Goulart, memória e esquecimento
janeiro 6th, 2012 § Deixe um comentário
Terminei de ler o monumental (713 páginas) João Goulart – Uma biografia,
de Jorge Ferreira (RJ: Civilização Brasileira, 2011). O livro é
fantástico: completo, cobre todo o período de vida adulta de Jango,
desde seus primeiros contatos com Getulio, por meio do pai, fazendeiro
em São Borja. Jango tinha então 17 anos, e já havia se destacado como
estancieiro, tendo rapidamente desenvolvido um pequeno dote paterno. Com
16 anos, dispunha de avião próprio. Eis o relato do primeiro encontro
de Jango com Getulio, o que certamente contribuiu para a carreira
política futura do jovem aprendiz:
“Em 1934, Getulio Vargas foi a São Borja. Vicente [o pai de Jango],
com o objetivo de homenagear o presidente, mas antes de tudo o vizinho e
amigo, ofereceu-lhe um churrasco. Em certo momento, Jango, com apenas
17 anos, tomou a palavra e fez um discurso enaltecendo o governo e a
figura do presidente. Vargas, surpreso com a fala do jovem, perguntou a
Vicente: ‘Quem é este guri?’ O velho estancieiro respondeu que se
tratava de seu filho: ‘Chama-se João, mas aqui na fronteira todo mundo
só o chama de Jango’. A seguir, o pai chamou-o para cumprimentar
Getulio. Tomado pela timidez, Goulart, olhando para o chão, limitou-se a
estender a mão para o presidente, sem nada dizer. Vargas, afável,
disse-lhe: ‘Tu vais ser político, Jango? Pois devias. Tu falas bem’.
(Ferreira, p. 39).
O pai respondeu que o filho seria estancieiro. De certo modo, era
assim que o próprio Jango se via, até mesmo nos momentos mais difíceis
de sua presidência, trinta anos depois. Além disso, sentia-se bem na
companhia do povo, sinceramente, sem afetação, dizendo preferir um
churrasco na companhia de gente simples do que banquetes.
Teve rápida ascensão na política gaúcha. Contribuiu para a fundação e
consolidação do PTB, então autêntico partido trabalhista. Tinha
temperamento conciliador, embora não hesitasse em ser mais duro com
adversários ou rivais políticos. Nessa época, aproximou-se de Leonel
Brizola, engenheiro bastante politizado e aguerrido, tornando-se seu
cunhado, por meio do casamento de Brizola com Neusa, sua irmã. Ao longo
dos anos, desenvolveram uma parceria, não isenta de rupturas. Chegaram a
ficar quase dez anos afastados, após o golpe militar de1964. O
radicalismo de Brizola não poupou o presidente na hora que mais precisou
de apoio, embora, é preciso lembrar, a atuação do cunhado tenha sido
decisiva para garantir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio
Quadros, em 1961.
O que vale destacar é que o livro de Jorge Ferreira, apesar de seu
tamanho, constitui uma síntese da bibliografia antiga e recente sobre o
tema, e permite reavaliar não só o personagem histórico de João Goulart,
como todo o período envolvido, desde o suicídio de Vargas, em 1954, até
a morte de Jango, em 1976, passando pelo duro período pré e pós-1964.
No que concerne aos acontecimentos que desembocaram em março de 1964,
Ferreira julga que o radicalismo de direita e esquerda conspirou para a
supressão da democracia, embora, é claro, a responsabilidade maior deva
ser atribuída aos militares que desfecharam o golpe e os políticos e
empresários que o apoiaram, sem esquecer da imprensa. O clima era de
radicalização, e haveria um desfecho, para a direita ou para a esquerda.
O caráter moderado de Jango ficou à mercê dessas forças. Assim resume o
autor: “O estilo Jango já não surtia efeito, parecia estar
ultrapassado. No confronto entre esquerda e direita, o regime
liberal-democrático entrou em colapso” (Ferreira, p. 687).
O livro também ajuda a desfazer mitos. Um deles, ainda propalado, é o
de que Jango teria sido assassinado. Embora houvesse planos,
efetivamente, de eliminar as principais lideranças políticas do período
pré-golpe, em operação desencadeada no bojo da Operação Condor, que
envolvia militares e para-militares de várias ditaduras da região
(Argentina, Brasil, Uruguai, principalmente), não parece ter sido o caso
de Jango. Em relação a Lacerda – sim, apesar de não ser um político de
esquerda, estava na mira dos militares, devido à sua influência, e à
chamada Frente Ampla, que envolvia Jango, Juscelino e Lacerda – e
Juscelino, as suspeitas são fortes nesse sentido. Jango, porém, já
sofria de problemas cardíacos desde muito antes (em 1962, desmaiou
durante visita ao México), bebia, fumava, estava deprimido com o exílio e
mal conseguia subir uma rampa, no período final). Houve um preso comum,
Mário Barreiro Neira, que afirmou estar envolvido em conspiração para
troca de medicamentos e envenenamento do ex-presidente, mas nada foi
provado. Eis a conclusão de Ferreira a esse respeito:
“Não nos faltam testemunhos de pessoas e comprovações médicas de que
Jango era cardiopata, sofria de hipertensão arterial e tinha um estilo
de vida bastante prejudicial à saúde. Com todo esse histórico, ele ainda
adotou a agressiva dieta proteica [Dr. Atkins] meses antes de morrer.
Todas as evidências, portanto, conduzem à tese de que Jango morreu de
infarto agudo do miocárdio. Pode-se, no entanto, fazer tal afirmação com
absoluta precisão? Não, porque não houve autópsia.” (Id., p. 673).
O autor também rebate as críticas que foram feitas ao governo de
Goulart, nos anos 60, de um suposto populismo, “burguês” ou
“pequeno-burguês”, de caráter conciliador etc. Houve sim, em sua
opinião, um projeto reformista e nacionalista sério, o qual, se levado a
cabo, transformaria efetivamente o país em potência, projeto que foi
sabotado pelos dois lados extremos do espectro político, à direita e à
esquerda. Uns, porque não desejavam mudanças, e foram apoiados nisso
pelos Estados Unidos, outros, porque consideravam as mudanças
insuficientes. De um modo ou de outro, não é possível repetir a
história, a não ser como farsa. O que se pode fazer é estudar o período,
e nele, a grande figura que foi João Goulart, a fim de aprender algumas
lições que nos sirvam para o presente e para o futuro.
Luiz Paulo Rouanet