todo homem pode
errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista o bom juízo. “Ao surgirem
controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz,
a cuja sentença se submetem (…) Quando os que se julgam mais sábios do que
todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, só procuram garantir
que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua.
É tão intolerável agir assim na sociedade dos homens como no jogo, escolhido o
trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais
cartas na mão.” ([16])
Hobbes afasta a fraude no
“jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano não preso a regras. Os particulares não
têm mais direito (pois assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O
soberano, cuja função é salvar o povo, não sofre esta limitação. O jogo opera
com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos
jogarem sem regras, desaparece o jogo e nenhum jogador parte da igualdade das
chances porque o truque se esconde e não se indica quem o usa (caso contrário,
ele se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e
a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de
que as desrespeita, simula aceitá-las, dissimula truques. O jogador comum opera
com a imaginação e a discreção: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em
que vence (pode imaginar os frutos do ganho como riquezas, amores, etc) e ao
mesmo tempo não pode revelar as cartas. O soberano não segue regras (não é
jogador) e usa a discreção, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele
opera em pleno direito natural.
A imaginação indiscreta não é força. Quem usa o intelecto para o
jogo exerce deliberada dissipação da mente (mind).
Na ordem familiar são permitidos jogos com os sons e palavras equívocas pelos
significados, com a desregrada sequência da imaginação (Fancy). Mas tal jogo é proibido no sermão ou diante de pessoas
desconhecidas ou às quais deve-se reverência. A discreção traz as regras do
trato que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de
outros. É possível ser discreto, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente
o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados a usar
por medo e necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft) um sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo dos
expedientes injustos ou desonestos, enquanto a Versutia —astúcia, sutileza— consiste em afastar um perigo ou
incômodo presente mediante um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a
outra, esperteza de vistas curtas”.
Como fazer todos os
jogadores seguirem as regras, sem truques? “As leis da natureza, justiça,
equidade, modéstia, benevolência, fazer
aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem sem o terror de algum
poder (…), são contrárias às nossas paixões naturais, estas nos empurram para a
parcialidade, orgulho, vingança e que tais. E pactos sem a espada, são apenas
palavras (Covenants, without Sword, are
but Words) e não possuem nenhuma força
(strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as
regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. A lei não é conselho, mas ordem do poder soberano, regra para uso e distinção do bem e do mal e
do que é contrário ou não à regra (Rule).
As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele
designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pelos particulares.
Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, age tendo em
vista a “consciência”. assume o papel de estraçalhador da Commonwealth. No De cive
(capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à
sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam,
aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo
nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam
todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados
na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na
facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e
intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e
lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual
deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é
fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma
outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado,
apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a
seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em
que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e
populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem
grande o bastante, a qual podem dirigir (rule)
pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às
vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth)
quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das
vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a Loucura
e a eloquência concorrem para a
subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália,
que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião
decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o
colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente.
Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar
o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se
tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas
em vez de reformar o governo”. ([17])
“É preciso obedecer mais a Deus do que aos
homens” ? ([18]) A questão é
impertinente porque as leis não governam consciências, mas regem palavras e
atos. A Biblia ensina a obedecer o
soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano)
é desconhecido entre Judeus, Gregos, Romanos e gentios. Naqueles povos, as leis
civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos têm
essa dificuldade porque exigem para a autoridade religiosa poderes acima do
civil. Quanto aos atos, a paz só é conseguida quando eles são regulados. Caso
contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência.
Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas,
apolineanos, cefasianos não impede a obediência à ordem pública. “Paulo
mostra que as questões trazidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. No mundo
civil quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado
pelas paixões, merece punição.Sendo a consciência apenas “opinião” ela não deve
ela ser abolida, mas restrita no espaço público, que não pode ser uma soma
heteróclita de opiniões, mas resultado de uma só “opinião” racional.
O debate sobre o
destino post-mortem deve ser afastado
das leis que regem o corpo social. Segundo Pierre Bayle “o sumário do Leviatã é que sem a paz não existe
segurança no Estado e a paz não subsiste
sem comando e o comando sem armas; as armas nada valem se não forem postas nas
mãos de uma pessoa; o medo das armas não
conduz à paz os impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível
do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação
eterna”. ([19])
O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata
da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de
agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para
a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural
para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de
vida e morte. A segurança é inalienável.
Ferdinand
Tönnies ([20])
editor e estudioso de Hobbes, contrário ao saber político e social mecânicos do
Leviatã (Tönnies pertence à
sociologia romântica) define dois modêlos contrários de ordem social, incluindo
a pública. A sociedade é mecânica enquanto a comunidade é organismo vivo. “A
distância que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina
construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns orgãos
concretos de um corpo animal, é a que vai de um conglomerado de vontade —vontade sobreposta— a um conglomerado de
vontade vontade essencial”. Como indica Georg Lukács, “Tönnies pinta a
sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, onde cada um é
inimigo do outro e apenas a lei pode assegurar uma ordem externa.” ([21])
A noção de poder, em
Hobbes, não se desvincula da linguagem. Yves Charles Zarka chega a afirmar que
a sua doutrina não se liga “tanto à física, mas à semiologia”. ([22]) Fala, gestos, escrita sujeitam-se à ambigüidade e ao equívoco. A lógica fornece princípios do correto emprego das
denominações. A pacificação requer uma lingua na qual os equívocos sejam
atenuados. A lingua,
antes embebida nas paixões, com o estado de natureza, no Estado é a única forma
passível de uso científico com a proposição, porque afirma e nega, possibilita o juízo sobre o falso e o
verdadeiro. “Quando um homem raciocina a partir de princípios indubitáveis por
experiência, todos os engodos dos sentidos e equivocos de palavras evitados, a
conclusão feita por ele concorda com a reta razão. Mas quando da conclusão ele pode, por bom
raciocínio, derivar algo que contradiga qualquer verdade evidente, concluiu
contra a razão e tal conclusão é absurda.” Dos absurdos nascem os fanatismos
religiosos e políticos. No trato comum, são usados nomes extraídos da
ignorância coletiva e na fala então importa, para que eles sejam lembrados, a
coerência de uma concepção para outra. Mas se as palavras ajudam a memória, a
comunicação e a vida em comum, elas podem transformar o convívio num inferno.
Pelas palavras e raciocínios ultrapassamos as feras. Elas desconhecem o
verdadeiro e o falso e não possuem juízo, não multiplicam uma não verdade por
outra, como fazem os homens.
As paixões iniciam
todos os movimentos voluntários e da fala. Querendo mostrar aos outros o saber,
opiniões, concepções e desejos, e para isso inventado a linguagem, os homens
transferem todo o discurso mental às palavras. E a ratio torna-se oratio
“porque na maioria dos homens o costume tem um poder tão grande que se a mente
sugere uma palavra inicial, o resto delas segue-se pelo habito e a mente não as
acompanha. É o que ocorre entre os
mendigos quando rezam seu paternoster. Eles
unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou
seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às
palavras que enunciam.” ([23])
As palavras, quando se
trata de uma lei, precisam ser entendidas por todos os que a devem acolher.
Como seguir uma ordem quando ela foi emitida em lingua obscura, acessível
apenas aos juristas ? Não basta o juiz
entender as partes: é preciso que ele sempre se faça entender. ([24]) Para que se obedeça é
obrigatório que a lei seja promulgada em lingua conhecida por ele. Urge que a
pessoa saiba as penalidades a que se submeterá e se defenda em lingua acessível
ao juiz e aos concidadãos. Se os últimos o compreendem, mesmo o juiz parcial
terá trabalho para impôr uma sentença errônea.
O juiz pode errar quando interpreta a lei. Logo,
ele deve estudar a equidade. “Por
exemplo, é contra a lei da natureza punir o inocente; e inocente é o absolvido
judicialmente, reconhecido inocente pelo juiz. Coloque
agora o seguinte caso: um homem é acusado de crime capital e face ao poder e a
malícia de algum inimigo, a corrupção freqüente e parcialidade dos juízes, foge
com medo, é pego e conduzido a um julgamento e como não tinha culpa, é
absolvido mas condenado a perder seus bens; esta é uma condenação manifesta do
inocente. Não há lugar do mundo em que isso poderia ser uma interpretação da
lei da natureza, ou transformado em lei pelas sentenças dos juízes precedentes
que fizeram o mesmo. Porque o primeiro que julgou, o fez injustamente; nenhuma
injustiça pode ser modelo de juízo para os juizes subsequentes. Uma lei escrita
pode proibir os homens inocentes de voar e eles podem ser punidos por voar; mas
que voar por medo de injúria seja tomado por presunção de culpa, depois que
alguém já foi absolvido judicialmente do crime, é contrário à natureza da
presunção, que não tem lugar depois que o juízo foi dado”.
Hobbes distingue o
cavilador e o intérprete. Um cavilador traz outros, ao infinito. Mas deve
existir um intérprete, o juiz ordinário, que também interpreta as leis não
escritas. As sentenças desse juiz não podem obrigar outros juizes “porque um
juiz pode errar até na interpretação das leis escritas; mas nenhum erro de um
juiz subordinado pode mudar a lei, a qual é a sentença geral do soberano”.
Quais as condições para que o juiz seja intérprete das leis? Entendimento reto da principal lei da
natureza, a equidade, que não depende das leituras de outros homens, mas da
bondade da razão natural própria. Segundo: desprezo de bens desnecessário e
promoções. Terceiro, ser capaz de num julgamento retirar de si todo medo, ira,
ódio, amor e compaixão. E finalmente, paciência para ouvir, atenção diligente
na escuta, memória para reter as peças, aplicação ao que ele tiver ouvido. A
razão, que chega à equidade, deve afastar ou controlar as paixões mais notórias
do trato entre as pessoas. Hobbes acentua a ambição como algo que não deve
integrar a alma do juiz. Tanto, ou mais do que as outras paixões, a fome de
bens ou cargos tolda o juízo, torna a mente fechada para as evidências e para a
fala das testemunhas, do réu, da outra parte.
No Leviatã,
a mente apaixonada curva-se à fantasmagoria que ela própria gera, tendo como
objeto os demais seres humanos. É o reino da mentira. O
Behemoth traz a seguinte afirmação :
“Um Estado pode constranger à obediência, mas não convence ninguém de
erro, nem altera as mentes dos que acreditam possuir a melhor razão. A
supressão da doutrina não une mas exaspera, aumenta a malícia e o poder dos que
nela acreditam” ([25])
“Porque as palavras não são isentas de jurisdição?”. Hobbes une as falas sediciosas à atividade
rebelde, particularmente na análise da autoridade espiritual que tenta
controlar a soberania civil”. ([26]) Tais
falsos mestres são os agentes do “Reino das Trevas”, em contraste com a luz da verdadeira religião
e do entendimento. “Em particular, os pregadores sediciosos do Evangelho
interpretam a Escritura para provar, acima de tudo, que sua igreja é o reino de
Deus. Consequentemente, as pessoas que eles enganam obedecem tais mestres mais
do que aos soberanos civís.” ([27])
Além dos mentirosos pregadores que desejam impor a soberania
de seu grupo, seitas ou igrejas, sobre todos os demais cidadãos, Hobbes
refere-se no Leviatã às Histórias ou
Ficções das pessoas galantes. Este é um lugar comum da filosofia contra os
historiadores e os poetas. A condenação da mentira é velha como a filosofia, ou
ainda mais arcaica. ([28])
Se é preciso impedir a fraude, o truque, para conseguir a estrita obediência às
leis urge que o soberano impeça a difusão de mentiras, o refinamento na arte de
escrever com duplicidade. O Estado deve banir, com os mentirosos habituais, os
que trapaceiam no jogo político de maneira eficaz, pois eles modificam o
sentido das palavras e das frases. Proibidas as armas físicas, é preciso cuidar
das espirituais, começando com as exercidas na lingua.
A polissemia atropela a obediência,
enquanto a mentira é truque insidioso
que reintroduz a ferocidade recíproca.
Nos Elements of law os termos Sleight and strength são usados para
definir o estado de natureza no trato dos homens. A dupla de palavras apresenta
grande interesse na análise hobbesiana da existência antes que a multidão se
transformasse em Estado. ([29])
Os humanos, mesmo depois do pacto, enganam-se mutuamente com truques
hábeis de linguagem, no mesmo instante em que desobedecem a lei e tentam usar a
força física. ([30])
Como o pacto não é obedecido por todos os indivíduos, sendo motivo de queixa
contra os atos ilegais dos que, na república, são importantes e ricos, o
soberano é impelido a agir de acordo com a simulação, a dissimulação e a
mentira. Ele é presditigitador e mágico, mestre na arte de enganar, sobretudo
pelo raciocínio. Aproximemos a lente do panorama inaugural do Estado. Se na
gênese do Estado à multidão fosse permitida a licença de enganar por meio de
truques, jamais haveria segurança coletiva. E se fosse permitido aos indivíduos
os truques sofísticos no espaço público, permaneceria a insegurança. Mas se
fosse proibido ao soberano o uso das simulações e dissimulações, zonas inteiras
de poder seriam conhecidas pelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos
ambiciosos de vantagem própria, o que anularia as regras do pacto.
Surge o problema por excelência do pensamento filosófico e
político: o acesso à razão e a vitória sobre os engodos de outros Estados e dos
particulares. Hobbes conhece os textos de Seneca. A fama conduz aos atos
mais insensatos, pois exige a boca e os ouvidos da multidão que se deixa
enganar pelos demagogos. ([31])
No Leviatã e no De corpore, por ser restrita
à experiência a prudente sabedoria não possibilita a generalização cognitiva,
não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ([32])
Nos Elements of law a prudência dá
lugar à força que inibe as paixões desagregadoras dos particulares, força usada
pelo soberano autorizado no pacto. ([33])
A disciplina se apresenta como o eixo político no De cive : ad societatem homo
aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, ligada à razão de
Estado, aparece aqui e ali no De cive.
No mesmo livro Hobbes diz que os governantes conservam a astúcia e a força (sleight or force). Vimos que nos Element of law, sleight é palavra usada com
o vocábulo strength, para definir o estado de
natureza.
Quando afirma no De cive uma Reason of City
(Civitas, no latim), Hobbes guarda o sentido renascentista dado à
razão estatal, tendo como núcleo a prudência. Daí o apelo, notável no referido
volume, ao segredo e aos espiões. Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os
espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia) a prudência do soberano
traz segurança para a Civitas. Os
soberanos que usam sleight or force,
permanecem no estado de natureza e podem usar a força, a fraude, a mentira, a
espionagem, não precisam manter a palavra porque não existe nenhum pacto que
una os Estados, nenhum soberano que
imponha uma lei obrigatória para todos.
Se no âmbito mundial opera a razão de Estado em
guerra permanente, no plano interno a transferência do poder mortal não pode
deixar ambiguidade na lei, Nas relações de cidadão a cidadão a mentira ou
engodo deve ser reprimida. No Leviatã
quase desaparecem as antigas formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão
de Estado. Se esta última opera com force
and fraud, o uso de semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos
conduziria à ruina da república. ([34])
Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve
providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases,
e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos
fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e
exercício”. ([35])
Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência o povo é dissolvido por
“homens poderosos que digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um
poder para controlar suas afecções”. Os “eruditos também resistem ao poder que descubra seus
erros, e diminua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os poderosos, estão
cheios de ambição de poder e os letrados mergulham na ambição de autoridade,
porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e
fraudulentas, “as mentes do povo comum,
enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou
rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, apropriadas para
receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ([36])
E encontramos
novamente a fábula de Medéia : o desobediente deseja reformar a República, mas
a destrói “como as ensandecidas filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando
renovar a juventude do seu pai decrépito,
por conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o colocaram para ferver,
sempre com suas estranhas ervas, mas não fizeram dele um homem novo. Este
desejo de mudanças é como a desobediência do primeiro mandamento divino: porque
Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras
nações´., e em outro lugar , em relação aos reis, que eles são deuses”. ([37])
Quais “deuses” não podem
coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os poderosos, os letrados, as
cidades que pretendem possuir independência na República. “Os que pretendem agir
segundo a prudência política”, diz Hobbes, tendem a afirmar a “liberdade de
disputar o poder absoluto”. Estes são os poderosos e populares. “A menos que a
República (Commonwealth) tenha muito
penhor de sua fidelidade, eles são uma doença muito perigosa; porque o povo,
que poderia receber seu movimento da autoridade soberana, pela adulação (flattery) e pela reputação de um homem
ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis para seguir um homem cujas
virtudes e designios eles não conhecem. E isso é mais comumente perigoso num
governo popular do que na monarquia, porque um exército com possui maior força
e número pode facilmente fazer acreditar que eles são o povo. É assim que Julio
Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra o senado, tendo ele mesmo vencido
as facções de seu exercito, controlou o senado e o povo. E este modo de agir de
homens ambiciosos é rebelião clara, e pode ser comparada aos efeitos da
feitiçaria (witchcraft). Outra doença
da República é “a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela pode fornecer
para fora de seu próprio circuito o número e a despesa de um grande exército,
como também doentio pode ser o número de corporações, que nos intestinos da
república são como vermes nas entranhas de um homem natural. E devemos
acrescentar a liberdade de disputa contra o poder absoluto conduzida pelos
campeões da prudência política, os quais alimentados na maior parte na laia do
povo, e animados por doutrinas falsas, sempre dão palpites sobre as leis
fundamentais e molestam a república, como vermezinhos chamados ascarídeos pelos
médicos”. ([38])
Embora Hobbes acelere a secularização
do poder, é preciso sublinhar que de James I até o Leviatã um ponto permanece intocado, exasperando-se mesmo após a
Revolução Puritana : o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos
juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra,
sendo que no tempo de Bacon e de Hobbes Edward Coke defendeu a independência
dos juizes, contra a Igreja Anglicana e contra o rei James I. Ao replicar ao
rei que defendia suas prerrogativas contra “os advogados” Coke chegou a afirmar
que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James
I, mais do que ofendido, afirmou que se Coke tivesse razão, ele deveria estar
sob a lei, “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo
et lege”. O autor do Basilicon Doron e do tratado The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist aa Free King
and His Subjects, escrevera que “um bom rei enquadra todas as suas ações
segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar
exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e
morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei
clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo or seus
predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o
professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em
tudo independente do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser
julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”.
Na fala ao Parlamento de 1616, ele
proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois eles exercem um modo
de semelhança do Divino poder sobre a terra.
Porque se forem considerados os atributos de Deus, ve-se o quanto eles
concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou
desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a
ninguém prestar contas (to be accountable).
O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de
erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os
casos e só deve prestar contas a Deus (yet
accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas
pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores
com as peças de xadres”. Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da
Star Chamber: “não usurpem a
prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou
mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu
conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas
absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal
disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre
de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. Não
é por acaso que James I evocou Bracton para afiançar o seu poder. Mas dele fez
uma leitura unilateral ao acentuar o seu mando em trato com o ser divino. ([39])
Bracton ([40]),
em vez de garantir um poder sobrenatural absoluto do rei, recolhe o debate sobre as bases pelas quais
os dirigidos devem e podem obedecer aos reis e magistrados. Em seu tempo a
adesão à ordem legal imposta pelo governante e aprovada pela Igreja, era exigi
a imitação do Cristo. Essa foi a
maneira pela qual Bracton resolveu o problema do governante acima e abaixo da
lei. A solução evidentemente passou pela teologia, no processo analógico. A
Virgem é ao mesmo tempo mãe e filha de Deus (Nata nati, mater patris). No De
legibus et consuetudinibus Angliae Bracton então o ponto: “o poder do rei
refere-se à geração da lei e não à injúria. Como ele é auctor iuris, uma oportunidade para a iniuria não pode nascer no mesmo lugar onde nascem as leis”. ([41])
Gerador da Lei, o rei define-se como o seu intérprete maior. “O rei é filho da
lei, mas torna-se pai da lei” e sua legitimidade requer a base teológica. “O
rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e
seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”.
E mais: “o próprio rei
deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o
rei…Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei. Ele
deve estar sob a lei porque é vigário de Deus, o que fica evidente pela
similitude com Jesus Cristo em cujo nome ele governa sobre a terra”. Cristo,
embora Deus, pagou impostos a Cesar e colocou-se sob a lei enquanto homem. O
rei, como Jesus, é servus legis e dominus
regis. Mas ele só é vicarius Dei
quando fiel intérprete da lei, a ela submetendo-se como o Cristo. Aí ele pode
ser elevado acima da lei e se torna legislador (auctor iuris) mas de acordo com a lei. Se o círculo do rei como maior et minor se ipso se quebrar e se
desaparecer a interpretação correta da lei, o governante tomba na situação de
puro tirano. Em termos teológicos Bracton chega à solução : o rei é semelhante
a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta a lei. Ele é sob a lei
porque a ela se submete. O nexo entre rei e Deus prolonga o mandamento de que Nullum tempus currit contra regem (o
tempo não corre contra o rei), o que implica no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa possessão
gera o direito). Tudo o que se liga aos bona
publica é integrado no registro a-temporal e são res quasi sacrae. Na teologia jurídica os Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do
fisco). Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à
prescrição. O sacratissimus fiscus
torna-se alma do Estado. Como Cristo, Fiscus
ubique praesens.
Vimos acima
Jaime I afirmar o “mistério do Estado”. O segredo, no entanto, não pode ser
atribuído apenas à instituição estatal. Antigo na história —Simmel diz que ele
“é uma das maiores conquistas da humanidade” ([42])
— o sigilo atingiu pleno
sentido político na vida moderna. A sua prática passou das corporações aos
setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. Os momentos decisivos do
Estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela
religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre
quem reinava o principe.
No início do Estado moderno a legitimidade
do governante ainda reside no divino. ([43])
Mas a razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e assume a linguagem do interesse de Estado.
Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de
Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo manter
e expandir os bens públicos. ([44])
A nova razão de Estado incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar
onde não são admitidos os homens comuns. Aceito com reservas pela Igreja, o
segredo é a marca dominante do Estado laico. Se o secretário (a origem do termo
é marcada pela própria palavra do segredo) e o governante devem ocultar tudo o
que for possível aos que não têm acesso aos gabinetes eles, no entanto, devem
descobrir tudo o que estiver para além das fronteiras de seu Estado e na mente
e no coração dos dirigidos.
Do gabinete onde se oculta, o príncipe nota o que para a
maioria dos cidadãos passa desapercebido.
Este ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, é a
base histórica dos atuais serviços de informação. O
governante acumula segredos e deseja os súditos sejam exposto a uma luz perene.
Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na
aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não
existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não
mais fiat veritas et pereat mundus,
mas fiat mundus et pereat veritas. As
artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da
ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo
como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta
ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua
origem no verbo latino secernere, que
significa separar, apartar”. ([45] )
No mesmo período surgem
as guerras de religião ocasionadas pela Reforma. As revoltas alemãs e francêsas
(a barbárie da Noite de São Bartolomeu), atingem a Inglaterra. Para espanto do
clero e da aristocracia, as massas populares aprenderam a desobedecer as ordens
dos príncipes. A antiga imagem do povo se exaspera. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. ([46]) Pouco se analisou o
importante escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. ([47]) Devido às lutas
religiosas na Guiana, a corte envia o magistrado aos locais para analisar e
depois escrever um texto com sugestões políticas e jurídicas. É clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria
preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras
religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do
rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado
e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente deixando-se conduzir pelas iscas da
liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo.
Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a
obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa
regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de
que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se
atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim. Ele chega afinal à idéia de que não
existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão
de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às
leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e
prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e
a superstição da massa indiscreta”. ([48]) E arremata: “O povo não
tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom
julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar,
ele acredita em outrem. Ora, é comum que
a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais
persuadida pela autoridade de quem fala do que
pelas razões que se enuncia”.
Gabriel Naudé fala do
segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar
“dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta.
Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante,
louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia
popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas,
impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados,
supersticiosos”. ([49])
Assim, os teóricos da
soberania popular não conseguiram audiência nas cortes e parlamentos
aristocráticos. A universitas, communitas
ou corpus, o povo reunido com
majestade, toda essa constelação conceitual sofreu críticas desde os seus
momentos iniciais. De outro lado, os que defenderam personalidade jurídica para
o povo, tomaram cuidado para que a soberania popular não fosse absorvida pelos
representantes. ([50]) “Já no final do século
13 a doutrina filosófica do Estado definiu o axioma de que o fundamento
jurídico de todo governo reside na submissão voluntária e contratual das
comunidades governadas. E foi declarado que por um principio de direito natural
ao povo e apenas a ele, cabia colocar-se como chefe (…) do poder estatal.
Althusius afirma ser impossivel diminuir a soberania popular com base no contrato”.
([51]). O povo seria o summus magistratus.
É contra a massa popular que os
autores favoráveis à monarquia de direito divino se colocaram na Inglaterra do
século 17. As convulsões sociais e políticas que reuniram todos os prismas da
vida capitalista triunfante ergueram a força popular traduzida em facções, dos
Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Quando a
cabeça de Carlos I foi cortada, rompe-se o laço entre o corpo do Rei e a
divindade, toma novo sentido o princípio
da accountability, exigência que
segue a fé pública. John Milton expressa o princípio: “Se o rei ou magistrado
provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”.
Estas frases postas em The Tenure of
Kings and Magistrates ([52])
definem a nova legitimidade. O summus
magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.
Milton retoma os democratas inglêses.
Não por acaso tais enunciados foram recolhidos pelo inimigo da democracia no
período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” que tinham a pena de morte
como castigo. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que “ o poder supremo só pertence à Casa dos
Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do
povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos
parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e
realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos,
etc., são as suas meras criaturas que
devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu arbitrio; o povo pode
pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu
lugar” (eu sublinho, RR) ([53])
Thomas Edwards era um acadêmico de primeira plana e seus enunciados baseiam-se
em fontes (sobretudo delações) e documentos. Se consultarmos historiadores da
política inglêsa no período, confirma-se a veracidade dos enunciados atribuidos
por Edwards aos democratas. ([54])
As teses democráticas inglêsas
repercutiram pela Europa inteira a partir do período. As Luzes francêsas foram
uma imensa tradução para o continente do pensamento produzido na Inglaterra
desde o século 16 ([55]).
“Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro
legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis
impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra
própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve
ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (início da Constituição
norte-americana : We the People…RR) ([56])
e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se
ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo
de nosso povo, é justo que que o povo seja desligado do juramento de
fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o
caso exige; esta é a primeira lei de nosso código. Desgraça ao soberano que
despreza a lei, desgraça ao povo que suporta o desprezo em relação à lei”. ([57])
Robert Derathé
registra que essa tese, com fortes conseqüências na feitura das leis, não
existe nos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma
lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Como educar a
cidadania para que ela exerça o poder soberano, sem cair nas mãos dos
demagogos? Apenas depois de 1791, por
exemplo, Robespierre assumiu a soberania popular. No discurso Sobre a Constituição (10/05/1793) ele
toca a aporia ainda hoje irresolvida: "Dar ao governo a força necessária
para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de
tal modo que o governo nunca possa violar os mesmos direitos". O governo,
continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes
possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a
outra". Qualquer constituição deveria "defender a liberdade pública e
individual contra o próprio governo". A solidez de uma Constituição se
baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos
sagrados direitos do homem". Tangido pelas massas os jacobinos encaram o
problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O
governo revolucionário extrai legitimidade da "mais santa dentre as leis,
a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa
"anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas
coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder,
quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para
dirigí-lo". A mudança de "soberania popular" para
"ditadura" é clara. A última salva o povo. ([58])
E se os ditadores
usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o
ditador deve ser virtuoso. Na Convenção jacobina o governo, para
"instituir" a República torna-se "superior" à população.
Mas os
sans culotte, nas Assembléias
Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na demissão
sumária dos deputados ("mandatários"), juízes e demais servidores
públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara:
"considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus
mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os
nomes dos deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas
Assembléias primárias. A Assembléia Geral do "Marché-des-Innocents"
decide em 25 de agosto de 1792" que os deputados serão demissíveis por
vontade de seu Departamento, bem como "todos os funcionários
públicos".
Os enciclopedistas
e seus discípulos como Condorcet, tinham se preocupado com a formação
intelectual das massas populares, conditio
sine qua non da ordem democrática moderna. Democracia exige eleições. Mas
estas podem deseducar o povo e os escrutínios trazem respostas incertas ou
enganosas, perigo pressentido por Condorcet. Mesmo no Estado democrático “o
poder se imiscui na operação eleitoral e a influencia: ele deseja demais uma
´representação´ favorável. E três “imagens” são misturadas nas eleições : a real, se a palavra tem sentido, a normativa
ou potencial, porque se trata se conseguir uma direção no futuro, e a desejada
e querida, porque os manipuladores tendem a se perenisar nos cargos e tentam desregulamentar
os indicadores(…) os modos de escrutínio contam mais do que o resultado final,
pois ele depende deles”. ([59])
O rei, na
instauração do Estado, foi conduzido ao segredo. O soberano popular segue o
mesmo rumo quando sua prerrogativa se manifesta na hora do voto. Alí,
supostamente, reina o segredo. Todos conhecem a passagem de Montesquieu no Espírito das Leis, mas a cito: “A lei que fixa a maneira de
conceder os bilhetes dos sufrágios é ainda uma lei fundamental na democracia. É
uma grande questão se os votos devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve
que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da república foram uma
das grandes causas de sua queda (…) Sem dúvida, quando o povo vota, o voto deve
ser público e deve ser visto como lei fundamental da democracia. É preciso que
o povinho (´petit peuple´) seja esclarecido pelos principais e contido pela
gravidade de certos personagens”. ([60])
Rousseau comenta o segredo deseducador do voto. Nas antigas repúblicas
virtuosas “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma
opinião injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto
foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituido para conter os
compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de
não serem traidores”. ([61])
Condorcet foi contrário ao voto secreto. Mas seus motivos diferem dos
enunciados por Montesquieu e Rousseau. Ele é o autor de projetos de educação
popular e conhece os problemas matemáticos suscitados
nas eleições. Dos votos tudo pode sair, inclusive servidão. Ele mostra como o
voto simples (sim e não) traz o arbitrário quando se trata de decidir entre
diferentes programas ou pelo menos três candidatos. Este é o sentido do
“paradoxo de Condorcet”, atualização do “paradoxo de Bordas”. Com este escrutinio tem-se a maior probabilidade de
transformar a maioria em minoria, e vice versa. “É possível, se houver apenas
três candidatos, que um entre eles tenha mais votos do que os dois outros e
que, entretanto, um desses últimos, o que teve menor número de votos, seja
olhado pela pluralidade como superior a cada um dos seus concorrentes”. Após demorada análise matemática, ele enuncia
que numa eleição assim, o mais contestado pode ser eleito, enquanto o melhor,
na hipótese de um escrutínio plunominal,
eliminado. ([62])
O paradoxo de Condorcet é estudado ainda em nossos dias. ([63])
As multidões não
foram ensinadas ao voto segundo o cálculo das probabilidades. No Termidor, a
massa popular perdeu a soberania e foi substituida pelos proprietários,
seguindo a receita de Boissy d´Anglas em discurso de 5 Messidor, ano 3:
"Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só
podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade,
são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que
a conserva". Para o
termidoriano, a lei não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação.
Somem as exigências do povo, a accountability
e a destituição do governante. Com Napoleão e sua ditadura, imenso maquinismo
operado pelo segredo, foram dadas as condições para o fim da doutrina
sobre a soberania popular direta.
Chegamos ao período
do pensamento conservador, no qual o Brasil passa a representar uma entidade
estatal independe no planeta. Ele
recebeu muito alimento dessa época e tendência política em sua forma
jurídica. "A soberania de direito", afirma Donoso Cortés, "é una
e indivisível. Se ela é própria do homem, ela não pertence a Deus. Se
localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular é ateísmo e se
o ateísmo pode introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode
introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O soberano
possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque se houvesse um
só direito que não estivesse nele, não seria onipotente e, não o sendo, não
seria soberano. Pela mesma razão, todas as obrigações estão fora dele, porque,
se ele tivesse alguma obrigação a cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o que obedece. O
soberano tem direitos e o súdito, obrigações. O princípio da soberania popular
é ateu e tirânico, porque onde há um súdito que não possui direitos e um
soberano que não tem obrigações há tirania". ([64])
Donoso aponta o Leviatã como a
muralha contra a soberania popular. A soberania de direito divino conhecia
limites, "mas a definida por Hobbes nega toda limitação para si mesma.
Segundo ele, Deus não existe e o povo, desde o instante em que abre mão de seus
direitos, faz-se escravo. Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito
de resistência à opressão, mesmo a mais delirante e absurda" ([65])
As massas "carecem de unidade, de previsão, de concerto,
só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao redor de uma
bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a unidade conjuntural
formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona [...] Quando se extingue o
entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade para ser apenas um nome sonoro.
Na sociedade, então, só existem interesses que se combatem, princípios que
lutam entre si, ambições que se excluem e individualidades que se chocam".
([66]) O povo é fugaz e não garante a
soberania. Sem esta última não existe poder, desaparecem os vínculos sociais.
Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo do liberalismo e
das Luzes. "Em geral os
povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado.
Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um
poder perdido". Quem deseja pautar o poder através da Constituição é
fraco. "O governo das classes vencidas é o constitucional, o das
vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar.
Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto".
A soberania popular
é afastada também por De Bonald : "O direito do povo a governar a si
próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito
de ser governado" ([67]).
Edmund Burke enuncia o princípio de que o povo não é soberano porque o governo
difere de um problema aritmético. "Foi dito que 24 milhões devem
prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um
problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir
com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos,
fazem uma escolha ruim" ([68])
"Sendo o homem necessariamente associado e
necessariamente governado, sua vontade não
conta para nada no estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez
que os povos não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da
natureza humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não
sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade". Não
existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem soberano. Mas o
povo tem dívidas para com o soberano, "deve-lhe a existência social e
todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve ao povo um brilho ilusório
que nada possui em comum com a felicidade e que dela o exclui mesmo quase para
sempre". Inexiste soberania
limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou não. "Dirão alguns: a
soberania na `Inglaterra é limitada', Nada é mais falso. Apenas a realeza é
limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza não é toda a soberania, pelo
menos teoricamente. Quando os três poderes que, na Inglaterra, constituem a
soberania, concordam, o que podem eles? É preciso responder, com Blackstone:
TUDO. E o que se pode contra eles? NADA"
([69]).
"Desde 1848 a
doutrina do direito público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu
embaraço: ou funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o
`poder constituinte' do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de
legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua relevância
o fato de que um dos maiores representantes do pensamento decisionista e
filósofo do Estado católico, consciente de modo extremamente radical da
essência metafísica de toda política, Donoso Cortés, diante da revolução de 1848,
pudesse compreender que a época do realismo tive chegado ao fim. Não existe
mais realismo, porque o rei não existe mais. Sequer existe uma legitimidade em
sentido tradicional. Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo
resultado a que Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do
pensamento decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo
matemático. `Auctoritas, non veritas
facit legem'". ([70])
Schmitt
capta com lógica extrema a passagem da soberania no Estado, os princípios
teológicos com origem em Bracton, o seu esvaziamento nas doutrinas modernas e o
contra-ataque do pensamento conservador. Mas é preciso introduzir o Brasil
nessa longa história. Importa sublinhar o estraçalhamento da soberania do povo
e mesmo o regime da representação daquela soberania. Nos momentos de nossa
Independência as teses dominantes eram contrárias à soberania popular e, se
esta não fosse apresentada pelos “demagogos”, a sua versão atenuada, a
representativa. Surgimos no universo internacional enquanto pais livre,
batizados nas águas do conservadorismo contra-revolucionário.
A
historiografia conservadora notou no Brasil uma
invenção eficaz para afastar o perigo da soberania popular e mesmo da
representação política. A Revolução Francêsa tendo sido um episódio sangrento
de anarquia e ditadura, o poder que a sucedeu após o Termidor e que acabou nas
mãos do imperialismo napoleônico, seguiu de um ponto ao outro dos setores
estatais. Se a Assembléia foi tão exclusiva no processo revolucionário que
acabou instaurando uma ditadura “virtuosa”, o poder Executivo tornou-se um
centro ditatorial com o regime instaurado pelo Corso ordenando tudo
burocraticamente em escala hierárquica do alto à base do Estado. Entre os dois
poderes, o judiciário não consegue manter a sua independência. Urge resolver o
problema da harmonia entre os três poderes, antes enfeixados nas mãos do rei ou
do parlamento. Na gênese do Estado brasileiro imaginou-se resolver o conflito
e, ao mesmo tempo, as ameaças do que ocorreu nas revoluções inglêsa,
norte-americana, francêsa: a instituição do poder moderador cumpre esse papel.
Escutemos
o conservador Guizot: ([71])
“o mais simples bom senso reconhece que a soberania de direito, completa e
permanente, não pode pertencer a ninguém; que toda atribuição de soberania de
direito à uma força humana qualquer, é radicalmente falsa e perigosa. Donde a necessidade da limitação de todos os
poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas; daí a radical ilegitimidade
de todo poder absoluto qualquer que seja a sua origem, conquista, herança ou
eleição. Pode-se discutir os melhores meios de procurar o soberano de direito;
eles variam segundo os tempos e os lugares; mas em nenhum lugar, em nenhum
tempo, nenhum poder poderia ser o possuidor independente dessa soberania. Posto
esse princípio, não é menos certo que a realeza, em todos os sistemas que ela é
considerada, apresenta-se como a personificação do soberano de direito. Escutai
o sistema teocrático: ele vos dirá que os reis são a imagem de Deus na terra, o
que não quer dizer nada mais do eles personificam a justiça soberana, verdade,
bondade. Perguntai aos jurisconsultos: eles responderão que o rei é a lei viva;
o que significa ainda que o rei personifica o direito soberano, a lei justa,
que ele tem o direito de governar a sociedade. Interrogai a própria realeza no
sistema de monarquia pura: ela dirá que personifica o Estado, o interesse
geral. Em toda aliança ou situação considerada, ela sempre tem a pretensão de
representar, reproduzir o direito soberano, o único capaz de governar a
sociedade legitimamente. Nada nisso espanta. Quais são as marcas do soberano de
direito, as marcas de sua natureza própria? Para começar, ele é único; porque
só existe uma verdade, uma justiça, só existe um soberano de direito. Ele é o
mais permanente, sempre o mesmo: a verdade não muda. Posto numa situação
superior, estranha a todas as vicissitudes, a todas as possibilidades desse
mundo; eles está no mundo, de certo modo, apenas como espectador e como juiz :
este é o seu papel. Pois bem! Senhores, estas marcas racionais, naturais no
soberano de direito, a realiza as reproduz exteriormente na forma mais
sensível, que dela parece a mais fiel imagem. Abri o livro em que o Sr.
Benjamin Constante tão enegenhosamente representou a realeza como um poder
neutro, um poder moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e
que só intervem nas grandes crises. Esta não seria por assim dizer, a atitude
do soberano de direito no governo das coisas humanas ? É preciso que haja nesta
idéia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez
singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na constituição do
Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como poder moderador elevado
acima dos poderes ativos, com espectador e juiz”. [72]
A formulação
liberal do próprio Benjamin Constant procurava impor limites à soberania
popular, mas trazia também a preocupação de estabelecer os limites dos poderes
e garantir a sua harmoniosa relação. Neutro, o poder moderador seria o apanágio
da realeza ([73]),
os ministros seriam responsáveis pelo governo e os legisladores não seriam
pagos. O julgamento pelo juri seria a norma e haveria liberdade de imprensa.
Qual a base para a recusa da soberania popular? Ela é encontrada, em Constant,
no texto sobre a diferença da liberdade entre os povos antigos e
modernos. A primeira encontra-se na democracia direta assumida em
Atenas, cujos males eram a guerra perene e a escravidão como seu resultado.
Nada que já não esteja em Tucídides. A
segunda, encontra-se no comércio, “que inspira nos homens o amor pela
independência individual: atende as suas necessidades, satisfaz os seus
desejos, sem intervenção da autoridade”. Assim, o Estado deve ser contido em
limites quando se trata da vida econômica, pois “sempre que o governo tomar
conta dos nossos negócios, o fazem de modo pior e de maneira mais cara”. Não devemos nos colocar nos assuntos de
Estado, enquanto este último não deve se intrometer em nossos assuntos
particulares. A liberdade moderna reside “no gozo tranqüilo da independência
individual”. ([74])
Erra todo aquele
que desconhece limites para o exercício de qualquer poder. “Quando se
estabelece que a soberania popular é ilimitada, cria-se e se deixa ao acaso na
sociedade um gráu de poder muito amplo e que se torna um mal, não importa em
quais mãos esteja. Entregue-o a um, vários, todos, e o mal será o mesmo (…) a
soberania só existe num modo limitado. Onde começa a independência e a
existência individual começa, termina a jurisdição da soberania”. O mercado
liberta e a vida privada deve ser o refúgio do indivíduo. Pela via oposta
encontra-se em Constant o elogio hobbesiano do indivíduo limitado ao
particular, sem exteriozações de suas certezas no plano público. A soberania popular
entra no erro democrático: “A sociedade não pode exceder a sua competência sem
tornar-se usurpadora, a maioria não pode fazer o mesmo sem tornar-se facciosa”.
O Contrado Social representa “o mais
terrível instrumento auxiliar de todo tipo de despotismo”. Crime é crime, pouco
importa a fonte de poder alegada por quem o comete: indivíduo, partido, nação.
([75])
Toda a crítica de
Constant a Hobbes, no tocante à soberania, vem do termo “absoluto” : “ve-se
claramente que o caráter absoluto dado por Hobbes à soberania do povo, é a base
de todo seu sistema (…) a palavra ´absoluto´ desnatura toda a questão e nos
arrasta para uma nova série de consequências; é o ponto onde o escritor deixa o
caminho da verdade para seguir rumo ao sofisma ao fim que ele havia proposto a
si mesmo. (…) Com a palavra ´absoluto´ nem a liberdade (…) nem o repouso nem a
felicidade são possíveis em nenhuma instituição. O governo popular é apenas uma
tirania convulsiva, o governo monárquico apenas um despotismo concentrado”.
Face à tese da soberania
absoluta, pensa Constant, Rousseau foi tomado de terror diante daquele “poder
monstruoso, e não encontrou preservativo contra o perigo inseparável de uma
semelhante soberania, a não ser um expediente que tornava impossível o seu
exercício. Ele declarou que a soberania não pode ser alienada, delegada,
representada. Era declarar em outros termos que ela não pode ser exercida; era
anular de fato o princípio proclamado”. E criticando a idéia de “absoluto” na
soberania, mesmo popular, diz Constant : “O povo, segundo Rousseau, é soberano
num aspecto, súdito noutro. Mas na prática os dois aspectos se confundem. É
fácil para a autoridade oprimir o povo como súdito, para forçá-lo a manifestar como soberano a vontade que ela lhe prescreve”.
([76])
Encontra-se nesse
exato ponto a justificativa do Poder Moderador no pensamento de Benjamin
Constant. Trata-se de idear os limites dos três poderes, impedindo a
hipertrofia de um deles como ocorreu na ditadura napoleônica, em nome do
Executivo, e da ditadura jacobina, em nome do Legislativo. Ambos seguiram a
tendência ao absolutismo, o que, segundo Constant, é idêntido a despotismo sem
barreiras.
Voltemos ao momento
anterior ao de Constant, a gênese da Revolução Francêsa. Ela derrubou um
sistema de privilégios na condução do Estado, sistema que abarcava do rei à
noblesse de robe. Destruir todo esse edifício e substituí-lo por um poder
público distinto da situação social foi tarefa gigantesca. Pergunta: qual a
natureza do regime novo? No antigo, a administração dependia do rei. Só com o
tempo, mesmo curto, a legitimidade dos poderes passaram do rei aos
representantes eleitos. A burocracia do antigo regime, produzida em séculos de
controle do Estado pelo rei e seus funcionários, perdeu a hegemonia estratégica
em função do Legislativo eleito e, antes da república, do Conselhor Real. De
fato, ocorria uma forte tensão entre as duas fontes de legitimidade estatal. A
monarquia não pode mais definir-se como o depósito da soberania estatal,
combinando o legislativo, o executivo, o judiciário. A nação, pelo Legislativo,
faria as leis, a serem executadas pelo governo. Logo foi preciso estabelecer a
separação dos poderes, na Constituição. A Assembléia Nacional desejou manter a
monarquia, mas sem as prerrogativas antigas e sem que o clero e a nobreza
mantivessem os velhos privilégios (venalidade dos cargos, privilegios dos
nobres, justiça arbitrária, administração idem). Todos esses pontos são
sintetizados na separação dos poderes.
Na verdade, a Assembléia Nacional atenuou ao máximo os poderes que lhe
faziam sombra, na guerra, nas finanças, na justiça, etc. Os meios para esse
controle dependia da correta intelecção dos papéis e cargos. O de rei, pelo
menos até a proclamação da república, era claro. O de ministro, nem tanto. Daí
a restrição dos seus poderes e a instauração da responsabilidade perante o
Legislativo. Eles poderiam ser impedidos por iniciativa da Assembléia e
processados na Alta Corte especial. A mediação dessa Corte atrapalhou bastante
o controle dos ministros pelos deputados. A separação de poderes assim feita,
deixou os ministros sem legitimidade, porque eles não respondiam perante a
Assembléia. Como não podiam controlar com eficácia os ministros, os deputados
passaram a desconfiar de todo o ministério, produzindo um vazio na
administração. Surge uma burocracia nova, distinta da que operava no Executivo
e dependente do Legislativo. Com a ditadura, essas falhas pioraram e o Estado
não conseguiu manter o ritmo das mudanças na ordem política de legitimação. O
golpe de Estado que produziu a diatdura comissária não resolveu a luta entre os
poderes, com resultados desastrosos. ([77])
“Nunca deveis
esquecer, em toda posição que vos coloquem minha política e o interesse de meu
império, que vossos primeiros deveres são para comigo, os segundos para com a
França; todos os outros deveres, mesmo para com os povos que poderei vos
confiar, vêm depois”. ([78])
Ao dirigir-se desse modo ao sobrinho, filho de seu irmão Louis Bonaparte
destinado a ser o Grão Duque de Berg, o imperador retomou a tradição
absolutista cujo símbolo maior na França foi Luis XIV, com o dito “L´État c´est
moi”. Vimos a relevância do pensamento absolutista para a questão da soberania
e para a aplicação e leitura das leis. Sabemos que após Napoleão surgiram
Egocratas no Estado, especialmente no século XX, com o culto da personalidade
nos regimes nazista, stalinista, fascista. ([79])
Uma testemunha arguta do período napoleônico e do governo Imperial é Madame de Sataël, pessoa próxima
ao Antigo Regime, por seu pai, e ao liberalismo de Benjamin Constant. No
capítulo sobre as leis e a administração napoleônicas ela pergunta : “ é
possível falar de legislação num país onde a vontade de um só homem decidia
tudo; onde este homem, rápido e agitado com as ondas do mar durante a
tempestade, não podia sequer suportar a barreira de sua própria vontade, se lhe
opusessem a de ontem, quando ele desejava mudar o amanhã ?”. O arbitrio do
“grande homem” definia o plano político, econômico, jurídico e bélico da
França. Uma anedota contada pela autora é interessante. Um conselheiro disse a
Napoleão que não autoriza determinado ato, que beneficiava o ditador. “Ora
bem!” responde o Corso, “O Código Napoleão foi feito para a salvação do povo, e
se tal salvação exige outras medidas , é preciso tomá-las”.
Dois instrumentos
juridicos foram usados pelo poder imperial: leis e decretos. Leis eram emanadas
de um simulacro de legislativo, mas eram os decretos ditados pelo governante,
discutidos no seu Conselho, a ação efetiva da autoridade. Quanto aos tribunais,
o Código manteve o juri, definido pela Assembléia Constituinte. Mas os avanços
nos procedimentos eram compensados, em favor do regime, por cortes especiais,
comissões militares que julgavam delitos políticos, que resultavam em execuções
sumárias. E aqueles tribunais condenavam pessoas por acusações anônimas, não
raro sem relação direta com assuntos políticos. “Bonaparte não permitiu uma só
vez que um acusado recorresse de condenação por delito político à decisão do
juri”. Os poderes eram unidos, sob o comando do imperador : “era difícil
distinguir a legislação da administração (…) pois ambas dependiam da autoridade
suprema”.
O centralismo
garantiu o mando despótico : “Todas as autoridades locais, nas províncias,
foram gradativamente suprimidas ou anuladas”. O trabalho da polícia, com
delações e torturas, produziu um monstro que, finalmente, voltou-se contra os
partidários do imperador destronado. A ideologia do imperador, em relação aos
cidadãos particulares, era clara e distinta: eles deveriam, como exige Hobbes,
que eles fiquem no plano privado e “adquiram sempre mais dinheiro”. Enquanto
isto, os que mandam no Estado devem adquirir “sempre mais poder”. A ditadura
militar e burocrática imposta pela “alma do mundo”([80])
resume-se no dito do próprio imperador: Les Français sont des machines nerveuses.
Máquinas: servem como instrumentos ou partes de instrumentos para ampliar o
poder do Estado e de seus mestre. Nervosas: vivas como as forças naturais, numa
simbiose sempre desejada pelos que desconhecem limites entre técnica e
natureza. Napoleão toma como positivo o que, logo após, no romantismo, é
indicado como um pesadelo terrível, a partir de Mary Shelley e o Frankenstein.
Após essa passagem
pelo poder napolêonico fica bem clara a intenção de Benjamin Constant ao sugerir
o Poder Moderador como preventivo de tiranias. De um lado, ele limitaria as
formas soberanas ligadas ao povo, sobretudo o despotismo do Legislativo. De
outro, ele limitaria as pretensões do Executivo, garantindo o Judiciário. ([81])
Evidentemente, as críticas aos abusos de poder descem nas noites dos tempos. No
período absolutista, as denúncias contra tais abusos surgiram entre os
puritanos e seus herdeiros, na América ou na França. No caso de Benjamin
Constant, no entando, existem antecedentes no instante em que a Revolução
Francêsa e a ditadura do Legislativo chega à sua crise de morte. Como é o caso
de Sieyès, para quem “ os poderes ilimitados são um monstro em política (…) a
soberania do povo não é ilimitada”. ([82])
O termodoriano por excelência, Boissy d´Anglas, retoma a norma hobbesiana,
levando o cidadão particular ao plano estritamente produtivo, econômico, dele
afastando as tarefas de governo. Assim, não se pode arrancar à atividade
econômica “homens que melhor serviriam seu país pela atividade assídua em vez
de vãs declamações e debates superficiais”. ([83])
D´Anglas, na verdade, com o Termidor, seleciona “os melhores” para dirigir o
Estado, os “possuindo uma propriedade são apegados ao país que a contem, às
leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva”. ([84])
Benjamin não foi
termidoriano nem aceitaria in totum as teses
enunciadas por Boissy d´Anglas. Mas soube notar os excessos de poder de
um setor do Estado e procurou definir o controle dos três poderes por
intermédio do Poder Moderador, indicado como tarefa do rei. "Para que não
se abuse do poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder detenha o
poder”. O sistema das balanças, no seu pensamento, opera na estrutura do
Estado. O Legislativo seria bicameral, incluindo uma Casa dos Pares. Posteriormente ele divide o poder entre
Legislativo e Judiciário, composto de juízes inamovíveis de ofício. Ideou, para
corrigir a concentração do poder, o sistema de poderes e direitos
departamentais e dos municípios. O rei como "poder neutro” segue nessa
orientação geral.
No Brasil, a
concepção de Constant seguiu para um rumo inesperado. Vimos o elogio do uso da
idéia de Poder Moderador em nosso país por Guizot. Há um evidente desvio do
conceito na pena de Guizot no relativo ao conceito. Constant define aquele
poder como neutro, o que significa que ele serve para coordenar os três
poderes, sem neles interferir “do alto”. A mesma operação de hierarquizar
os quatro poderes foi seguida no Brasil com a Constituição de
1824. A tendência centralizadora do
poder real já fora iniciada em Portugal no século 18, com as reformas
pombalinas. “As concepções de poder político, sociedade e Estado são assim
formuladas em torno da noção de império civil, com fins de legitimar a
monarquia portuguesa e consubstanciar projetos de atuação política”. ([85])
Com as invasões
napoleônicas de 1808 e a vinda da Casa Real para o Brasil, compõe-se uma Corte
no Rio onde se integram a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais e
negociantes. No projeto idealizado, continua a noção de império português, com
sede no Brasil. A cidadania foi entendida nos parâmetros da antiga metrópole: o
“povo” era a aristocracia, os “homens bons” (ricos proprietários) sem sangue
judeu. A representação “popular” faz-se por petições, dando-se o direito de
voto sem que os cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública. Outro
projeto é mais radical, pois admite a presença cidadã na vida pública, define
autonomia para o Brasil. Nos dois projetos, cidadão é título que não cabe aos
escravos, evidentemente, nem aos homens livres e pobres (“gente ordinária de
veste”).
O debate sobre a
cidadania surge em 1821 na Assembléia do Rio de Janeiro, na eleição de
representantes provinciais para a Assembléia de Lisboa, para redigir a
Constituição portuguesa. O debate conduziu ao inesperado questionamento da
autoridade de João VI. Proposto um projeto de governo representativo, visto
pelos governantes como ligado “à força incontrolável da multidão”, sobretudo
num reino onde a enorma quantidade de escravos era perene ameaça (a revolta do
Haiti em 1810 era um presságio).
A imensa dimensão
do território brasileiro, as revoltas que se esboçavam, o exemplo dos países
visinhos que se tornaram republicas de tamanho inferior ao do Brasil, a memória
da Revolução Francêsa, as doutrinas de Benjamin Constant, todo esse amalgama de
idéias, medos, repressão, definiu o momento inaugural do Estado independente
que assumiu a forma de Império. Os que desejam um poder representativo e
constitucional conseguem em 1822 a convocação da Assembléia. Mas no país surge
dois projetos não sintonizados e conflitantes : o da monarquia soberana, de São
Paulo sob liderança de José Bonifácio e o de um governo constitucional (Rio de
Janeiro, liderado por José Clemente da Cunha). Quando Pedro I é aclamado, José
Clemente afirma o princípio da soberania popular enquanto Bonifácio enfatiza a
supremacia do Imperador.
Vence
provisoriamente o primeiro projeto, sendo o império civil instituido por
direito divino. Os defensores do segundo plano são perseguidos mas não deixam
de conseguir a consideração, nos trabalhos da Constituinte, de suas idéias.
Desse modo, o novo governo admitiria a liberdade política, mas sob a égide do
poder supremo, definido pela pessoa do imperador. Em 1823, José J. Carneiro de
Camposao discutir a sanção do soberano apresenta a idéia do Poder Moderador.
Exclusivo, aquele poder permite ao imperador controlar os demais poderes. A
Constituição de 1824 incorpora o quarto poder e o amplia, pois ele pode
dissolver a Câmara de Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. Tal poder foi
alegado sempre que se tratava, no parecer dos governantes, da Salvação do
Estado. No mesmo plano, é restrita a autonomia do judiciário. Desse modo, o
Poder Moderador torna-se supremo no Estado, acima dos três outros poderes.
A predominância do
poder moderador sobre os demais manteve-se durante o império, incluindo o tempo
de regência, quando o país passou por rebeliões sufocadas manu militari de Norte a
Sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanente supremacia do imperador,
tem-se como resultado uma difícil e quase improvável democratização do Estado.
O permanente estado de rebelião e as necessidades do poder central, definem o
império como excessivamente preso ao modelo de concentração de poderes, o que molesta
ainda em nossos dias o país, com o tipo de federação na qual os Estados possuem
realmente pouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal. ([86])
Com o fim do império, os positivistas tentaram acabar de vez com as forças
liberais, com o conceito de ditadura, que acentua e mantem a preponderância do
executivo sobre o Legislativo, concentrando o poder diretor numa única pessoa.
Falar em Legislativo, nesta doutrina, é impreciso e mesmo errôneo, visto que a
Assembléia teria função fiscal : aprovar o orçamento do Estado. ([87])
Em toda a república as prerrogativas do Poder Moderador foram incorporadas,
silenciosamente, à Presidência do país. Com elas, a permanente pretensão dos
ocupantes daquele cargo a assumir, como imperadores temporários, a preeminência
e a intervenção nos demais poderes. Esse ponto permite indicar que o Estado é
regido por força de pressupostos autoritários que, inclusive, produziram em
plano mundial algumas lições de moderno despotismo.
Não por acaso, Carl
Schmitt refere-se ao Poder Moderador brasileiro em O protetor da Constituição.
Alí, o jurista defende, como em outros trabalhos, que apenas o Reichspräsident
pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo
48 da Constituição de Weimar. ([88])
Ao fazer seu apelo aos poderes do Protetor da Constituição, Schmitt nega que o
judiciário pode exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e
age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas
institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichpräsident
poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Como é habitual, Schmitt
afasta o judiciário e, ao mesmo tempo, o próprio Legislativo naqueles transes.
Como diz Hans Kelsen, Schmitt reduz toda a Constituição de Weimar ao artigo 48.
([89])
Se, como diz Schmitt, “a
independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se
os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não
são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse
modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o
Protetor em seu poder excepcional. O estudo desse caso, importante na história
dos poderes soberanos e a conexão teórica entre o que se passou na Alemanha e
no Estado brasileiro pode resultar em esclarecimentos sobre o nosso centralismo
excessivo, a nossa quase inexistente federação, os excessivos poderes da
presidência do Brasil. ([90])
O Poder Moderador
antes da República era vitalicio e hereditário. Uma presidência imperial limitada
por quatro anos, sofre necessariamente a tentação de pressionar o Legislativo
para que este último faça ou aprove leis favoráveis ao programa e pretensões
presidenciais. De modo idêntico, as pressões sobre o judiciário para que
reconheça a legitimidade das mesmas leis.
Dificilmente o nosso Estado e a sociedade
entrariam na qualificação de formas democráticas. É preciso apurar, hoje, as
noções de democracia, federalismo, sociedade civil etc., se quisermos pensar o mundo brasileiro. O
nosso modo de unir os Estados tem pouco
de “federalismo” e muito de Império. Tomemos a indicação da jurista Anna Gamper
que analisa as formas federativas para apontar as fraturas no projeto da União
Européia : “Por unanimidade, as definições de federalismo reconhecem o fundamento
da palavra latina foedus que significa “pacto”. Todas as teorias concordam que
federalismo é um princípio que se aplica ao sistema que consiste em pelo menos
duas partes constituintes, não totalmente independetes que, juntas, formam o
sistema como um todo. O federalismo, pois, combina o princípio da unidade e da
diversidade (concordantia discors). As partes constituintes
devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível
federal.”.([91])
Da definição escolhida pela autora, tomemos a parte onde ela afirma a
exigência sine qua non que declara o seguinte : “as unidades
constituintes devem ter poderes próprios”. Desde a Independência, o Poder
Central brasileiro monopoliza todas as prerrogativas do Estado e não as
partilha com os demais entes, supostamente unidos hoje por laços de federação.
Se em nosso caso foedus significasse “pacto”, teríamos gráus crescentes de
autonomia, dos municípios ao Poder
Central.
Como o Império herdou as terras coloniais
portuguêsas, para ele o mais urgente era garantir as fronteiras do enorme país
e impedir a secessão das províncias. Nesse fito, a repressão militar foi a
tônica, o que se tornou dramático durante a Regência, quando várias unidades
levantaram-se em busca não de autonomia, mas de plena soberania. A história do
Brasil, desde aquela época até 1932 (Revolução Constitucionalista de São
Paulo), tem sido a cronica de um controle férreo das Províncias, depois
Estados, pelo Poder Central. É como se cada Estado, sobretudo os que se
levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Bahia, São Paulo,
para recordar apenas alguns deles) fosse submetido à invasão permanente dos que
dirigem o todo nacional. Resulta que a nossa “Federação” concede pouquíssima
autonomia aos Estados e Municípios, em todos os planos da vida política,
econômica, etc.
A partir de Brasilia, regras uniformes determinam
até os detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamente as diferenças
regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chui, há uma
uniformização gigantesca que obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo
longo da enorme burocracia federal, perdendo tempo precioso para o experimento
e modificações das políticas públicas em plano particularizado. Enquanto em
outras Federações, como o norte-americana (e apesar do grande centralismo
daquele país) vigoram leis diversas em termos penais, educacionais,
tecnológicos, etc., no Brasil a mão de ferro do Estado central controla,
dirige, pune e premia os Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes
temporários da Presidência. Nesse controle, as oligarquias regionais surgem
como operadores de face dupla : servem para trazer os planos do Poder Central
aos Estados e para levar ao mesmo Poder as aspirações de Estados e Municipios.
O lugar onde as negociações entre os dois níveis (Central e Estadual) ocorrem,
normalmente é o Congresso. Alí,
Presidência e Ministérios buscam
apoio aos seus planos, inclusive e sobretudo, de leis. É impossível conseguir
recursos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações” e nelas o modus
operandi identifica-se ao conhecido “é dando que se recebe”. Assim, os planos
federais de inclusão social e democratização societária patinam na enorme
generalidade do “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as
“providências” de uma burocracia pesada, incapaz de entender os vários ritmos e
formas de vida e pensamento regionais.
Nos impostos, a concentração irracional de
poderes deixa Estados e municípios
sempre à mingua de recursos. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas,
como no caso das exportações, não são repassadas às unidades ou não são
repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dos Ministérios Economicos.
Governadores e prefeitos são reduzidos à quase mendicância junto ao Poder
Central. Não ignoro as dificuldades gigantescas, se quisermos modificar esta
forma de relacionamento federativo em nosso país. Valho-me novamente da jurista
Anna Gomper : “A economia política do federalismo e o federalismo fiscal
tornaram-se um dos mais extensos e difíceis campos interdisciplinares da pesquisa dobre o federalismo, onde os
conceitos de asimetria, competição e co-operação desempenham papel importante. Também é o campo em que os níveis inferiores que não participam
do sistema, como os municípios, são admitidos excepcionalmente a entrar na
arena como ´partes terceiras’. As relações financeiras entre a unidade central
e as partes mais baixas e as terceiras partes são de suma importância para o
sistema como um todo. A estabilidade financeira e a igualização, bem como a cooperação
entre as partes da base são obrigatórias para um efetivo sistema federal. A
distribuição das competências não é completa se não existem regras que dividem
os poderes financeiros entre o poder central e as unidades constituintes. Se as
partes constituintes que precisam de recursos para financiar suas
responsabilidades as recebem sobretudo de subsídios que são a elas alocados
pela unidade central (e devem ser acompanhados por certas condições que
restringem seu poder de gasto) o arranjo fiscal parecerá um sistema de Estado
não federal e não tanto um Estado federal que pressupões teóricamente gráus de
autonomia financeira das partes constituintes, isto é, o poder de arrecadar
taxas e gastar orçamentos próprios”. É praticamente impossível chegar à democratização
da sociedade sem a efetiva federalização
do Brasil. Um dia antes da escolha de Aldo Rebelo para a presidência da
Câmara dos Deputados, assistimos a enésima caminhada de prefeitos do país
inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em
leis eleitorais e de estruturas municipais. Naquela tarde, como em muitas
outras ocasiões, os prefeitos foram tratado como estranhos no Parlamento
Federal, o que gerou um conflito só resolvido com o emprego da força física
pela segurança da Casa das Leis. Enquanto tal situação permanecer assim, a
fábrica das manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da
República) estará em pleno funcionamento.
Termino essa parte de
minhas considerações citando o longo mas relevante texto de um jurista que muito se preocupa com a forma
democrática e republicana do nosso país.
“A
Constituição dos Estados Unidos criou o regime presidencial; nós engendramos o
presidencialismo, que é a sua perversão máxima. Lá, o equilíbrio dos Poderes republicanos
funciona harmoniosamente, num engenhoso mecanismo de checks and balances que
faz inveja aos mais competentes relojoeiros. Aqui, a hipertrofia dos poderes
presidenciais gerou um monstro macrocefálico, cujos membros são todos
absorvidos pela cabeça. Para sermos justos, porém, é preciso reconhecer que
essa aberração institucional não surgiu com a república, pois ela já estava
presente e atuante durante todo o período imperial. O que se fez tão só, com a
derrubada da monarquia, foi uma adaptação semântica: passamos do império
autêntico ao presidencialismo imperial. Na obra clássica em que fez o
panegírico do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a
propósito de uma Circular de 7 de fevereiro de 1856, pela qual o velho Senador,
em sua qualidade de Ministro da Justiça, entendeu de ditar regras de julgamento
aos magistrados. "É o traço saliente do nosso sistema político",
escreveu Joaquim Nabuco, "essa onipotência do Executivo, de fato o Poder
único do regime". "Apesar de todo o antogonismo de muitas de suas
idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias individuais e
apesar da guerra que moveu à invasão francesa do contencioso administrativo,
(Nabuco pai) foi um dos fundadores da onipotência do governo, convertido em
última instância dos poderes públicos".
A
República acentuou a onipotência do Chefe do Poder Executivo, “ao cobri-la com
o manto da irresponsabilidade, que a Constituição de 1824 reservava ao
Imperador. (…) Atualmente, o Presidente da República não se limita a exercer um
poder absoluto no ramo executivo do Estado: ele é também legislador, e dos mais
prolíficos. O volume de medidas provisórias editadas e reeditadas, a maior
parte delas sem a menor relevância ou urgência, já ultrapassa largamente o número
de leis votadas pelo Congresso Nacional, desde a promulgação da Constituição.
Para a convalidação espúria desse abuso, concorreu decisivamente a mais alta
Corte de Justiça do País. Neste período crespuscular do Estado de Direito, o
Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é ´a guarda da Constituição´
(art. 102), tem transigido com todos os desvios, relevado todas as
arbitrariedades, admitido todas as prevaricações. A pá de cal na indispensável
independência do Supremo Tribunal Federal para custodiar a inviolabilidade da
Constituição foi lançada com a Emenda Constitucional nº 3, de 1993, instituindo
a "ação declaratória de constitucionalidade" (art. 102 - I, a). O judicial
control, sem sombra de dúvida a maior criação constitucional dos
norte-americanos, surgiu como instrumento de defesa dos direitos individuais
contra o mais nocivo dos abusos políticos, aquele que associa Legislativo e
Executivo na comum infringência da Constituição. No sistema presidencial de
governo, com efeito, a lei não é apenas o ato do Poder Legislativo: ela conta
também, necessariamente, com a aprovação do Executivo, que tem o poder de
vetá-la. Quando o Presidente da República sanciona uma lei inconstitucional,
ele se acumplicia com o legislador na violação da Carta Magna. Ora, a ação
declaratória de constitucionalidade´ veio subverter inteiramente os termos
dessa equação política. Ela não é uma defesa da cidadania contra o abuso
governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do Governo contra
as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos. É uma
espécie de bill de indenidade que o Judiciário outorga aos demais Poderes,
um nihil
obstat legitimador da ação governamental, antes que os cidadãos tenham
tempo de reclamar contra ela. Por isso mesmo, o processo dessa aberrante
demanda é sui generis: não há contraditório, porque não há lide. Em se tratando
de argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o
Procurador-Geral da República deve ser previamente ouvido, e o Advogado-Geral
da União defende o ato ou o texto impugnado (art. 103, §§ 1º e 3º). Mas no
processo da ação declaratória de constitucionalidade, os autores agem sem
contraditório: o Governo tem as mãos livres para demandar, sem que ninguém
defenda os interesses dos governados. Por força desse vicioso mecanismo, a
nossa Corte Suprema deixa de ser um tribunal, para se tornar um órgão oficial
de consulta. Troca a posição de guarda da Constituição pela de colaborador do
Governo”. ([92])
Termino
aqui. Para refletir sobre a independência dos juízes, iniciei o trabalho
acentuando o começo do Estado moderno com as teorias absolutistas, tanto
religiosas quanto laicas, tanto as de James I quanto as de Hobbes e
assemelhados. Alí, o juiz único é o soberano e os juízes são por ele controlados.
Legislador, Executor e Juiz, o soberano não pode aceitar nenhuma independência
dos tribunais inferiores. Esta diretiva foi questionada nas revoluções do
século 17 da Inglaterra e do século 18 na América do Norte e na França. Mas
sobretudo no último país a Revolução, ao desembocar na ditadura e no Terror,
permitiu o retorno do absolutismo com o poder imperial napoleônico. Não é
preciso recordar que nesses regimes o juiz não é independente, pelo contrário.
No Brasil, com a tentativa de impedir aqui os “excessos” do liberalismo e,
mesmo, da soberania popular, foi produzido um Estado dirigido no cimo por um
soberano que detinha o poder de intervir nos demais poderes, o que impedia a
autonomia do judiciário. Com a república, o centralismo e o papel eminente do Chefe
de Estado o conduz a exercer poderes imperiais, o que não raro atenua a
autonomia dos demais poderes, incluindo o judiciário. Como um juiz individual,
como a categoria dos juízes pode julgar de modo independente, se o Estado
brasileiro não pratica de fato a autonomia dos poderes e se o “imperador” que
sobrevive no cargo presidencial consegue,
nos tribunais supremos, decisões que atentam contra o magistrado comum?
Sei bem que medidas como o Conselho Nacional de Justiça é festejado entre os
juizes. Sei bem que a sumula vinculante possui forte apoio entre eles. Mas
pergunto como cidadão que estuda a burocracia no mundo e no Brasil : tais medidas constituem avanços sem óbices do
Estado rumo à democracia e ao direito, ou também traduzem aspirações da Presidência
da República na perene tentativa aplainar a sua via e se garantir, sempre mais,
como poder superior aos demais? O Conselho de Justiça não implica em nenhuma
ordem de negociação política passível de ser orientada pelos Executivos
estaduais (ligados a oligarquias e segmentos poderosos do mercado e da
política) e pelo Executivo nacional, cujos vínculos com o Parlamento ainda se
encontram no tristemente famoso “é dando que se recebe”? Não seria necessário
vigiar com constante cautela os processos de escolha dos que têm assento no
Conselho referido? Um tal Conselho pode ser de fato eficaz na democratização do
Judiciário se o Executiva continua a possuir hegemonia no Estado, com
pretensões sem limites? E afinal, o princípio da accountability, mesmo que imposto
ao judiciário, quem garante que ele será assumido pelo governo central? Em país
onde o segredo passa, muito facilmente, pela espionagem dos cidadãos e das
instituições e no qual as práticas do SNI ainda existem no cotidiano, como
praticar em um poder apenas a máxima transparência? E note-se que sou um
crítico do segredo em todos os setores da vida estatal. Se um poder se abre à
inspeção da cidadania, excelente. Mas e se o mais forte dos poderes, o que
detêm a chave dos cofres e as armas, a propaganda e a espionagem oficial, o que
enceta convênios com orgãos repressivos de todos os países, mantem uma política
de sigilo (inclusive em documentação histórica de épocas ditatorias, de tal
modo que é mais fácil ler os textos de nosso pretérito hediondo em Londres,
Paris ou nos EUA do que em nossos arquivos), é prudente abrir os procedimentos
do judiciário, sem cautelas? Lembremos que mesmo no absolutismo de Bacon os
juízes, embora sob o trono do rei, eram leões. A democratização sem maiores
cautelas não significaria arrancar as garras dos leões, encerrando a sua
domesticação iniciada no Império e na república, em especial nas ditaduras que
tomaram boa parte do século XX brasileiro? São questões que não julgo ociosas,
porque da resposta sobre a isonomia dos poderes reside a outra, sobre a
independência dos juízes.
Em
interessante livro sobre Carl Schmiit, um autor recente pergunta, em capítulo
estratégico para sua análise sobre o Presidente do Reich : “Guardião ou
Usurpador da Constituição?”. ([93])
Enquanto existirem no Executivo as pretensões de manter a Constituição sob sua
tutela, não teremos Estado de direito garantido entre nós. “O Estado de
direito é bem traduzido pela réplica
celebre do moleiro de Potsdam (…) Es gibt noch Richter in Berlin”. Nem
Frederico II conseguiu se opor ao direito de propriedade do moleiro, mesmo que
o seu moinho fosse barulhento e incomodasse o soberano no castelo de Sans souci. Isto é o
Estado de direito. E nada mais.” ([94])
Creio que o Estado de direito é algo mais, que me perdoe a parlamentar belga
que emitiu as considerações citadas.Mas deixemos a Belgica e olhemos nossa
pátria. Apesar de todas as pressões, os tribunais de base permitiram e permitem
que os cidadãos afirmem aos presidentes, a todos os presidentes da república,
“existem juízes no Brasil”. Esperemos que essa realidade se expanda para o
alto, de modo que possamos dizer, com o mesmo júbilo do cidadão germânico :
“Existem juízes em Brasilia”. Esta, por enquanto, é a única esperança de que os presidentes não
continuarão a usurpar a alma de nossa Carta Magna.
Roberto
Romano
[1] Wirtschaft
und Gesellschaft. Fünfte Revidierte Auflage. (Tübingen, J.C. B. Mohr,
1972), página 835. Cf. também a tradução inglêsa: Economy and Society, an outline
of Interpretative Sociology. Guenther Roth e Claus Wittich (Berkeley,
University of California Press, 1978), página 1402.
[2] Cf. Roberto
Romano: “Soberania, segredo,
Estado democrático”. Revista Política Externa, volume 13,
no 1, Junho/Julho/Agosto 2004. Página 15 até página 28. E também, do mesmo
autor, cf. “Reflexões sobre impostos e
Raison d´Etat”. Revista Economia Mackenzie, Ano 2, número 2, página 76 e
seguintes. O texto pode ser encontrado em forma eletrônica, com notas e
indicações bibliográficas no seguinte endereço : http://www.mackenzie.com.br/editoramackenzie/revistas/economia/eco2n2.htm
[3] Wirtschaft
und Gesellschaft, página 573. Cf. a tradução espanhola: Economia y Sociedad, Esbozo de sociologia
comprensiva. Winckelmann, Johannes e Echavarria, José Medina (Mexico,
FCE, 1969), T. II, página 745.
[4] Weber, Economia
y Sociedade, ed. cit. T II, página 749.
[5] Cf. Schmitt,
Carl : “O problema da legalidade”, resposta de Carl Schmitt ao Tribunal de
Nuremberg (13/05/1947) à pergunta : “Porque os Secretários de Estado seguiram
Hitler ?”. Uso a edição italiana : Le categorie del ´Politico` (Bologna,
Il Mulino, 1972), páginas 279-292. Eu sublinho.
[6] Cf. Fortier,
John, C. : Lions under the throne Francis Bacon´s Understanding of a Modern
Judicial Power. (Boston College, Department of Political Science, 2000), no site eletrônico Digital
Dissertations, http://wwwlib.umi.com/dissertation
[7] Todo esse
desenvolvimento é feito com base no texto acima citado de Fortier.
[8] Francis Bacon : Of judicature.
[9] Francis Bacon, “Of
Judicature” in The Moral and Historical
Works of Lord Bacon, including Essays, etc.. Joseph Devey
(Ed.), (London, George Bell & Sons, 1874), páginas 146 150. A última citação é de Santo Agostinho nas Confissões
(livro 12, cap. 18) : “Quibus omnibus auditis et consideratis, nolo verbis contendere; ad
nihil enim utile est nisi ad subversionem audientium. ad aedificationem autem
bona est lex, si quis ea legitime utatur, quia finis eius est caritas de corde
puro et conscientia bona et fide non ficta; et novit magister noster, in quibus
duobus praeceptis totam legem prophetasque suspenderit. quae mihi ardenter
confitenti, deus meus, lumen oculorum meorum in occulto, quid mihi obest, cum
diversa in his verbis intellegi possint, quae tamen vera sint? quid, inquam,
mihi obest, si aliud ego sensero, quam sensit alius eu senisse, qui scripsit?
omnes quidem, qui legimus, nitimur hoc indagare atque conprehendere, quod
voluit ille quem legimus, et cum eum veridicum credimus, nihil, quod falsum
esse vel novimus vel putamus, audemus eum existimare dixisse. dum ergo quisque
conatur id sentire in scripturis sanctis, quod in eis sensit ille qui scripsit,
quid mali est, si hoc sentiat, quod tu, lux omnium veridicarum mentium,
ostendis verum esse, etiamsi non hoc sensit ille, quem legit, cum et ille verum
nec tamen hoc senserit ?” Agostinho parte da Primeira
Epistola a Timóteo (1.4-9): “Como
te roguei, quando parti para a Macedônia, que ficasses em Éfeso, para
advertires a alguns que não ensinem outra doutrina, nem se dêem a fábulas ou a
genealogias intermináveis, que mais produzem questões do que edificação de
Deus, que consiste na fé; assim o faço
agora. Ora, o fim do mandamento é a caridade de um coração puro, e de uma
boa consciência, e de uma fé não fingida. Do que desviando-se alguns, se
entregaram a vãs contendas, querendo ser doutores da lei e não entendendo nem o
que dizem nem o que afirmam. Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela
usa legitimamente, sabendo isto: que a lei não é feita para o justo, mas para
os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e
malvados, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os
fornicadores, para os sodomitas, para os roubadores de homens, para os
mentirosos, para os perjuros e para o que for contrário à sã doutrina, conforme
o evangelho da glória do Deus bem-aventurado, que me foi confiado”.
[10] “Lei é o
mandamento daquela pessoa, homem ou assembléia, cujos preceitos exigem a
obediência” (De cive, XIV, 1).
[11] Hobbes, Leviatã,
Ed. Macpherson, página 312.
[12] Bacon citado por
Markku Peltonen: “Introduction” ao The Cambridge Companion to Bacon
(Cambridge, University Press, 1996), página 22.
[13] Cf. Markku
Peltonen: “Bacon´s political philosophy”, in The Cambridge Companion to Bacon,
ed. cit. páginas 283 e seguintes.
[14] Cf. Christopher
Hill : Intelectual Origins of the English Revolution (London, Panther
Books, 1972), página 98.
(6) Esse ponto é tratado de maneira oposta por Spinoza. Sendo a
força física um elemento do espaço e os juízos a modificação do pensamento e
sendo ambos, pensamento e força física, modos da substância infinita, Deus ou
Natureza, cada indivíduo possui em si mesmo a força e o pensamento que seguem
ao infinito. Não é possível arrancar deles a força e o juízo próprios. Algo só
pode ser movido por algo que apresenta as mesmas determinações modais. Um corpo
não pode ser movido ou forçado pelo pensamento. E um pensamento só pode ser
modificado por outro pensamento. Usar a força para impôr a soberania é um erro
ontológico e epistemológico, e violência
que não garante o Estado, visto que os indivíduos recebem o pensamento da
substância infinita divina. Pode-se tentar controlar os pensamentos, mas ele
não aceita os limites da força física e os limites da imaginação religiosa ou
política. Este é o sentido da frase spinozana quando o Eleitor Palatino
convidou o filósofo para dar aulas sem “perturbar a religião oficialmente
estabelecida”. Resposta clara: “Desconheço em quais limites minha
liberdade filosófica deveria ser contida para que eu não parecesse desejar a
perturbação da religião estabelecida”. (Carta a Fabritius, 30/03/1773). Cf.
Spinoza. Oeuvres complètes. (Paris, Gallimard, 1954), Coleção Pléiade,
página 1284.
[16] Sainte Beuve (Port-Royal)
diz que entre Hobbes e Pascal há mais proximidade do que se imagina. A questão
do jogo e do truque é analisada com a perspectiva do poder e da justiça por
Pascal, sendo continuado no século 18 por filósofos como Condorcet.
[17] De
cive, 12 in Gert, B. (Ed.) : Thomas Hobbes Man and Citizen
(Cambridge, Hackett, 1993, páginas
254-255. Esta crítica hobbesiana
em imagens é seguida no século 18 por Edmund Burke, um dos maiores escritores
contra-revolucionários que, nas Reflections on French Revolution indica
as filhas de Pelias de modo idêntico. “To
avoid, therefore, the evils of inconstancy and versatility, ten thousand times
worse than those of obstinacy and the blindest prejudice, we have consecrated
the state, that no man should approach to look into its defects or corruptions
but with due caution, that he should never dream of beginning its reformation
by its subversion, that he should approach to the faults of the state as to the
wounds of a father, with pious awe and trembling solicitude. By this wise
prejudice we are taught to look with horror on those children of their country
who are prompt rashly to hack that aged parent in pieces and put him into the
kettle of magicians, in hopes that by their poisonous weeds and wild
incantations they may regenerate the paternal constitution and renovate their
father's life”. O texto de Edmund Burke pode ser encontrado no seguinte lugar
da Internet : http://www.cpm.ll.ehime-u.ac.jp/AkamacHomePage/Akamac_E-text_Links/Burke.html
[18] Cf. The
Elements of Law Natural and Politic / by Thomas Hobbes Electronic Text
Center, University of Virginia Library.
[19] “Le précis de
cet ouvrage est que, sans la paix il n'y a point de sûreté dans un État, et que
la paix ne peut subsister sans le commandement, ni le commandement sans les
armes; et que les armes ne valent rien si elles ne sont mises entre les mains
d'une personne; et que la crainte des armes ne peut point porter à la paix ceux
qui sont poussés à se battre par un mal plus terrible que la mort, c'est-à-dire
par les dissensions sur des choses nécessaires au salut. Ejus autem summa haec fuit, sine Pace impossibilem esse incolumitatem,
sine Imperio Pacem, sine Armis Imperium, sine opibus in unam manum collatis
nihil valere Arma, neque metu Armorum quicquam ad pacem profici posse in illis,
quos ad pugnandum concitat malum morte magis formidandum; nempe dum consensum
non sit de iis rebus, quae ad salutem aeternam necessariae creduntur, pacem
inter cives, non posse esse diuturnam”. Pierre Bayle, Artigo “Hobbes” do Dictionnaire Historique et
Critique. 4e édition, Tome Second (C-I). Amsterdam et Leyde 1730
[20] Thomas
Hobbes Leben und Lehre (Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971), páginas
272-273.
[21] Cf. El
Asalto a la Razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta
Hitler. (Barcelona, Grijalbo, 1968), páginas 480-481.
[22] Cf. Yves Charles
Zarka: “Langage et pouvoir” in Hobbes et la pensée politique moderne.(Paris,
PUF, 1995), página 63.
[23] Hobbes, Thomas :
The
Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the
Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
[24] Citado por Michèle Aquien e Georges Molinié : Dictionnaire
de rhétorique et de poétique (Paris, Librairie Générale Française, 1996,
páginas 93.
[25] Thomas Hobbes, Behemoth; or,
the Long Parliament (1682), ed. Ferdinand Tönnies (London: Simpkin,
Marshall, and Co., 1889; reprint ed., Chicago: University of Chicago Press,
1990), página p. 62.
[26] Leviathan,
ed. C.B. Macpherson, Cap. 43, pp. 609-61. Cf. Simon Kow, “Hobbes’s Critique of
Miltonian Independency” in Animus,
A Philosophical Journal for our Time
(http://www.swgc.mun.ca/animus/current/kow.htm).
Kow cita o Leviatã :
“there have been in all times in the Church of Christ, false Teachers,
that seek reputation with the people, by phantasticall and false doctrines; and
by such reputation (as is the nature of Ambition),
to govern them for their private benefit.”
[27] Cf. Mark Whitaker, “Hobbes’s View of the Reformation,” History of Political Thought 9 (1988):
49 pp. 54-55; Stephen Holmes, “Political Psychology in Hobbes’s Behemoth,” in Thomas Hobbes and Political Theory, ed. Mary G. Dietz (Lawrence:
University of Kansas Press, 1990), pp. 128-130. Segundo Kow, “The
Political turmoil for Hobbes was in part a result of the misuse of language and
the consequent disjunction between things and their proper signification”.
[28] Pierre
Vidal-Naquet: “De Platon, du mensonge et
de l'idéologie”, in Les assassins de la
mémoire (Paris, Points Seuil, 1995).
[29] “In this estate of man therefore, wherein all men are
equal, and every man allowed to be his own judge, the fears they have one of
another are equal, and every man's hopes consist in his own sleight and
strength; and consequently when any man by his natural passion, is provoked to
break these laws of nature, there is no security in any other man of his own
defence but anticipation. And for this cause, every man's right (howsoever he
be inclined to peace) of doing whatsoever seemeth good in his own eyes,
remaineth with him still, as the necessary means of his preservation. And
therefore till there be security amongst men for the. keeping of the law of
nature one towards another, men are still in the estate of war, and nothing is
unlawful to any man that tendeth to his own safety or commodity; and this
safety and commodity consisteth in the mutual aid and help of one another,
whereby also followeth the mutual fear of one another. "2":
2. It is a proverbial saying, inter arma silent leges”. Elements of law, I, XIX, 1-2.
[30] O Cambridge
Advanced Learner´s Dictionary apresenta as seguintes explicações para sleight : “sleight of hand: speed and
skill of the hand when performing tricks: Most
of these conjuring tricks depend on sleight of hand.” E também “skilful hiding of the truth in order
to gain an advantage: By some statistical
sleight of hand the government have produced figures showing that unemployment
has recently fallen.” As duas
definições entram perfeitamente no que afirmamos sobre a razão de Estado, um
jogo desonesto vencido por truques e por embustes.
[31] Numa
bibliografia imensa, cito apenas o texto de Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, (Paris, PUF, 1963). Os interessados
poderão pesquisar o tema junto aos especialistas em Aristóteles.
[32] Cf. Gianfranco
Borrelli: Ragion di Stato e Leviatano. Conservazione e Scambio alle origini della
modernità politica. (Bologna, Il Mulino, 1993), páginas 230 e
seguintes.
[33] “Pois vendo que
as vontades da maioria dos homens são governadas apenas pelo medo, e que onde
não existe poder coercitivo não existe medo; as vontades da maioria dos homens
seguiriam suas paixões ambiciosas de prazer, avidez e semelhantes, para quebrar
os seus pactos, quem desejasse guardá-las, seriam postos em liberdade, sem
outra lei senão a que sai deles mesmos”. Elements
of law, Parte II, Cap. 1. “Of
the Requisites to the Constitution of a Commonwealth”.
[34] “Every sovereign ought to cause justice to be taught, which,
consisting in taking from no man what is his, is as much as to say, to cause
men to be taught not to deprive their neighbours, by violence or fraud, of
anything which by the sovereign authority is theirs”. Leviatã, cap. 30 : “Of
the office of the sovereign representative”.
[35] O mesmo cap. 30,
na edição Macpherson, página 377.
[36] Página 379.
[37] Ed. Macpherson,
página 380. Quem segue a tradução
brasileira da Ed. Martin Claret, preste atenção porque esta última frase (and
in another place concerning Kings, that they are Gods) falta alí. Citação do Salmo 81, 6 : Ego
dixi : Dii estis, et filii Excelsi omnes. Na Biblia do Rei James I : “I
have said, ye are Gods”. A frase hobbesiana radicaliza o Rei James I no
seu livro On divine right of Kings (capítulo 20) : “The state of monarchy is the supremest thing upon earth; for kings
are not only God's lieutenants upon earth, and sit upon God's throne, but even
by God himself are called gods. There be three principal similitudes that
illustrate the state of monarchy: one taken out of the word of God; and the two
other out of the grounds of policy and philosophy. In the Scriptures kings are
called gods, and so their power after a certain relation compared to the divine
power. Kings are also compared to fathers of families: for a king is truly Parens patriae, the politique father of
his people. And lastly, kings are compared to the head of this microcosm of the
body of man. Kings are justly called gods, for that they exercise a manner or
resemblance of divine power upon earth: for if you will consider the attributes
to God, you shall see how they agree in the person of a king. God hath power to
create or destrov make or unmake at his pleasure, to give life or send death,
to judge all and to be judged nor accountable to none; to raise low things and
to make high things low at his pleasure, and to God are both souls and body
due. And the like power have kings: they make and unmake their subjects, thev
have power of raising and casting down, of life and of death, judges over all
their subjects and in all causes and yet accountable to none but God only. . .
I conclude then this point touching the power of kings with this axiom of
divinity, That as to dispute what God may do is blasphemy....so is it sedition
in subjects to dispute what a king may do in the height of his power. But just
kings will ever be willing to declare what they will do, if they will not incur
the curse of God. I will not be content that my power be disputed upon; but I
shall ever be willing to make the reason appear of all my doings, and rule my
actions according to my laws. . . I would wish you to be careful to avoid three
things in the matter of grievances: First, that you do not meddle with the main
points of government; that is my craft . . . to meddle with that were to lesson
me . . . I must not be taught my office.Secondly, I would not have you meddle
with such ancient rights of mine as I have received from my predecessors” . Os
interessados podem ler o livro de James I,
(Basilikon Doron) onde
são dados os argumentos sobre a proximidade entre Deus e o Rei. A versão do
livro está no endereço: http://www.jesus-is-lord.com/kjdivine.htm . Em James I e Hobbes, a sequência do Salmo é
“esquecida”: “ but ye shall die like men, and fall like one of the princes”.
Cf. Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia (SP, Perspectiva, 2001) páginas 338-339. “Quem recomenda que a lei deve governar parece recomendar que só
Deus e a razão devem governar, mas ele também deveria acrescentar que se um
homem governa, soma-se um animal também; porque o apetite é como um animal
selvagem e a paixão deturpa o governo do melhor homem. Logo, a lei é razão sem
desejo = ho men oun ton nomon keleuôn archein dokei keleuein archein ton theon kai ton noun monous, ho d' anthrôpon keleuôn prostithêsi kai thêrion: hê te gar epithumia toiouton, kai ho thumos archontas diastrephei kai tous aristous andras. dioper aneu orexeôs nous ho nomos estin”. Aristóteles, Politica, 3. 1287a, Site Perseus.
[38] Cf. Jonathan I.
Israel: Radical Enlightenment. Philosophy and the making of Modernity,
1650-1750 (New York, Oxford University Press, 2001), página 258 e
seguintes.
[39] Cf. Gooch, G.P.
: Political
Thought in England, from Bacon to Halifax (Londo, University Press,
1946), páginas 2 a 45.
[40] Bracton no
século 13 viveu na aurora da Carta
Magna. As suas Laws and Customs of England (1240 –
1260) constituem uma enciclopédia juridica fundamental para o conhecimento do
direito inglês.
[41] Citado por Ernst
Kantorowicks, The King´s two bodies (Princeton, New Jersey, 1970) p. 155.
Este passo de minhas análises baseia-se naquele autor.
[42] Georg Simmel,
“The sociology of secrecy and of secret societies”, in American Journal of
Sociology, V. 11, 4, janeiro 1906. Citado por
Wolfgang Kaiser . «Pratiques du secret à l'époque moderne». Rives, 17-2004, Pratiques du secret,
XVe-XVIIe siècles.no seguinte endereço:
http://rives.revues.org/document102.html. Este
site traz excelente análises sobre o problema do segredo. Cf. também
Jean-Pierre Chrétien Goni, “Institutio arcanae”, p. 169 e ss. Cf. também
Sarubbi, Antonio e Pasqualina Scudieri : I teorici della ragion di stato. Mito
e realtà. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane. 2000.
[43] Ainda em 1604,
nos Discours
Chrestiens de la Divinité, Creation, Redemption et Octaves du Sainct Sacrement,
Charron afirma que o título de honra
proximo à Divindade é o de rei. Ele
distingue entre a “adoração” alta, a que se volta em direção ao divino,
e a baixa, deirigida ao rei. Cf. Borreli, G. Ragion di Stato e Leviatano.
Bologna, Il Mulino Ed., 1993, p. 62, nota 74.
[44] Giovanni Botero,
La
ragion di Stato. Roma, Donzelli Ed., 1997, pp. 22 e ss.
[45] Cf. Jean-Pierre
Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique:
Le
pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 137.
[46] Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude
volontaire. Paris, Payot, 1976.
Há uma edição em português, publicada pela Ed. Brasiliense.
[47] Cf. “Une oeuvre
inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por
Paul Bonnefon. In Revue d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917.
Paris. Librairie Armand Colin, 1917.
[48] La Boétie,
Etienne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
[49] Considerações
Políticas sobre os golpes de Estado (1639) Citado por Jean-Pierre
Chrétien Goni, op. cit. p. 141.
[50] Cf. Otto Gierke:
Natural
Law and the theory of society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press,
1960, p. 48. Para este passo, é importante consultar o livro de Gierke sobre
Althusius : Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen
Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo
storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della
sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti.
[51] Gierke,
Althusius….ed. cit. pp. 81-83.
[52] “… if the King or Magistrate prov´d
unfaithfull to his trust, the people would be disingag´d”.Um governo (Milton
cita Aristóteles) “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of
all to be endur´d by free born men” Cf. John Milton Selected Prose edited by
C.A. Patrides. Harmondsworth, Penguin, 1974, pp. 249ss.
[53] Thomas Edwards :
Grangraena,
Terceira Parte (1646). Edição fotostática editada pela The Rota Ed. e
Universidade de Exeter. 1977, p. 16.
[54] Cf. sobretudo
Christopher Hill: Intellectual Origins of the
English Revolution.London, Granada Publishing Ltd. 1965. Também
Christopher Hill (Ed.) The Levellers and the English Revolution.
Manchester, C, Nichollls & Company, 1961.
[55] Cf. Olivier
Lutaud: Des Révolutions d´Angleterre à la Révolution Française. Le Tyrannicide
& Killing no Murder (Cromwell,
Athalie, Bonaparte). La Haye, Martinus Nijhoff, 1973. Do mesmo autor cf. Les
Deux Révolutions d´Angleterre. Documents politiques, sociaux, religieux.
Paris, Aubier, 1978.
[56] Diderot, Observações sobre o Projeto
de Constituição que lhe foi apresentado por Catarina 2 da Rússia
Lembrança trazida por Laurent Versini, na edição que dirigiu das Oeuvres
de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1995) T. III, p. 507.
[57] Cf. Diderot,
Denis : “Observations sur l ´Instruction de l ´Impératrice de Russie aux
Députés pour la Confection des Lois”, in Oeuvres de Diderot, Ed. Versini
citada, T. III, p.507.
[58] Robespierre, Relatório de 25/12/1793 à Convenção, em nome do
Comitê de Salvação Pública. Esta análise pode ser lida com maiores detalhes no meu
livro O Caldeirão de Medéia. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001.
[59] Dagognet,
François : Philosophie de l ´image. Paris, Vrin, 1984, pp. 186 e ss.
[60] Cf. Esprit
des Lois. Livro II, capitulo II,
Paris, Gallimard (Pléiade), 1951, p243.
[61] Contrat
social, Livro IV, capítulo IV. In Oeuvres complètes, Paris,
L´Intégrale, 1971, T. 2, p.570.
[62] Cf. Dagognet, op. cit. pp. 192 e ss.
[63]O paradoxo exposto no Essai
sur l'application de l'analyse à la probabilité des décisions rendues à la
pluralité des voix reapareceu na Europa e sobretudo nos EUA nos últimos
tempos. Na Europa, após o trauma alemão que permitiu eleger um partido
absolutamente contrário à democracia e ao Estado de direito, possibilitando uma
das piores aventuras totalitárias, sempre em nome do Povo. E nos EUA, o
paradoxo de Condorcet é discutido com paixão depois das últimas eleições
presidenciais. Barry Nalebuff : “The Last May Be First; In a Three-Way Race, It's
Tough to Figure Out the Will of the People” . The Washington Post,
21/06/02, Barry Nalebuff é professor na Yale's School of Organization and
Management. O artigo encontra-se no endereço eletrônico seguinte http://mayet.som.yale.edu/coopetition/news/WpostJun92perot(53).html
O trabalho mais conciso e explicativo deste problema foi escrito por Eric
Maskin, Is Majority Rule the Best Election Method? Alí, o autor segue
os passos de Condorcet e os aplica às eleições norte-americanas das quais saiu
vencedor G.W. Bush. Cf. http://216.239.37.104/search?q=cache:k8ETA7Cy4UJ:www.sss.ias.edu/papers/papereleven.pdf+Condorcet+paradox+bush&hl=pt
[64] Donoso Cortés,
numa lição de direito político (29 de novembro, 1836).
[69] De Maistre, J.: Du
Pape. (Genève, Droz, 1966) páginas 122-137, maiúsculas do
próprio De Maistre.
[71]
François-Pierre-Guillaume Guizot : Cours d'histoire moderne. Histoire générale
de la civilisation en Europe, depuis la chute de l'empire romain jusqu'à la
révolution française, 9e Leçon - 13 juin 1828. Electronic
Library of Historiography : no seguinte endereço eletrônico: http://www.eliohs.unifi.it/testi/800/guizot/guizot_lez9.htm
[72] François-Pierre-Guillaume
Guizot: Cours d'histoire moderne. Histoire générale de la civilisation en
Europe, depuis la chute de l'empire romain jusqu'à la révolution française
9e Leçon - 13 juin 1828.
[73] “The liberal,
like the doctrinaire, thesis, rejected the doctrine of popular sovereignty as
held by Rousseau, on the ground that no individual or body of men could lay
claim to sovereignty that had not been delegated. For Benjamin Constant
supremacy lay in the "volonté" générale", which did not,
however, imply power for the masses. It was equally dangerous to put
sovereignty uncontrolled into the hands of many as into the hands of one, it
must be limited by the division of power. Authority must not reside in one
branch of government any more than in another, and royal power should be a
"pouvoir neutre" whose function it is to set in harmonious motion the
machinery of the other powers. Faguet calls Constant “egalitaire sans être
démocrate"; his is one of the best definitions of the rôle of the constitutional
king that has ever been made”. Nora E. Hudson: Ultra-Royalism and the French
Restoration (The University Press, 1936), página 26.
[74] Cf. Benjamin
Constant: “Principes de politique
applicables à tous les Gouvernements représentatifs et particulièrement à la
constitution actuelle de la France”. Capitulo 1, in Cours de Politique
Constitutionelle ou collection des ouvrages publiés sur le gouvernement
représentatif (Paris, Guillaumin et Cie. 1872), páginas 7 e
seguintes.
Atitude semelhante a de Constant
foi assumida por Schelling, antigo entusiasta da Revolução Francêsa convertido
em conservador. Por exemplo : “Colocar-se interiormente acima do Estado, apenas
assim cada um pode e deve manifestar sua independência que, bem compreendida,
torna-se a independência de todo um povo e se torna mais poderosa contra a
opressão do que o idolo tão louvado de uma constituição que, mesmo em seu país
de origem, tornou-se, em mais de um aspecto, uma fable convenue (em francês no
original). Não invejeis a Constituição inglêsa, porque ela saiu não de um
contrato, mas da repressão e da violência e, graças a tal origem, tem
acréscimos de não-razão, ausência de razão (no sentido liberal da palavra) que
lhe deu até hoje a sua duração e estabilidade. Também não invejeis as massas
inglêsas, numerosas e grosseiras….”. À semelhante advertência Schelling
acrescenta: “Restai um povo a-politico, pois a maioria dentre vós aspira mais
ser governada do que governar, por causa dos lazeres que disso retira os quais
deixam a alma e o intelecto disponíveis para outras coisas, uma felicidade
maior do que recomeçar todos os anos querelas políticas, discórdias que só
resultam em permitir aos mais incapazes ganhar fama e adquirir importância.”
Cf. Schelling : Introdução à Filosofia
da Mitologia. Uso a tradução francêsa : Introduction a la Philosophie de la
Mythologie (Vingt-Troisième Leçon). (Paris, Aubier, 1946), páginas
332-333.
[76] Constant,
“Principes de politique….”. ed. cit. (eu sublinho, RR).
[77] Para toda essa discussão,
Cf. Howard G. Brown : War,
Revolution, and the Bureaucratic State: Politics and Army Administration in
France, 1791-1799.( Oxford University Press, 1995).
[78] Napoleão, Journal Moniteur, juillet 1810.
Citado por Madame de Staël: Considérations sur la Révolution Française.
Godechot, J. (Ed.) : (Paris, Tallandier, 1983), página 420.
[79] Seja permitido que eu cite um
comentário correto sobre o nosso tema e sobre o professor Claude Lefort, que
orientou há muitos anos atrás o meu doutoramento na École des Hautes Études: “Qu'est-ce
que le totalitarisme sinon, au terme des analyses de Claude Lefort, la volonté
de conjurer l'indétermination démocratique ? De la démocratie, le totalitarisme
retiendra la souveraineté du Peuple-Un, mais voudra lui donner figure : ce sera
le parti, unique ; des divisions sociales, il voudra triompher en reconduisant
la société au pouvoir unique, fusionnant l'un et l'autre, abolissant la
division fondamentale entre la société civile et l'État ; la légitimité, la
certitude seront puisées sans conteste possible dans la nouvelle instance de
savoir suprême qu'est devenu le secrétaire général du parti unique. Le monarque
absolu d'Ancien Régime affirmait «
L'État, c'est moi » ; le secrétaire général, en régime totalitaire, se
contente de proclamer : « La société,
c'est moi ». Le totalitarisme n'est donc plus, un absolu du Mal, une figure
métaphysique du politique, il est une maladie historique des démocraties,
lorsque celles-ci, inquiètes, fatiguées de leur indétermination fondatrice, se
laissent tenter par la volonté d'occuper le lieu vide du pouvoir, d'affirmer
des certitudes sur la légitimité, de donner corps à l'unité sociale. Le
totalitarisme se fonde alors sur le refus du droit de l'individu, sur
l'éradication des droits de l'homme, croyant ainsi boucler la boucle qui vit
surgir l'invention démocratique”. O livro de Lefort analisado é Un
homme en Trop. Réflexions sur l´Archipel du Goulag (Paris, Seuil,
1976). O texto citado acima que o analisa,
sem assinatura, está posto no site ADPF-Publications, do Ministério das
Relações Exteriores da França: http://www.adpf.asso.fr/
[80] Em 13
outubro de 1806, Napolão entrou na cidade de Iena. «Vi, escreveu Hegel, o
Imperador, esta alma do mundo (…) É uma sensação maravilhosa, ver um tal homem
que, concentrado num ponto, sobre seu cavalo, se estende sobre o mundo e o
domina”.
[81]
Ateoria do poder
moderador neutro tem sido estudada bom bastante insistência nos últimos anos,
na França e demais países. Cf. L. Jaume
(Org.), Coppet, creuset de l’esprit libéral (Paris, Economica et Presses
Universitaires d’Aix-Marseille 2000). . Thomaz DINIZ GUEDES “Le pouvoir neutre et le
pouvoir modérateur dans la Constitution brésilienne de 1824” in Benjamin Constant en
l'an 2000 : nouveaux regards. Actes du Colloque des 7 et 8 mai 1999, organisé à
l'occasion du vingtième anniversaire de l'Institut et de l'Association Benjamin
Constant.
[82]Seção do 3 Germinal, Ano III,
citado por Patrice Rolland (Professor da Universidade Paris XII), no artigo “La
garantie des Droits” in Droits fondamentaux, n. 3, décembre
2003, página 183.
[83] Referido por Patrice
Rolland, op. cit. página 195.
[84] Citado por Alain Badiou,
“Qu´est-ce qu ´un thermidorien?”, in Kintzler, Catherine e Rizk, Hadi (Ed.) : La
République et la Terreur (Paris, Kimé, 1995), página 56.
[85] Cf. Eduardo Romero de
Oliveira, “A Idéia de império e a fundação da monarquia constitucional no
Brasil2 (Portugal-Brasil, 1772-1824). Anais do XVII Encontro Regional de História,
ANPUH/SP/UNICAMP (2004). CD-rom. Esta última parte segue integralmente as
indicações e análises deste texto.
[86] Em Homens Livres na Ordem
Escravocrata (São Paulo, Unesp Ed., 1997, 5a edição), Maria Sylvia
Carvalho Franco analisa com rigor a gênese do Estado brasileiro e as suas conexões
com a sociedade na qual imperam o favor e a violência face a face. A autora
explora a passagem do público ao privado e a superconcentração dos impostos no
poder central, o que leva Municipios e Estados à perene condição de
inadimplentes junto ao núcleo do poder federativo e junto aos contribuintes.
Cf. especialmente os capítulos “Patrimônio Estatal e Propriedade Privada” e “As
peias do passado”. Analiso esses pontos no texto “A democracia e a Ética”,
incluido em O Caldeirão de Medéia (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001)
páginas 363 e seguintes.
[87] Cf. Ivan Lins: História do Positivismo no
Brasil
(São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1964), página 330. Cf. também Roberto
Romano: Brasil, Igreja contra Estado (São Paulo, Kayrós, 1979).
[88] Recordemos o artigo : "Caso a segurança e a ordem públicas
forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no
Reich alemão, o presidente do Reich debe tomar as medidas necessárias para
restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças
armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos
fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114,
115, 117, 118, 123, 124, and 153." Não por acaso disse Carl Schmitt
que "nenhuma Constituição sobre a
terra legalizou com tamanha facilidade um golpe de Estado quanto a constituição
de Weimar”.
[89] Kelsen, H.: “Wer soll der
Hüter der Verfassung sein?” Die Justiz 6, 1930-1931. Citado por
John P. Mccormick : Carl Schmitt´s Critique of Liberalism. Against Politic as Technology (Cambridge
University Press, 1997), página 144.
[90] Para os estudos feitos sobre
Carl Schmitt no Brasil, cito apenas, dentre outros, Marcos Augusto Maliska,
“Acerca da legitimidade do controle da constitucionalidade”, Revista
Critica Juridica 18, março de 2001, Separata de artigo. Um livro
importante para a análise filosófica e que expõe o pensamento de Schmitt com
muio rigor Cf. Porto Macedo Ronaldo Junior : Carl Schmitt e a fundamentação do
direito (São Paulo, Max Limonad, 2001).
[91] “A Global
Theory of Federalism: The Nature and Challenges of a Federal State” in German
Law Journal No. 10, 01/10/ 2005.
[92]
Fabio Konder Comparato,
“Réquiem para uma Constituição”, no endereço eletrônico http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/comparato/comparato_requiem.html
[93] MacCormick, op. cit. página
141.
[94] Anne-Sylvie Mouzon, Parlamento
da Região de Bruxelas-Capital, Bulletin des interpellations et des
questions orales Reunião de 28 de abril de 2005.