CIENCIA PARA JUSTIÇA E EQÜIDADE*
Roberto Romano**
* Apresentado na Mesa Redonda Ciência para Justiça e Eqüidade, em 3/10/01,VII Congresso Paulista de Saúde Pública.
* Apresentado na Mesa Redonda Ciência para Justiça e Eqüidade, em 3/10/01,VII Congresso Paulista de Saúde Pública.
** Professor de Filosofia na UNICAMP.
RESUMO: Ao atribuir que a ética seja pressuposto da justiça e da ciência o autor inicia o texto reconstruindo o conceito de ética desde o pensamento grego até a Idade Moderna, quando se estabeleceram os princípios, hoje predominantes, da racionalidade, objetividade, experimentação e método. Coloca, então a questão de como isto se apresenta nos dias de hoje ao cidadão brasileiro e propõe que os limites entre a ciência e a justiça só podem ser estabelecidos e resolvidos num campo mais amplo, cuja expressão é o Estado democrático de direito.
PALAVRAS-CHAVE: eqüidade, ética, estado de direito, democracia, ciência
Foi-me solicitada uma reflexão sobre eqüidade e ciência. O tema é vasto em demasia e não pode ser abarcado em poucos minutos. Justiça e ciência constituem palavras e práticas polissêmicas, abrindo a mente para realidades distintas, pressupostos e instrumentos os mais diversos. O núcleo de ambos os termos encontra-se no que chamamos ética.
Inicio com rápidas considerações ao redor da ética. Em nosso tempo, em especial no Brasil, existe grande confusão entre o campo ético e o moral. Esta falta de clareza conduz a situações complexas e sem saída nos debates acadêmicos e públicos. Há na fala cotidiana e mesmo na política, para não nos referirmos aos debates jurídicos, uma passagem ambígua e pouco justificada entre a ética e a moral. O mais comum é se imaginar que a primeira possui caráter imperativo, como se ela reunisse uma tábua de valores e normas a serem aplicadas aos casos particulares surgidos nos laboratórios, na administração universitária e nos institutos de pesquisa, sobretudo no que diz respeito ao trato com os
sujeitos humanos. Dá-se também à moral um estatuto rígido, como se ela estivesse vinculada aos campos mais restritivos dos juízos comportamentais.
sujeitos humanos. Dá-se também à moral um estatuto rígido, como se ela estivesse vinculada aos campos mais restritivos dos juízos comportamentais.
Na filosofia grega a ética integra a doutrina geral da virtude, sendo que tal noção, a chamada "areté", constitui um fato coletivo. A ética reúne num só lance as práticas hoje distantes, mas na época grega conexas, da economia (o correto uso dos recursos dos lares e a adequada gestão dos meios e riquezas comuns à família, pois a raiz "oikos" recolhe o sentido mais geral e mais antigo do vocábulo), da política (definindo-se esta prática como um prolongamento da economia, pois agora trata-se de bem ordenar a riqueza e a pobreza da cidade/Estado, levando-se em conta tudo o que se relaciona, neste âmbito, com os negócios da "polis"). Finalmente, temos a retórica, o modo pelo qual devem os cidadãos dirigirem suas falas à assembléia na defesa de pontos de vista estratégicos, quando se tratava da guerra, interesses grupais ou jurídicos.
Se a economia e a política precisavam ser pensadas em campos fixos, a retórica, tem o privilégio da instabilidade. A palavra que origina o termo retórica, "rhein", indica o que flui e não encontra obstáculos fixos à sua operação. Se a riqueza econômica e o bem público só podem ser tratados dentro de limites fixos, pois são a substância estável, permanente, a "ousia" do coletivo, a palavra dos cidadãos, instável e polimorfa, não recebe limites na assembléia ou tribunais. Ser livre, na Grécia, é possuir o direito de falar sem obstáculos físicos ou anímicos. Uma virtude política por excelência é a "parrhesia", a fala sem amarras, só concedida aos cidadãos livres. Quem, na polis, tinha o costume de tratar as coisas públicas, adquiria as referidas "virtudes", sendo nelas treinado desde o final da infância. Agir segundo os padrões definidos pela cidade, nas assembléias guerreiras ou pacíficas, ou nos tribunais, tornava-se algo "natural", feito sem maior esforço da mente ou da vontade, algo automático. Esta forma coletiva de agir, adquirida e operada sem reflexões se definia como hexis, o hábito, o costume, donde surge a palavra "ética". A política, a economia, a retórica, estes prismas da vida grega, reunidos sob o vocábulo "hexis", existiam como realidade visível. Nada podia ser escondido dos olhos cidadãos. Os atos virtuosos eram praticados nas praças públicas, nos campos de treinamento e nas guerras.
O exemplo visível possibilita a imitação, a "mimesis", dos atos e falas livres. Aprender a cidadania é treino do olhar e dos gestos, que devem repetir o modelo, o paradigma proposto para ser obedecido e seguido. "Paradigma" surge no campo da lingua grega unido a "deiknumi", cujo sentido é "mostrar", "indicar". Quando acrescido da partícula "para", significa "mostrar, fornecer um modelo". A raiz "deik", refere-se ao ato de mostrar mediante a palavra, mostrar o que deve ser seguido. Daí na noção de paradigma ser estratégica a união com a palavra "dike", a lei, a regra. A idéia da publicidade da lei, ainda hoje imperante em nossa vida política, surge daí. A lei, o modelo ou paradigma era esculpida em caracteres grandes e posta diante do olhar de todos, para que ninguém a ignorasse. A cultura grega se exerce essencialmente como exercício do olhar. Donde as palavras que até hoje guardamos de "teoria", visto que "theorein" contemplar a natureza, a physis. A ética entre os gregos não se contrapunha à moral. Não tinha sentido falar-se em uma consciência moral oposta à ética, ao modo de ser coletivo.
O primeiro grande abalo do bloco ético, que operava na visibilidade tanto na política quanto no pensamento, do qual temos notícia, e que nos marca até hoje, foi o caso de Sócrates, que desejou ter razão contra a ética da cidade. Ele foi julgado e condenado por isto e inaugurou a longa linhagem dos que sustentaram a autonomia do indivíduo diante do coletivo. Sócrates pode ser dito o pai da moral. A fonte de valores e o paradigma, migram da visibilidade, do público, para a consciência invisível dos sujeitos. Esta tendência se exacerbou no século 18, com Rousseau e I. Kant. Basta lembrar as derradeiras frases da Crítica da Razão Prática: "duas coisas enchem meu coração de respeito. O céu estrelado diante de mim, e a lei moral em mim". O céu estrelado, a visível pesquisa empreendida por Newton. A lei moral em mim, a invisível e sublime experiência dos valores, exposta por Rousseau. O céu estrelado, a ciência que opera com fenômenos, o que vem à luz. A lei moral, algo que só eu posso atingir, no meu íntimo.
No pensamento moderno o termo "ética" foi marcado pela filosofia alemã, a que mais influenciou, com as categorias geradas pelas Luzes francesas, o mundo do pensamento sobre o agir político e moral após o século 18. Na filosofia alemã, a torsão socrática, a quebra entre ética e moral, se estabelece de modo constrangedor. A ética foi atenuada ao máximo, em proveito da moral. Como reação a esta hegemonia da moral, o pensamento do século 20 acentuou desmesuradamente o ético, o coletivo e visível. O pensamento germânico entende a ética, coerente com as raízes gregas, como o conjunto dos costumes visivelmente adquiridos ou ensinados aos grupos sociais e aos indivíduos. Ética, no dizer de Otto Põggeler, é a linha das condutas que se tornaram hábitos assumidos. Mas a "moral", por força do pensamento de Imanuel Kant, passou a designar, no século 18, o campo invisível da consciência inacessível dos indivíduos, os valores diferentes dos enunciados científicos. Kant analisa a ciência na Critica da Razão Pura, pensando-a como algo que interessa a todo ser humano pensante, independente dos valores religiosos, estéticos ou políticos dos sujeitos. A ciência pressupõe visibilidade: quando penso no tempo e no espaço e reúno, sintéticamente, os elementos empíricos na sua diversidade, eu os meço, os experimento, faço isto diante dos outros cientistas, no limite, diante de todo ser humano capaz de reflexão. Um enunciado científico deve ser mostrado, verificado, controlado pela reunião dos pesquisadores. Se permanece invisível à comunidade científica, ele pode até ser verdadeiro, mas não é objetivo. Esta noção de objetividade une-se à do instrumento, tanto enquanto método, novum organum, como maquinismo exterior de correção e ampliação do visível. Desde o século 16, com a Renascença, os procedimentos ao redor do método se beneficiaram de uma saudável desconfiança no olhar empírico e no olhar enquanto pura teoria.
No século de Kant surge nova representação do espaço, conferindo ao espectador "uma liberdade que
antes não era pensável. Este como que se liberta do seu lugar no espaço e pode agora jogar com ele, colocando-se em todos os lugares, adotando as perspectivas e pontos de vista que lhe aprouver (...) A óptica moderna autonomiza-se face à visão enquanto tal e passa a conceber-se como ciência objetiva da luz, a qual encontra na geometria a linguagem adequada e segura. Esta ruptura da solidariedade entre a visão e o visível invoca a distinção entre o fenômeno da consciência e a sua causa exterior, correlata, no plano óptico, da distinção (...) entre sujeito e objeto" do saber. (Leonel Ribeiro dos Santos. Metáforas da Razão, ou Economia Poética do pensar kantiano, página 510). Os olhos humanos não mais servem, desde a renascença, como paradigma imediato do verdadeiro. Instrumentos ópticos ampliam a própria visão, corrigindo-a. Já Francis Bacon louva as "próteses ópticas", o telescópio, o microscópio, instrumentos destinados a corrigir a vista, refinando-a e ampliando seu alcance para os infinitos. Ciência, pois, é trazer à luz do intelecto o que se esconde no interior da natureza, seja ela o âmbito das estrelas ou figuras genéticas. Pensamos pesando, medindo, trazendo para a língua axiomatizada os dados empíricos. Mas sempre tratamos com o que pode ser evidenciado para todos os seres humanos pensantes.
antes não era pensável. Este como que se liberta do seu lugar no espaço e pode agora jogar com ele, colocando-se em todos os lugares, adotando as perspectivas e pontos de vista que lhe aprouver (...) A óptica moderna autonomiza-se face à visão enquanto tal e passa a conceber-se como ciência objetiva da luz, a qual encontra na geometria a linguagem adequada e segura. Esta ruptura da solidariedade entre a visão e o visível invoca a distinção entre o fenômeno da consciência e a sua causa exterior, correlata, no plano óptico, da distinção (...) entre sujeito e objeto" do saber. (Leonel Ribeiro dos Santos. Metáforas da Razão, ou Economia Poética do pensar kantiano, página 510). Os olhos humanos não mais servem, desde a renascença, como paradigma imediato do verdadeiro. Instrumentos ópticos ampliam a própria visão, corrigindo-a. Já Francis Bacon louva as "próteses ópticas", o telescópio, o microscópio, instrumentos destinados a corrigir a vista, refinando-a e ampliando seu alcance para os infinitos. Ciência, pois, é trazer à luz do intelecto o que se esconde no interior da natureza, seja ela o âmbito das estrelas ou figuras genéticas. Pensamos pesando, medindo, trazendo para a língua axiomatizada os dados empíricos. Mas sempre tratamos com o que pode ser evidenciado para todos os seres humanos pensantes.
O ideal de objetividade une-se ao de visibilidade, através dos instrumentos, definindo o que pode conceitualizável. A ciência se faz com o que vem à luz, pois fenômeno deriva de "phos". A ciência opera, ela mesma, da maneira como os gregos entendiam a própria ética, de modo visível. Não por acaso a Crítica da Razão Pura, pensa a si mesma como 'teoria", o campo do olhar, em contraposição à Razão Prática, onde a vista é inadequada. Kant cita, no frontispicio da Razão Pura o enunciado de Francis Bacon: na ciência, "falamos sobre as coisas, calamos sobre nós mesmos". Na moral, falamos de nosso agir, não nos escondemos atrás das coisas. Se a moral residisse no plano científico, a visibilidade, ela seria presa de outras determinações da ciência. Após o controle dos experimentos, o juízo da comunidade científica anui que um fenômeno é "necessário". Se o moral fosse necessário, a liberdade seria palavra vazia. Ele não possui o caráter de fenômeno, não é visível, não pode ser controlado por experimentos, não é objetivo, pois reside na invisível consciência dos sujeitos. Ali tem-se o mundo do "noúmeno" (do grego "Nous", pensamento ou razão) e jamais do fenômeno.
A ciência desconhece o moral para se estabelecer. Não existe um "fenômeno moral" que devesse fazer, experimentalmente e nos laboratórios, com que todos os sujeitos anuíssem com a sua necessidade. Uma força física, o complexo de conceitos e experimentos que ela supõe, é estranha aos valores morais. Estes não podem ser determinados com os paradigmas físicos. Se um objeto X sai de um outro objeto Y e percorre o espaço em certo tempo e com certa intensidade, atravessando o objeto Z num certo momento, isto pode ser somado, controlado, definido segundo a objetividade e a necessidade, determinações físicas. Se o objeto X for uma bala e o objeto Z for meu pai, tudo muda de figura. Não se faz, segundo Kant, ciência com moral, nem moral com ciência. Embora harmonizáveis (a Terceira Critica de Kant, a Critica da Faculdade de Julgar procurou estabelecer a harmonia entre os dois reinos, o da objetividade e o da subjetividade) elas não são sintetizáveis de modo imediato. Muitas mediações devem ser feitas entre moral e ciência para que uma não prejudique a outra.
Com essa bipartição kantiana entre o noumênico e o fenoménico, a moral reduzida à invisível consciência individual, tornou-se um problema tanto para cientistas, políticos, homens comuns, agir de modo autônomo frente à ciência e frente à vida coletiva. Esta última pode ser encarada como fenômeno e inserir-se num conjunto de dados submetidos à necessidade. Com isto, os setores do direito, das regras morais, religiosas, etc, se definem além da ciência, residindo só na consciência. Ao contrário de juristas no século 20, como no "positivismo jurídico" de Hans Kelsen, Kant nunca fala numa "ciência do direito". Reunindo regras vinculadas à moral e à liberdade, a justiça e o direito só podem ser ditos como uma "doutrina", nunca como uma ciência ao modo da física. Esta última, por sua vez, nada tem a dizer sobre o direito. O campo da ciência é o fenômeno, controlado objetivamente. O direito é "dever-ser", valores que só têm existência, na consciência. Um ato político, jurídico ou moral, segundo Kant, pode ser bom ou péssimo, mas não se experimenta nem se prova cientificamente. Esta bipartição kantiana passou a ser um embaraço aos que desejavam analisar a ciência e a moral no âmbito coletivo, para além do sujeito individual. Contra I. Kant, pensadores como Hegel procuram mostrar que, embora não científica, a moral encontra um campo visível e no entanto livre, não necessário, e que ele seria o da ética. Enquanto a moral se prende ao indivíduo, tornando-se um dever-ser (um imperativo), nunca chegando ao ser (privilégio da ciência),a ética considera o comportamento da sociedade, algo visível, e não apenas o que estaria presente na invisível consciência subjetiva.
Na Filosofia do Direito Hegel indica que a ética, embora pertença ao mundo de valores e hábitos, pode ser colhida de modo não subjetivo. Ela não é de todo livre para os indivíduos de uma sociedade histórica, pois eles nascem num tempo e num espaço definidos e num coletivo cujos valores se expressam em hábitos comuns. O "ethos" grego é traduzido por Hegel na palavra "Gewohnheit", hábito, que não se exerce apenas na invisível consciência individual mas numa sede (Sitz) comum a muitos indivíduos. Na ética os indivíduos agem em comum com os mesmos padrões de comportamento, desde os corporais até os espirituais. Eles agem de certo modo, possuem certa língua comum, usam traços semiológicos comuns para se comunicar com os semelhantes. A ética pode, perfeitamente, ser visível a todos os que compõem o universo pensante e particularmente visível e significativa para quem possui chaves de interpretação dos sinais particulares a um grupo, a uma sociedade, a um povo. Agir no mundo ético é operar como se cada um estivesse "em casa". Um alemão sente-se "em casa" se encontra outros alemães. Um francês idem. Um alemão católico sente-se ainda mais em casa se encontra outros alemães católicos. Um alemão católico e físico, sente-se mais em casa quando encontra outro que possui as mesmas marcas espirituais, os mesmos hábitos, os mesmos métodos, as mesmas fórmulas para analisar o mundo. E assim por diante. Quanto mais os signos utilizados (e produzidos pelos homens no tempo histórico) forem comuns, mais "em casa" estará o indivíduo. E surge o grande problema: o hábito comum não seria um obstáculo para que os indivíduos percebessem que suas atitudes, valores, etc. poderiam ser nocivos ao grupo e aos próprios indivíduos? Um preconceito partilhado coletivamente não deixa de ser preconceito. E temos a questão da justiça e da ciência.
A partir dessa dúvida a ética se dedica à pesquisa das variações comportamentais ao longo da história dos povos e dos grupos em seu interior. Ela busca descrever os costumes de cada povo ou grupo. A antropologia é uma das suas mais eficazes auxiliares. Descrever de modo rigoroso, sem aplicar ao grupo estudado, normas e valores alheios a ele, tal é o primeiro passo da ética. Só após captar os valores de um conjunto social determinado, pode a reflexão compará-los aos hábitos de outras comunidades. Assim, a ética pretende atingir um âmbito mais amplo de valores do que a moral, sem prender-se aos indivíduos que os empregam, como seria o caso da moral subjetiva. Se é verdade, como queria I. Kant, que a ciência não se faz com a moral, e vice versa, não é menos verdade que os hábitos dos cientistas integram num grupo com determinações mais amplas do que as individuais. O cientista possui hábitos comuns com o seu grupo de referência e pode ter seus atos e pensamentos acompanhados por este grupo. A comunidade de pesquisa insere-se num determinado coletivo nacional e este integra a comunidade internacional da ciência. A passagem lógica e prática dos indivíduos ao universal não é mais, como em Kant, da ciência à moralidade, sendo uma visível e a outra invisível, mas entre níveis diversos de visibilidade.
Tomemos um brasileiro. Os signos entre os quais ele se move, que definem a ética da sociedade em que ele nasceu e vive, adquirem determinada figura. Mas se ele também é protestante, os signos que determinam o seu agir diferem dos que movem os católicos, os ateus, etc. Se pertence ao grupo dos pesquisadores, digamos, da saúde pública, os signos e atitudes que aprende, que exercita, que amplia e atualiza, são bem diversos dos que são exercidos na física experimental ou nas matemáticas aplicadas. Há uma diversidade no interior do universal, a ciência. O mundo da pesquisa, como o universo social que o envolve, pode ser descrito como uma seqüência de esferas, cada uma com a sua lógica e com uma ética próprias. A esfera maior, o Estado, encarrega-se de administrar as demais esferas. Em cada um dos círculos os indivíduos aprendem sinais, gestos linguagem própria. Do culto religioso às instituições científicas (onde se desdobram linguagens, signos, gestos paradigmáticos), os
indivíduos aprendem a distinguir o que pertence a cada uma das esferas, não introduzindo por ignorância ou arbítrio o que é habitual numa delas em outras. Caso contrário, a mistificação se instala em todos estes domínios. Impor uma religião invocando "razões científicas", ou uma "ciência" como se religião fosse, é obra de incultura.
indivíduos aprendem a distinguir o que pertence a cada uma das esferas, não introduzindo por ignorância ou arbítrio o que é habitual numa delas em outras. Caso contrário, a mistificação se instala em todos estes domínios. Impor uma religião invocando "razões científicas", ou uma "ciência" como se religião fosse, é obra de incultura.
Só atinge a concretude a mente que soube deixar a abstração das partes isoladas. Assim a moral seria a veleidade de se falar sobre o todo, partindo-se de supostas partes isoladas umas das outras, os chamado indivíduos humanos. Estes existem e devem ser levados em conta. Mas jamais se atinge a concretude das comunidades mantendo-se a reunião de indivíduos isolados, como se eles fossem independentes das totalidades onde nascem, vivem, morrem. Nada pode ser dito dos indivíduos sem levar em conta o que eles adquiriram de maneira coletiva. Se ninguém nasce biólogo nem por isto deixa de ser verdade que "ser biólogo" só passa a ter sentido para os indivíduos no interior da comunidade visível, ética, que se determina segundo paradigmas, linguagem, metodologias, etc. daquele ramo científico. Não existe nenhum "biólogo inefável, intangível, invisível". Estes traços definem a ética de seu grupo, a qual é diferente da que define o coletivo dos físicos, dos artistas, dos
matemáticos, etc.
matemáticos, etc.
A ética não se imiscui de modo arbitrário, com uma tábua de valores particulares e externos à prática deste ou daquele grupo social, deste ou daquele povo, deste ou daquele segmento do saber. Ao contrário da moral, a ética não fala a partir do dever-ser, mas de como um determinado coletivo age e se constituiu histórica e socialmente. Mas quando será possível, e como, encontrar os limites da ciência e a justiça nesta ou naquela comunidade humana? Quando os seus hábitos mostrar-se-ão benéficos ou maléficos à humanidade? Apenas no campo mais amplo do Estado, onde as esferas se reúnem e se definem umas em relação às outras. Cabe ao Estado, reunião de todos os indivíduos, classes, movimentos, verificar, através da inspeção permanente dos hábitos e valores dos grupos, quais práticas e signos são adequados ou nocivos ao todo social. Só o Estado possui três faces essenciais para garantir os grupos particulares e ao mesmo tempo garantir o coletivo maior em que eles se inserem. Ele a única instância coletiva com o monopólio da força física, e só ele pode controlar os grupos habituados a agir deste ou daquele modo. Só ele define limites para o uso da força dos elementos que o integram. A instituição estatal possui o direito de polícia e de arregimentar exércitos. Ninguém ou nenhuma instituição além do Estado pode constranger corpos dos cidadãos e dos estrangeiros, em caso de grave ruptura com a vida comum, dentro dos limites do país e fora dele. Nenhum particular pode armar-se e constranger os outros particulares com a força física.
O segundo monopólio é a norma jurídica. Só o Estado tem a prerrogativa de editar leis válidas para todos e para cada um dos cidadãos. Ninguém, além dele, pode definir o que indivíduos, grupos, classes, devem fazer obrigatoriamente. O terceiro monopólio é o da gestão e alocação do excedente econômico. Só o Estado pode impor taxas, definir impostos obrigatórios para todos os cidadãos. Como só ele retira parte da riqueza produzida pela sociedade como um todo sob forma de impostos, só ele pode aplicar estes recursos. Tendo o monopólio da força e da norma jurídica, somado ao monopólio da gestão do excedente econômico, só o Estado pode e deve gerir políticas públicas: saúde, educação, lazer, guerra, segurança interna, cultura, etc.
Os três monopólios do Estado delimitam o âmbito e as pretensões dos grupos particulares. E como os limites do próprio Estado são definidos? Esta dificuldade data da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Sendo o Estado o impositor de limites aos grupos e indivíduos que nele se movem, a sua instituição controla os hábitos físicos e mentais dos setores que nela se movem. O Estado, não raro, ultrapassa os seus próprios limites e tenta impor padrões de comportamento e valores aos grupos particulares. A Constituição americana e os direitos dos cidadãos, produzidos na Revolução Francesa, indicam as barreiras que devem existir, protegendo do Estado os indivíduos e os grupos. Os Estados efetivos, tendem a ultrapassar as cancelas que salvaguardam as múltiplas éticas dos setores estabelecidos em seu interior. Assim, na extinta URSS, o Estado atribuiu-se o direito de impor normas éticas aos trabalhos dos cientistas, artistas e demais atividades, através de doutrina oficiais sobre a ciência, a arte, etc. Mas não apenas o Estado pode querer intervir nas éticas dos grupos particulares. Movimentos religiosos julgam-se com o direito de definir o monopólio ético contra os grupos científicos, artísticos, etc. O fundamentalismo cristão ou qualquer outro fundamentalismo religioso, desconhece hábitos e signos dos grupos científicos, artísticos, etc, tentando impor-lhes, de cima e do exterior, regras alheias ao seu costume. A chamada "opinião pública", movida pela mídia, imagina influir que deve ser feito na pesquisa, na arte, etc. Como harmonizar os pressupostos do Estado e dos movimentos de massa, religiosos ou ideológicos, e a ética dos grupos de pesquisa e demais grupos?
A resposta eficaz é a democracia e o Estado de direito. Democracia, porque nela nenhum grupo possui a qualidade de ser o representante único do coletivo. Todas as atitudes éticas recebem equivalência no plano do pensamento, e isto é o princípio da eqüidade. O Estado de direito, porque nele a democracia se rege por leis adotadas pelo mesmo Estado, na sua face legislativa, as quais podem ser interpretadas e corrigidas pelo Judiciário. O executivo tem os dois outros poderes como limites da sua ação. Deste modo, os grupos do social podem ser ouvidos no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Democracia sem Estado de direito é despotismo da maioria ou de um ou outro setor social. O Estado de direito tem como conditio sine qua non a democracia.
Os limites éticos da pesquisa científica só podem ser definidos no interior do Estado democrático de direito. E agora temos a grande importância do ideal ético e de sua visibilidade, para além da moral que reside apenas na invisível consciência subjetiva. O rigor democrático exige ampla transparência dos negocios públicos. O segredo no Estado moderno define, indica Elias Canetti em Massa e Poder, forma ditatorial. Conforme a lição de Norberto Bobbio, "pode-se definir a democracia dos modos mais diversos. Mas não existe definição na qual possa faltar o elemento que caracteriza a visibilidade ou a transparência do poder. Governo democrático é o que desenvolve a sua atividade própria em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua atividade sob os olhos de todos porque todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, por qual razão deveria ser chamado periodicamente às urnas, e sob quais bases poderia exprimir o próprio voto de condenação ou aprovação?". Governo que usa o segredo nas políticas públicas, conclui Bobbio citando Canetti, "não transforma a democracia, mas a perverte. Não fere mais ou menos um ou outro órgão vital da vida democrática, mas a assassina" ("II potere in maschera", in L'utopia capovolta. pp. 61-64.)
Ao contrário da moral, onde a luta de todos contra todos é infindável, visto que todo indivíduo ou grupo postula que a sua norma é a mais adequada para eles ou para o todo, a ética procura encaminhar os conflitos dos grupos através do debate social, chegando ao parlamentar, às decisões e juízos dos tribunais, definindo uma isonomia dos grupos no seu modo de ser particular. Entre o nível em que se encontram os grupos particulares de cientistas e o todo do Estado, há uma escala de universalização da responsabilidade e da eficácia. Um erro do Estadista pode ser letal para toda a comunidade e para as comunidades humanas. Um governante que proclama a guerra sem pensar nos efeitos ou condições, pode causar prejuízos tremendos aos seus concidadãos e aos cidadãos do mundo. O governante precisa contar com ajuda dos grupos que se movem no interior do Estado. Assumir determinada política pública ignorando hábitos e riquezas espirituais das esferas particulares, redunda em desastre. Quando se trata de política científica e tecnológica, o Estado, sobretudo na face executiva, deve contar com o saber dos grupos organizados e conhecedores das várias faces fenoménicas que definem o conhecimento sobre a natureza e sobre a sociedade.
Quanto menor o erro na determinação macrológica, melhor para o Estado e para a sociedade. O tempo é um fator vital, que não pode ser desperdiçado com erros. É por esse motivo que os grupos de pesquisadores devem ter a maior licença para errar, utilizando o tempo em registro diferente ao ritmo da política, da guerra, etc. Se tempo é dado para os cientistas, permitindo-lhes empreender vários caminhos antes de estabelecer determinados conhecimentos ou procedimentos, o tempo é poupado ao governante, porque ele não escolhe saberes e métodos pouco investigados, pouco testados. Se o administrador impede o trabalho científico nos tateios dos laboratórios, nos campos de pesquisa, a sociedade paga caro esta falta de emprego do tempo, quando for escolhida uma certa política pública, em termos de paz ou de guerra.
Se a lógica da política é a de errar o mínimo possível, a lógica da ética científica é garantir aos seus integrantes o direito ao erro na busca de conhecimentos e métodos. E não há moral de boas intenções, não existem normas éticas que podem ser definidas a priori neste campo. Se a comunidade dos cientistas não tem o direito de livre investigação, a sua própria ética é suprimida. Este é o âmago, no meu entender, da autonomia de cátedra e da autonomia universitária. O Estado paga a comunidade dos pesquisadores e define os limites físicos e jurídicos da atividade científica. Mas ele não pode, com risco de se tornar mais fraco e menos eficaz na sua ação pública, retirar dos pesquisadores a sua ética essencial definida enquanto busca, e não como um bloco de certezas imposto em tempo préestabelecido burocráticamente.
O direito de errar tem sido muito desrespeitado, nos últimos tempos, nos processos de avaliação. Este hábito dos governos causa prejuízos graves aos setores de pesquisa e de ensino brasileiros. Note-se a diminuição drástica do tempo atribuída à pesquisa, sobretudo a destinada à formação dos novos cientistas. Na CAPES, se um grupo ou indivíduo atrasa seis meses a sua dissertação ou tese, por força da busca imánente (falhas de método, hipóteses equivocadas, etc), todo o programa em que eles se inscrevem é punido, com diminuição de recursos, bolsas, etc. O governo brasileiro, assim, atenta contra os interesses sociais, porque os saberes coletivos abreviados são pouco discutidos, experimentados, postos à prova pelos grupos de pesquisa. O governo, agindo deste modo, põe-se contra a ética definida dos pesquisadores, ética que não raro é anterior à própria existência do Estado
brasileiro, visto que foi gerada ao longo da história universitária, a qual tem mais de mil anos. Os hábitos universitários constituem uma segunda natureza, definem valores e atitudes mentais que não podem ser banidas ou usurpadas por este ou aquele partido, esta ou aquela seita religiosa, este ou aquele movimento de massas. A autonomia universitária não se define apenas diante do Estado, mas também frente à sociedade.
Se o Estado democrático de direito possui os monopólios das políticas públicas, se nele se resolvem os problemas éticos mais graves da vida de um país, também lhe cabe a função de incentivar ao máximo a pesquisa em ciência e tecnologia, além de outros aspectos da cultura. Isto porque as sociedades que não adquirem saberes naqueles setores, como demonstra o grande etnólogo André Leroi-Gourhan, um especialista na história social unida à história da técnica, simplesmente perdem a força para continuar a luta pela sobrevivência e expansão, no interior da natureza e diante de outros coletivos humanos. O Estado moderno foi produzido para proteger as pessoas da morte e para facilitar sua vida, ampliando o tempo da existência e adiando o mais possível o seu fim. O Estado que não prove os meios para que se produza a mais fina e abrangente rede de instituições voltadas à pesquisa avançada, não cumpre a finalidade para a qual é-lhe entregue o monopólio das políticas públicas. Além de formar pesquisadores em número adequado aos padrões internacionais, o Estado digno de tal nome providencia para que eles tenham ambientes de trabalho dignos dos hábitos da comunidade, os seus paradigmas de excelência. Doutores em pesquisa científica que não tenham trabalho ou recebam pagamentos incompatíveis com a própria expansão de conhecimentos, estão sendo lesados pelo governo ou pela instituição estatal no seu todo. E as conseqüências éticas, lembro novamente Leroi-Gourhan, são letais ao coletivo que envolve a vida de pesquisa. A sociedade morre um pouco, sempre que recursos para a pesquisa científica e tecnológica são subtraídos dos laboratórios. A mediação entre o que se faz na comunidade acadêmica e os seus frutos para a sociedade é um problema ético, político, jurídico, econômico, ultrapassando de muito as opções morais deste ou daquele indivíduo ou grupo.
Se o juízo moral dos pesquisadores, ou dos que os rodeiam, indica que a ética seguida por seu grupo é falha, ou nociva, o único caminho eficaz é a busca do Estado democrático de direito. Mas o Estado não diz qual a atitude correta da pesquisa, não ensina como proceder nos laboratórios de química ou de física, não define qual modo de resolver equações é o mais próprio. Apenas o diálogo nos parlamentos, as demonstrações no debate acadêmico, podem esclarecer o bem fundado de uma série de práticas científicas. É preciso desconfiar, pois, de cientistas que depositam nas mãos de políticos, sejam eles ministros da educação ou da ciência e tecnologia, o controle da pesquisa. Recordemos que
Lyssenko nunca errou. E isto trouxe prejuízos imensos ao próprio Estado soviético e ao seu povo.
No Brasil, nota-se um afã que aumenta em nossos dias, de aplicar códigos de ética ao trabalho científico, acompanhados de "comissões de ética" almejadas pelos ministérios do poder executivo. Antes de procurar impor limites morais à ação científica alheia, eu diria aos paladinos autoritários da ética ou da moral que é prudente verificar em qual sociedade, quais valores se impõem nos grupos que definem o coletivo envolvente. No caso brasileiro, com muita probabilidade, os costumes, a ética socialmente hegemônica, é menos respeitosa da vida do que a ética dos laboratórios. Uma sociedade onde reina a capangagem, onde quadrilhas se apossam do Estado e dele sugam, através da corrupção, o excedente econômico, uma sociedade onde o judiciário faz-se cúmplice do executivo e deixa incólumes notórios criminosos, uma sociedade cujo Parlamento Federal possui uma Comissão de Ciência e Tecnologia cujo principal mister é distribuir rádios e emissoras de TV para políticos e grupos poderosos economicamente, e que não se aplica ao incentivo das ciências e das técnicas, uma sociedade assim, longe de querer regular com códigos de ética os laboratórios e os pesquisadores, deve neles recolher lições de cautela e de método. Colocar mordaças e amarras na pesquisa, em nome dos valores políticos ou econômicos é uma das formas de perpetuar a ignorância, a injustiça e a miséria física e espiritual em nossos países, sobretudo os que entram no século novo sem que as suas
populações tenham tido acesso amplo às tecnologias e à produção de conhecimentos científicos.
populações tenham tido acesso amplo às tecnologias e à produção de conhecimentos científicos.
SCIENCE FOR JUSTICE AND EQUITY
ABSTRACT: Taking into consideration that ethics is an assumption of justice, the author describes in this text the construction of the concept of ethics from the Greek thinking up to Modern Age, when the principles of rationality, objectivity, experimentation and method, which are currently predominant, were established. The author discusses how this issue is presented to Brazilian citizens today. He proposes that the limits between Science and Justice should be established and solved in a broader field, which is expressed as the State.
KEYWORDS: equity, ethics, rule of law, democracy, science
ABSTRACT: Taking into consideration that ethics is an assumption of justice, the author describes in this text the construction of the concept of ethics from the Greek thinking up to Modern Age, when the principles of rationality, objectivity, experimentation and method, which are currently predominant, were established. The author discusses how this issue is presented to Brazilian citizens today. He proposes that the limits between Science and Justice should be established and solved in a broader field, which is expressed as the State.
KEYWORDS: equity, ethics, rule of law, democracy, science